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17 janeiro 2017

jorge luís borges / a lua



                           Para Maria Kodama



Há tanta solidão naquele ouro.
Lua destas noites é igual
À do primeiro Adão. Os longos séculos
Da humana vigília cumularam-na
E antigo pranto. Olha-a. É o teu espelho.


jorge luís borges
obras completas 1975-1985 vol. III
a moeda de ferro  (1976)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998




05 dezembro 2016

jorge luís borges / as causas




Todas as gerações e os poentes.
Os dias e nenhum foi o primeiro.
A frescura da água na garganta
De Adão. O ordenado Paraíso.
O olho decifrando a maior treva.
O amor dos lobos ao raiar da alba.
A palavra. O hexâmetro. Os espelhos.
A Torre de Babel e a soberba.
A lua que os Caldeus observaram.
As areias inúmeras do Ganges.
Chuang Tzu e a borboleta que o sonhou.
As maçãs feitas de ouro que há nas ilhas.
Os passos do errante labirinto.
O infinito linho de Penélope.
O tempo circular, o dos estóicos.
A moeda na boca de quem morre.
O peso de uma espada na balança.
Cada vã gota de água na clepsidra.
As águias e os fastos, as legiões.
Na manhã de Farsália Júlio César.
A penumbra das cruzes sobre a terra.
O xadrez e a álgebra dos Persas.
Os vestígios das longas migrações.
A conquista de reinos pela espada.
A bússola incessante. O mar aberto.
O eco do relógio na memória.
O rei que pelo gume é justiçado.
O incalculável pó que foi exércitos.
A voz do rouxinol da Dinamarca.
A escrupulosa linha do calígrafo.
O rosto do suicida visto ao espelho.
O ás do batoteiro. O ávido ouro.
As formas de uma nuvem no deserto.
Cada arabesco do caleidoscópio.
Cada remorso e também cada lágrima.
Foram precisas todas essas coisas
Para que um dia as nossas mãos se unissem.


jorge luís borges
obras completas 1975-1985 vol. III
história da noite   (1977)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998



21 novembro 2016

jorge luís borges / g. a.bürger




Nunca hei-de entender
por que me afectam desta maneira as coisas
que aconteceram a Bürger
(as suas duas datas estão na enciclopédia)
numa das cidades da planície
junto ao rio que tem uma só margem
onde crescem palmeiras, não pinhais.
Tal como todos os homens,
disse e ouviu mentiras,
foi traído e foi traidor,
agonizou muitas vezes por amor
e após uma noite de insónia
viu os cinzentos cristais da alba,
mas mereceu a grande voz de Shakespeare
(na qual estão as outras)
e a de Angelus Silesius de Breslau
e com falso descuido limou alguns versos
ao estilo da sua época.
Sabia que o presente não é mais
que uma fugaz partícula do passado
e que somos feitos de esquecimento:
sabedoria tão inútil
como os corolários de Espinosa
ou as magias do medo.
Na cidade, junto ao rio imóvel,
uns dois mil anos depois da morte de um deus
(a história que menciono é antiga),
Bürger está sozinho e agora
precisamente agora, lima uns versos.


jorge luís borges
obras completas 1975-1985 vol. III
história da noite   (1977)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998





03 setembro 2016

jorge luís borges / o apaixonado



Luas, marfins, instrumentos e rosas,
Traços de Dürer, lampiões austeros,
Nove algarismos e o cambiante zero,
Devo fingir que existem essas coisas.
Fingir que no passado aconteceram
Persépolis e Roma e que uma areia
Subtil mediu a sorte dessa ameia
Que os séculos de ferro desfizeram.
Devo fingir as armas e a pira
Da epopeia e os pesados mares
Que corroem da terra os vãos pilares.
Devo fingir que há outros. É mentira.
Só tu existes. Minha desventura,
Minha ventura, inesgotável, pura.


jorge luís borges
obras completas 1975-1985 vol. III
história da noite   (1977)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998





21 julho 2016

jorge luís borges / orgulho da serenidade



Escritas de luz investem pela sombra, mais prodigiosas do que meteoros.
A alta cidade irreconhecível cresce sobre o campo.
Certo da minha vida e da minha morte, olho os ambiciosos e queria
                                                                                             entendê-los.
O seu dia é ávido como o laço no ar.
A sua noite é a trégua da ira no ferro, rápido ao atacar.
Falam de humanidade.
A minha humanidade está em sentir que somos vozes da mesma penúria.
Falam de pátria.
A minha pátria é um ganido de guitarra, alguns retratos e uma velha
                                                                                                       [espada,
a clara prece do salgueiral nos entardeceres.
O tempo está a viver-me.
Mais silencioso do que a minha sombra, cruzo o tropel da sua excitada
                                                                                                          [cobiça.
Eles são imprescindíveis, únicos, merecedores do amanhã.
O meu nome é alguém e qualquer um.
Passo com lentidão, como quem vem de tão longe que não espera chegar.


jorge luís borges
obras completas 1923-1949 vol. 1
lua defronte  (1925)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998



25 junho 2016

jorge luís borges / ausência



Eu haverei de erguer a vasta vida
que ainda é o teu espelho:
cada manhã hei-de reconstruí-la.
Desde que te afastaste,
quantos lugares se tornaram vãos
e sem sentido, iguais
a luzes acesas de dia.
Tardes que te abrigaram a imagem,
música em que sempre me esperavas,
palavras desse tempo,
terei de as destruir com as minhas mãos.
Em que ribanceira esconderei a alma
pra que não veja a tua ausência,
que como um sol terrível, sem ocaso,
brilha definitiva e sem piedade?
A tua ausência cerca-me
como a corda à garganta.
O mar ao que se afunda.


jorge luís borges
obras completas 1923-1949 vol. 1
fervor de buenos aires (1923)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998



08 junho 2016

jorge luís borges / a recoleta



Convencidos de caducidade
por tantas nobres certezas do pó,
demoramo-nos e baixamos a voz
entre as lentas filas de panteões
cuja retórica de mármore e sombra
promete ou antecipa a desejável
dignidade de ter morrido.
Belos são os sepulcros,
o despido latim e as firmes datas fatais,
a conjunção do mármore e da flor
e as pracetas com frescura de pátios
e os muitos ontens da história
hoje parada e única.
Enganamos essa paz com a morte,
cremos ansiar pelo nosso fim
e ansiamos pelo sonho, a indiferença.
Vibrante nas espadas, na paixão,
adormecida na hera,
somente a vida existe.
O espaço e o tempo são as suas formas,
são instrumentos mágicos da alma,
e quando ela se apagar,
vão consigo apagar-se o espaço, o tempo e a morte,
como ao cessar a luz
caduca o simulacro dos espelhos
que a tarde já foi apagando.
Sombra benigna das árvores,
vento com aves, que ondeia nos ramos,
alma que se dispersa noutras almas,
seria um milagre se deixassem de ser,
milagre incompreensível,
mesmo que a sua imaginária repetição
avilte com horror os nossos dias.
Tudo isto pensei na Recoleta,
lugar das minhas cinzas.


jorge luís borges
obras completas 1923-1949 vol. 1
fervor de buenos aires (1923)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998



01 setembro 2015

jorge luís borges / o mar



Antes que o sonho (ou o terror) tecera
mitologias e cosmogonias,
antes que o tempo se cunhasse em dias,
o mar, sempre o mar, já estava e era.
Quem é o mar? quem é o violento
e antigo ser que destrói os pilares
da terra, e é só um e muitos mares,
e abismo e resplendor e azar e vento?
Quem o olha vê-o pela vez primeira,
sempre. Com o assombro tal que as coisas
elementares deixam, as formosas
tardes, a lua, o fogo da fogueira.
Quem é o mar, quem sou? Sei-o no dia
que virá logo após minha agonia.


jorge luís borges
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de josé bento
assírio & alvim
2001


07 novembro 2014

jorge luís borges / limites




De todas as ruas que escurecem ao pôr-do-sol,
deve haver uma (eu não sei dizer qual),
em que já passei pela última vez
sem perceber, refém daquele Alguém



que, com antecedência, fixa leis omnipotentes,
ajusta uma balança secreta e inflexível,
para todas as sombras, formas e sonhos
tecidos na textura desta vida.



Se há um limite para todas as coisas, e uma medida,
e uma última vez, e nada mais, e esquecimento,
quem nos dirá a quem, nesta casa,
nós, sem saber, já dissemos adeus?



Pela janela que amanhece retira-se a noite
e entre os livros empilhados que lançam sombras
irregulares na mesa difusa,
deve haver um que eu jamais lerei.



Há uma porta que tu fechaste para sempre
e algum espelho te esperará em vão;
Há uma, entre todas as tuas memórias,
que agora está perdida além da evocação.



Tu nunca voltarás a recapturar o que o Persa
disse no seu idioma tecido com pássaros e rosas,
quando, ao pôr-do-sol, antes que a luz disperse,
tu queres pôr em palavras tantos inesquecíveis.



Ao amanhecer pareço ouvir o turbulento
murmúrio de multidões crescendo e dissolvendo;
tudo por que fui amado, esquecido,
espaço, tempo, e Borges, vão me deixar agora.



jorge luis borges








26 junho 2013

jorge luís borges / as coisas




A bengala, as moedas, o chaveiro,
a dócil fechadura, essas tardias
notas que não lerão meus poucos dias
que restam, o baralho e o tabuleiro,
um livro e dentro dele a esmagada
violeta, monumento de uma tarde
por certo inolvidável e olvidada,
o rubro espelho ocidental em que arde
uma ilusória aurora. Quantas coisas,
limas, umbrais, atlas, copos, cravos,
nos servem como tácitos escravos,
cegas e estranhamente sigilosas!
Durarão para além do nosso olvido
e nunca saberão que já nos fomos.




jorge luís borges


28 dezembro 2012

jorge luís borges / o forasteiro




Despachadas as cartas e o telegrama
caminha pelas ruas indefinidas
e nota leves diferenças a que não dá importância
pois pensa em Aberdeen ou em Leyden,
para ele mais vívidas que este labirinto
de linhas rectas, não de complexidade
aonde o leva o tempo de um homem
cuja vida verdadeira está bem longe.
Numa habitação numerada
fará depois a barba ante um espelho
que não voltará a reflecti-lo
e parecer-lhe-á que esse rosto
é mais inescrutável e mais firme
do que a alma que o habita
e que ao longo dos anos o vai lavrando.
Cruzar-se-á contigo em qualquer rua
e tu só notarás que é alto e grisalho
e que olha para as coisas.
Uma mulher indiferente
a tarde lhe dará e o que sucede
do outro lado de umas portas. O homem
pensa que esquecerá a sua cara e irá lembrar
anos depois, perto do mar do Norte,
a persiana ou a lâmpada.
Nessa noite, os seus olhos contemplarão
num rectângulo de formas passageiras,
o cavaleiro e a épica pradaria,
porque o Far West abarca o planeta
e espelha-se nos sonhos dos homens
que jamais o pisaram.
Na intensa penumbra, o desconhecido
crer-se-á na sua cidade
e surpreender-se-á ao sair numa outra
de uma outra linguagem e outro céu.

Antes da agonia
o inferno e a glória nos estão dados:
andam agora por esta cidade, Buenos Aires,
que para o forasteiro do meu sonho
(o forasteiro que fui sob outros astros)
é uma série de imagens imprecisas
feitas para o esquecimento.



jorge luís borges
nueva antologia personal
1968
trad. de nicolau saião


28 dezembro 2010

jorge luís borges / outro poema dos dons







Graças quero dar ao divino
labirinto dos efeitos e das causas
pela diversidade das criaturas
que formam este singular universo,
pela razão, que não cessará de sonhar
com um plano do labirinto,
pelo rosto de Helena e a perseverança de Ulsses,
pelo amor que nos deixa ver os outros
como os vê a divindade,
pelo firme diamante e a água solta,
pela álgebra, palácio de precisos cristais,
pelas místicas moedas de Angel Silésio,
por Schopenhauer
que decifrou talvez o universo,
pelo fulgor do fogo
que nenhum ser humano pode olhar sem um assombro antigo,
pelo acaju, o cedro e o sândalo,
pelo pão e o sal,
pelo mistério da rosa
que prodiga cor e não a vê,
por certas vésperas e dias de 1955,
pelos duros tropeiros que, na planície,
arreiam os animais e a alba,
pela manhã em Montevideu,
pela arte da amizade,
pelo último dia de Sócrates,
pelas palavras que foram ditas num crepúsculo
de uma cruz a outra cruz,
por aquele sonho do Islão que abarcou
mil noites e uma noite,
por aquele outro sonho do inferno,
da torre do fogo que purifica
e das esferas gloriosas,
por Swendenborg,
que conversava com os anjos nas ruas de Londres,
pelos rios secretos e imemoriais
que convergem em mim,
pelo idioma que, há séculos, falei em Nortúmbria,
pela espada e a harpa dos saxões,
pelo mar que um deserto resplandecente
e uma cifra de coisas que não sabemos
e um epitáfio dos vikings,
pela música verbal da Inglaterra,
pela música verbal da Alemanha,
pelo ouro que reluz nos versos,
pelo épico Inverno,
pelo nome de um livro que não li: Gesta Dei per Francos,
por Verlaine, inocente como os pássaros,
pelo prisma de cristal e o peso de bronze,
pelas riscas do tigre,
pe1as altas torres de São Francisco e da ilha de Manhattan,
pela manhã no Texas,
por aquele sevilhano que redigiu a «Epístola Moral»
e cujo nome, como ele teria preferido, ignoramos,
por Séneca e Lucano, de Córdova,
que antes do espanhol escreveram
toda a literatura espanhola,
pelo geométrico e bizarro xadrez,
pela tartaruga de Zenão e o mapa de Royce,
pelo odor medicinal dos eucaliptos,
pela linguagem, que pode simular a sabedoria,
pelo esquecimento, que anula ou modifica o passado,
pelo costume,
que nos repete e nos confirma como um espelho,
pela manhã, que nos depara a ilusão de um princípio,
pela noite, sua treva e sua astronomia,
pelo valor e a felicidade dos outros,
pela pátria, sentida nos jasmins
ou numa velha espada,
por Whitman e Francisco de Assis, que já escreveram o poema,
pelo facto de que o poema é inesgotável
e se confunde com a soma das criaturas
e jamais chegará ao último verso
e varia segundo os homens,
por Frances Haslam, que pediu perdão a seus filhos
por morrer tão devagar,
pelos minutos que precedem o sonho,
pelo sonho e a morte,
esses dois tesouros ocultos,
pelos íntimos dons que não enumero,
pela música, misteriosa forma do tempo.








jorge luís borgesnova antologia pessoaltrad. maria da piedade m. ferreira
difel
1983



16 junho 2009

jorge luís borges / james joyce






Num dia do homem estão os dias
do tempo, desde aquele inconcebível
dia inicial do tempo, em que um terrível
Deus prefixou os dias e agonias,
até esse outro em que o ubíquo rio
do tempo terreal retorne à fonte
do Eterno, e que se apague no presente,
o ontem, o futuro, o que ora é meu.
Entre a alba e a noite se situa a história
universal. Assim, de noite vejo
a meus pés os caminhos do hebreu,
Cartago aniquilada, Inferno e Glória.
Dá-me, Senhor, a coragem e alegria
para escalar o pico deste dia.



Cambridge, 1968






jorge luís borges
nova antologia pessoal
trad. maria da piedade m. ferreira
difel
1983