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07 maio 2010

andre breton e paul éluard / o sentimento da natureza







O processo do espelho em esfera serviu mais uma vez para o estudo das origens do orvalho; logo que está completo pelo fogo da chaminé, é possível submetê-lo sem dificuldade a medições precisas, e estudar o fenómeno em todos os seus pormenores; assim se reconhece que as sardas nascem bruscamente, permanecem brilhantes por um curto instante, extinguem-se depois gradualmente. A sua duração total varia com a formação dos anéis de verdura nas clareiras favoráveis à neve. Mas nenhuma dura mais que uma vida média, calculada tendo em conta os seus eclipses e os seus nós.
A grande questão seria conseguir que quando um ser enganou um outro ser, se tornasse incapaz de segurar na mão um copo que não se partisse imediatamente. Muitos inventores dedicaram o seu sono e as suas vigílias à solução deste problema, mas sem que até este momento nenhum dos vidros imaginados tivesse apresentado as qualidades requeridas. O facto está em que se é apenas a elegância do copo que permite beber e se é apenas o tremor do bebedor ou da bebedora quem comunica as suas vibrações à tempestade sempre imaginada no interior do copo vazio, a emoção de um ou da outra não pode bastar na maior parte dos casos para provocar o estilhaçamento de uma parcela de matéria transparente que faz bomba na extremidade dos dedos. Estas saraivadas que amadureceram na inconstância e no olvido não permitem àqueles que bebem tomar a atitude desligada dos amadores do ciúme.
Sob as árvores, às mãos-cheias, o cheiro de roupa queimada de velhas roseiras enche as caves do Outono. O coração da dama do lago foi perfurado por um lagarto. Está na aurora até ao coração. Existe escondido um tal movimento de estrelas que a sombra cai em flocos, um tal movimento de estrelas grandes e terríveis que a vida está em farrapos. E o eco responde: Aqui, há um cadáver.
Pouco a pouco, o cadáver pinta-se. O pó de arroz dá lugar à alvaiade, o sublimado aparece à varanda, é o rei dos cosméticos. O sulfureto de zinco comunica ao corpo bem--amado na noite aquela bela luminosidade verde--esbranquiçada, aquele clarão inteiramente enigmático na meia luz. A neve do pensamento continua a cair contendo sempre no interior dos seus cristais o pó fino do colo da janela, nascido no sangue.
Quando observamos atentamente a própria vida temos muitas vezes a impressão de que as alegrias e as dores se mantêm durante um tempo apreciável. Fomos surpreendidos, da Rua Louis-Blanc à Rua Louis-Noir, com a duração do período do fenómeno oscilatório: segundo a nossa opinião os pontos brilhantes são aqueles onde a vida é vista em ponto pequeno.
O inimigo da sua natureza assombra as fiorestas perigosas cujas grades se fecham todas as manhãs sobre a árvore dos vícios. Finda a saúde as suas geadas de malvas e as suas canículas de tigre. O inimigo da sua natureza está perdido no meio das flores salgadas e leques de gesso. Será necessário indicar-lhe a direcção do deserto? Irei voltá-lo para a estrela polar? Deseja ele que este empedrado que aí está se torne e fique constantemente paralelo ao equador infernal? Agrada-lhe que esta boca que cobiça permaneça indefinidamente à porta do primeiro palácio dos fenómenos? Que escolha! Ou prefere então ter tudo isso na abertura da sua mansarda que dá para o céu aturdido?
- Tudo, responde ele. Com isso e um sorriso do Sol, sem pôr o nariz fora da minha janela, saberei ao certo com que me contentar acerca da força incompreensível das aptérix e dos grampos de ferro dos seus hábitos crepusculares.
Saberei ao certo com que me contentar quanto ao processo empregado para guarnecer o artigo desértico preexistente no velho mundo de personagens, de aves ou de diferentes cenários em relevo, relativamente bastante bem feitos. Em presença do preço módico do conjunto — a vida — e da execução sofrível do cenário pensava que fora sem dúvida empregado um processo mecânico simples, tal como urna moldagem, mas, após exame, pareceu-me que estas ornamentações, sobretudo os pássaros, não eram de despojo e, não podendo sair de um molde vulgar, teriam exigido uma moldagem dispendiosa. Não sei se me será permitido visitar um dia as oficinas do fabricante. É provável que o artista tenha como único material e como ferramentas folhas de macieira e a matéria plástica; que seja com estas folhas de macieira que ele dá forma a esta matéria formada de céu encarneirado (muito produtivo) e de esperma ligado com gulosos de morangueiros. Teve de tirar o almíscar nas cabeças de trutas, misturá-lo com o ácido oxalo-sacárico e encerrá-lo numa primeira hóstia de cor carne. Numa segunda de cor espírito teve de guardar bicarbonato de sódio seco. Na época das chuvas, as duas hóstias misturadas deram ácido carbónoco expirável na forma de hálito.
A maldade que lança o espírito sobre a carne e a carne sobre as imagens do espírito habita as miragens da cabeça e a água gelada das cozinhas surdas. É preciso respirar este ar selvagem que estende os punhos através do apetite voraz das ruínas com cintura de vespa e cabeça de víbora. Elas sobrepõem-se gradualmente e cada um dos seus degraus está coberto de coágulos de musgo vivo que a névoa torna a cobrir de musgo morto. A atmosfera ganha então um tom amarelo mais intenso que o da crosta da aurora. A vista espraia-se sem limites e escava nas profundidades do coração humano, que sempre produziram naquele que as contemplou urna extraordinária impressão.
Gostaríamos de ilustrar este texto com urna curiosa figura representando um animal de tronco excepcionalmente bifurcado a partir do meio do seu comprimento. É assinalada a existência de seres análogos um tanto por toda a parte. Este género de divisão anormal de eixos ou de órgãos habitualmente simples conhecido das árvores com o nome de partimento, ainda não foi estudado senão pelos sexualistas. Foi em Paris, onde íamos herborizando ao longo das fortificações, que pela primeira vez fomos surpreendidos ao avistar uma, depois duas, depois mil destas excrescências lembrando, num grau muito mais avançado de deformação, esta variedade móvel da mandrágora em busca do vento na erva rasa e lamentavelmente observada pelos carrosséis de cavalinhos. A sua excitabilidade representava-nos bastante bem um quadro assaz análogo ao de um leito tal como seria se a velocidade dos movimentos executados pelos vários membros que nele se agruparam estivesse multiplicada por mil. Tudo ali está em movimento, os braços sobem, baixam, torcem as mãos, os troncos contornam em hélice a sua culminância delicada, as bocas rebentam, projectam os seus beijos ao longe, os beijos caídos sobre os olhos não ficam ali, logo partem numa outra direcção, as pernas mergulham nos lençóis transparentes, enfim tudo está cm acção, desde o grito que se abandona até aos dentes de veludo.
Os caminhos que sulcam o arrabalde, nos últimos raios da preguiça, repousam nas redes das grelhas. É difícil dispor os lugares da aldeia para não se deixar morrer de fome, à noitinha. Toda a sua puerilidade não lhe serve senão para confundir os despojos do turismo com o porte estúpido das grandes glicínias da Beauce.
O Verão, como tinta simpática, reaparece a favor de dois negativos quando não está calor não está frio, sobre o palimpsesto coberto de geada da palavra inverno.
O fogo é um amigo que nos presta serviço, é a razão por que a aliança estabelecida com ele lisonjeia tão vivamente a população terrestre. Todo o aparelho preventivo do fogo está colocado num ramo de cerejeira. O ramo de cerejeira alto, sem o botão a dominá-lo, de 0,35 .m, está fixado por quatro parafusos, também em madeira, do modelo conhecido, ao tronco da árvore. Eis-nos no meio da Primavera. Quantas transformações já se cumpriram! O preventivo é visitado por uma borboleta branca que se detém a meio da fotografia. O Outono: a maior parte das folhas caíram; o capitel de um estilo coríntio híbrido faz o regalo de uma libélula.
Um mar imenso de penca vermelha protege os instrumentos de trabalho da centelha. Em breve se dará um eclipse de coragem. As vagas de lava que se rasgam na planície e as incursões do machado inútil, o machado paternal, o machado com dentes de serra já não terão história. A centelha, sempre resplandecente, será glacial. Elevar-se-á teatral e vã, sobre um mundo demasiado afagado pelos simuladores. O monumento do dia fará os sonhos de fuligem.
Preparar-se-ão para o demolirem nos alicerces, logo que estiver saturado de sonho. Cairá enfiando-se umas partes nas outras, à maneira dos telescópios, como dizem os Ingleses, sem destroços ao longe. Então o telégrafo só aparecerá como o chapéu adornado de andorinhas de uma dama parisiense em 1889.
Entretanto, o céu e os seus derivados não fazem efeito no maciço. O sangue é mais procurado devido à sua cor complementar do verde da pele (1914-1918).
Após o sangue vem o negro da glória: peguem num livro branco, limpem-no, mergulhem-no folha a folha durante alguns minutos numa mistura pastosa formada por: 500 gramas de estrume de carneiro, uma pitada de sal, um copo de vinagre a que juntam 200 gramas de pó de bagas de sabugueiro e assinem.
As representações convencionais das origens geométricas da natureza só são sedutoras em função do seu poder de obscurecimento. O cristal é um dédalo seguido pelas toupeiras, as uvas queimam as últimas borboletas. Vista através da substância afrouxada, a paisagem seduz-nos com todas as suas masmorras. Peixes feitos de redes, pássaros de grades, mamíferos de gotas. A flecha odorífera do ar tendo-a atravessado de lado a lado faz que a nossa barca meta água num mar que se esvazia.
Que dizíamos nós? Ah! pois as ruínas empenachadas de avestruz, as ruínas continuam assaz
solidamente belas. Não existe senão um grau de calor entre a foliação do lilás e o último canto do cuco mas pode ter-se a certeza que este grau é bem empregado entre o trigésimo sétimo — daqui — e o quadragésimo segundo — ali.











andre breton e paul éluard
as mediações
a imaculada concepção

tradução franco de sousa
estúdios cor
1972






25 fevereiro 2010

andre breton e paul éluard / nada existe de incompreensível





Que atracção reuniu assim no fundo deste abismo, a mil metros abaixo do nível do mar, alguns dos maiores criminosos do nosso tempo? O local é fresco, mas mais claro que espinhoso. Nenhuma inquietação pelo futuro, nenhuma luz escondida, ali chama por aqueles que procuram através das paisagens as grandes confidências vivas. Uma pequena vivenda de arrabalde fura entre os maciços de coral e os cantos de esferas o seu pára-raios e o seu pombal junto da suave epiderme da alga vermelha. Os que habitualmente vêm a este sítio falam com mais gosto de ódio que de amor. O acaso, este ano, conduziu para esta clareira famosos artistas.
Troppmann, a Brinvilliers, Vacher, Soleilland, Haarmann… Que festa de caridade poderia gabar-se de reunir tão grandes artistas no mesmo cartaz? Contudo, lá estão sem nada terem combinado, por repouso, por estudo também, preparando na paz desta depressão os programas misteriosos de que não nasceram os executores esplêndidos.
Na serenidade das noites a Brinvillers ressuscita os seus venenos perdidos com aquela graça reflectida que lhe permite uma interpretação justa e verdadeira do pensamento arsenical. Vacher evoca a beleza das prostitutas apaixonadas, Haarmann come, Soleilland joga, Troppmann ri, todo um terreno vago nos olhos.
Na volta de alguns carreiros, roçando pelos mastros de barcos submersos, palavras sem canções misturam-se com esta atmosfera de piratas e talvez nunca o seu poder se tenha exercido com mais liberdade. A atracção que agiu nestes criminosos não deve ser mais do que esta pureza, este silêncio do abismo, que permite à linguagem assassina reencontrar, de certo modo, a sua juventude, o ponto de força e de acção onde é absolutamente ela própria, sem que nada a estorve ou a corrompa.
Nunca esqueceremos o dia em que, pela primeira vez, vimos Soleilland entrar no mar. O silêncio estabelecera-se pouco a pouco no quarto quando este homem alto e jovem se aproximou do leito e se sentou. Olhou a cabe leira clara pela qual passara a mão, recolheu-se e era como se tivesse querido passar um pouco da sua emoção e da sua sagacidade para os adoráveis anéis do seu cabelo. Nenhuma afectação neste recolhimento. Sentíamo-lo só e verdadeiramente naquele instante todos nós existíamos mais ou menos através dele. O fenómeno que liga tão estranhamente um homem àquilo que ama não existe aliás fora da autoridade, da exigência: é tanto um abuso da força como uma força e pertence à distracção dos demónios.
Quando a vozearia pública esmoreceu, quando ficou à altura do mar, quando deixou de ser o mais forte, Soleilland apenas descobriu os olhos da criança. Nascidos na surpresa eles afirmavam de súbito a vida num resumo violento e magnífico. Era qualquer coisa que nunca tínhamos encontrado: a obra encontrava neles a sua grandeza, a sua verdade, certas. Ela é longa: de uma ponta à outra a impressão é acrescida de um tal vaticínio que não era possível duvidar de ter assistido à consumação dos séculos.
Tudo se passava, dissemo-lo, sob o mar. Nós não fazíamos mais do que estar sobre a jangada com os nossos contemporâneos, logo bem pouco suspeitos de romantismo. Foi então que se admirou o génio de Soleilland o bem denominado. Compreendeu-se que ele se manifestava para além mesmo da inteligência, por um daqueles dons que fazem crer em qualquer coisa mais do que as habituais possibilidades humanas.
Quando dissemos a Soleilland o que pensávamos dele, respondeu-nos com uma voz juvenil:
— Porque me dizem isso?
— Porque o pensamos.
— Acredito em vós sem dificuldade.
Sorria, maravilhado por o poderem considerar como um dos maiores directores de consciência vivos.
— Mas que fiz eu? acrescentava ele. Sobrecarregava-nos de perguntas para nos ouvir justificar o nosso juízo; e, não tardou, como fosse a nossa vez de o interrogar, que nos contasse a sua infância ao sol, entre os princípios de seu pai e os pressentimentos de sua mãe que, muito jovem, o tinha iniciado nos grandes arcanos e não duvidava de que um dia teria de se tornar um «sol».
Trabalhava com alegria, e já era senhor da sua indiferença e senhor dos seus desejos, quando grandes perturbações sacudiram as suas mãos. Arrancou da parede a gravura que a adornava e representava um homem batendo numa mulher com um violoncelo e todas as suas forças, com o título: «Violoncelo que resiste». Tanto bastou, iria confessá-lo, para que os seus estudos terminassem, para que se tornasse naquilo que escutávamos naquela tarde, um jovem célebre nas profundidades da vida, e que conhecia a glória por não ter conhecido o coração dos outros.
Aquele que cumpre este destino magnífico só pensa em si mesmo: habita um mundo sem vítimas e não está surpreendido com a sua aventura, aqui em baixo, quando se fala com ele.










andre breton e paul éluard
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a imaculada concepção

tradução franco de sousa
estúdios cor
1972


18 novembro 2009

andre breton e paul éluard / a surpresa






Quando, agarrado na garganta pelo sentimento da duração, o homem renuncia a derrubar as absurdas construções da sua engenhosidade e se senta nos bancos da atenção, uma aragem glacial força-o a abotoar o casaco e a enfiar as mãos nos bolsos. Tenta corrigir com um sorriso que gostaria de tornar insolente o seu porte lamentável: as muletas da coragem estão quebradas, já nada caminha, tudo dispõe dele próprio. Abre então um jornal mas, em vão o vira em todos os sentidos, tem de se reconhecer que o dia de ontem se apresentou como dos mais calmos. Não falando de uma praga de gafanhotos sobre o Atlas, o transtorno não foi grande. O boletim meteorológico continua mudo acerca de toda a mudança de tempo de um género novo, tal como a passagem brusca do vento do órgão nas conchas ou do jorro de mulheres azuis de certas nuvens.

Não se faz a recordação da vida sem nos apercebermos que nunca encontrámos estes grandes fantasmas com olhos de carbúnculo que passam pelos livros, nem frernimos por nos encontrarmos uma noite nos braços da bela desconhecida que não esperávamos. Os momentos de pânico real foram curtos. As borboletas, felizmente, não se precipitaram para nós em massa bastante compacta para nos fazerem cair. Se a hidra com cabeças de mulher se mantinha numa pose indiferente rios terraços dos cafés, temos de confessar que, em contrapartida, ao olhar todas as noites para baixo dos seus móveis, ainda não conseguimos trocar algumas palavras senão com homenzinhos de vaidade. Pôde-se ver ao escrever a própria cabeça através da caneta, ouvir o ruído do caminho de ferro sacudindo papoulas, tocar com o dedo a estrela da sua pedra tumular, nunca se conseguiu guardar na mão um punhado de água, mesmo que não fosse senão para degolar o seu sósia em gotas de água.

Ninguém se pôde ver nos espelhos com outro rosto que não fosse o seu, nem transparente, nem fulgurante. Tudo se tem sofrido: o céu e os seus carneiros, todas as formas da tempestade e do verto, as circunvoluções do Sol e o seu viveiro de pássaros, o braseiro das canções fora de moda, os assobios das cóleras contidas, o velame estendido dos canais sanguíneos, pavilhão desfraldado nas têmporas, a luz válida, o tabuleiro de damas do seu jogo, esquecimento dos sonhos e o calendário. Nem um segundo de tréguas, unicamente um segundo um pouco mais longo do que os outros, nem um logro de 1 de Abril de Inverno. Demoras, sim, digamos a palavra como não teríamos vergonha de a dizer nos campos de corrida, demoras na presença, na ausência, na expectativa.

Que responder àqueles que não nos pedem o impossível, àqueles a que nada espanta? De olhos baixos, transportamos o fardo do silêncio desde sempre e para sempre. Não o largaremos antes de o ouvirmos suplicar que o façamos.

As mãos são foguetes que não partem, mesmo nos dias mais belos. Toda a gente se reuniu cedo de mais, nada está pronto. Os pneus das viaturas são novos, já não chove. O homem e a mulher que se amam não se amam bastante para se assassinarem na primeira vez que se vêem. Como chamá-los à boa recordação desta capa de livro, desta cobertura gelada colorida: ele, de mão no coração, ajoelhado diante dela, na via enlouquecedora, a uma volta de rodas do rápido (o Sublime Pecado)? Como mostrar-lhes, na parede por detrás dó seu leito, aquela ave planando cujas asas são feitas com duas lâminas de foice, cuja cabeça é uma borboleta espetada prestes a morrer?

Tudo está anunciado, tudo está previsto, tudo está inscrito. Urna fortaleza de sons defende o canto do rouxinol, as ilusões estão à altura da varinha mágica, a beleza dos vestidos é feita com a beleza dos corpos, a noite anuncia a aurora. Mas, por uma noite perpétua, que o rouxinol se cale, a fortaleza é conquistada.

A retorta desguarnecida de homem ainda que imperceptivelmente dourada resiste ainda às intempéries, à altura do trigésimo andar a construir da Torre de Saint-Jacques. É sustentada por dois anjos siameses. Só se consegue avistá-la quando se está completamente só.

À sombra da torre toda a terra aceita ser lavrada, aceita os seus mortos. As charneiras do pão fecham as portas da fome, o bom tempo fecha as prisões. É sempre, é nunca. Os seres possíveis interrogam os seres prováveis, já sem pais nem mães. Esperam a sua vez, fazem círculo, renunciam à luva da visibilidade. O homem, ao centro, não é mais do que a vela.









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tradução franco de sousa
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23 setembro 2009

andre breton e paul éluard / a força do hábito





A mesa está posta na sala de jantar; as torneiras distribuem água límpida, água tépida, água quente, água perfumada. O leito é tão grande para dois corno para um. Depois do rebento vai chegar a folha e depois da folha a flor e depois da chuva o bom tempo. Por que é chegada a hora, os olhos abrem-se, o corpo ergue-se, a mão estende-se, o fogo acende-se, o sorriso disputa às rugas da noite a sua curva sem malícia. E são os ponteiros do relógio que se abrem, que se erguem, que se estendem, que se acendem e que marcam a hora do sorriso. O raio de sol dá volta à casa em blusa branca. Ainda vai nevar, ainda vão cair algumas gotas de sangue pelas cinco horas mas não será nada. Oh! tenho medo, acreditei de repente que já não havia rua diante da janela, mas há, sim, lá está ela. O farmacêutico está quase a levantar a porta de ferro. Não tardará em haver mais gente à roda que no moinho, O trabalho talha-se, forja-se, desbasta-se, calcula-se. A mão volta a encontrar com prazer na ferramenta familiar a segurança do sono.

Assim isso dure!

O espelho é uma maravilhosa testemunha, variando sem cessar. Depõe com calma, com força, mas quando acabou de falar, nota-se que ele se corrige acerca de tudo. É a personificação corrente da verdade.

Sobre o caminho ricochete obstinadamente enlaçado às pernas da que volta a partir hoje tal como tornará a partir amanhã, sobre os jazigos ligeiros da despreocupação, mil passos em cada dia casam-se com os passos da véspera. Já se regressou, voltará a regressar-se sem se fazer rogado. Todos passaram por ali, indo da sua alegria à sua mágoa. É um pequeno refúgio com um imenso bico de gás. Põe-se um pé à frente de outro e aí vamos.

As paredes cobrem-se de quadros, as festas suavizam-se com ramos de flores, o espelho embacia-se de humidade. Quantos faróis sobre um regato e o regato está na vasa do rio. Dois olhos semelhantes, para servir o teu único rosto, — dois olhos cobertos pelas mesmas formigas. O verde está quase uniformemente distribuído pelas plantas, o vento segue as aves, não se corre o risco de ver morrer as pedras. O que se produz não é um animal domesticado, mas um animal domador. Ora! é a ordem imprescritível de uma cerimónia já tão faustosa, em suma! É o revólver de repetição que faz aparecer as flores no vaso, o hálito na boca.

O amor, com o tempo, renuncia tão bem a ver distintamente a noite.

Quando não estás lá, há o teu perfume que me procura. Não consigo fazer com que me restitua senão o oráculo da tua fraqueza. A minha mão na tua mão tão pouco se parecia com a tua mão na minha mão. A infelicidade, vês, a própria infelicidade ganha em ser conhecida. Tinha-te recebido como quinhão, não podes deixar de lá estar, és a prova de que existo. E tudo está de acordo com esta vida que para mim fiz para ter a certeza de ti.
— Em que pensas?
— Em nada.






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04 agosto 2009

andre breton e paul éluard / tentativa de simulação da demência precoce







A mulher que aqui está um braço sobre a sua cabeça pedregosa de amêndoas cobertas que saem daqui sem que se veja claro pois é pouco mais de meio-dia aqui ao sair do riso nos dentes que recuam através do palácio das Danaides que acaricio com a minha língua sem pensar que o dia de Deus chegou música na cabeça de rapariguinhas que choram trigo e se olham sem as verem chorar pela mão das graças na janela do quarto andar com reseda do gato que a folhagem ataca de flanco e de dia de festa. Ao fazer-me pão com o general das Termópilas lançado num triciclo e vermelho de ver. A selha é fecundada no céu pela Virgem imóvel na sua pipa. Deus faz-me línguas com o pão. Pesco montanhas. No pensamento do meu pensamento a grande casa com casas operárias na casa de pele humana com varanda de focas. O vulgar é supremo, embora haja tortura no leite de ovação e de evocação. Ele está ali com os seus olhos em teta, passo-o para os alvos de tiros. Disse três palavras a mais, tanto pior retiro-as, acrescento-as. Várias vezes mereci a morte, especialmente na Grécia por ter serrado a palmatória de um velho que perseguia os meus companheiros mesmo no meu leito de campanha. Desmascarei o maior criminoso da Caldeia. Para isso não tive de me servir da minha filha nativa das regiões baixas da visão de seu pai, todas as planícies a perder de vista que consomem canastras de madrepérola. Platina tu não te manténs de pé desde que o clarim da ausência sacudiu a tua eternidade. Pálido astro, pequena choupana no macaco de madeira que sufoco, tu cais das nuvens, tu retiras-te diante das quarenta maneiras de se servir da minha crueldade.
Quando era jovem, escondi Hércules na beira do meu fato de marinheiro, quando era velho restitui-lhe a liberdade ao fixar o seu resgate à minha pedra tumular em ricochetes. Ele ria por baixo da minha mordaça, um riso de hera. Mais tarde, como levasse avanço fiz germinar miríades de ovos de sapos provenientes de cruzamentos de caminhos com encruzilhadas de estrelas de cangurus no chapéu com gavetas de Napoleão da minha cómoda com pés de trevos sem folhas. Tenho como bisneta Cleo de Mérode, minha bisavó que viaja no dorso de lobo juntamente com Carlos, o Temerário. Ganhei um bilião de vezes a taluda à roleta jogando os nove meses do ano. Expulsaram-me em triunfo de todas as salas de esgrima porque queria apanhar o mel. Foi nesse dia que compreendi os sete mistérios da criação. Cleo de Mérode passava o seu tempo a querer calçar o pé da mesa com o mais claro dos meus rendimentos. Pus Cleo de Mérode na chancela do meu anel. Ela está tranquila, e desperta os mortos. Esterilizo todos os dados. O embrião mantém a sua aparência de chave inglesa, o ímpio já não se faz fanfarrão. Regulamentei a prisão por dívidas. É preciso mostrar carta branca para entrar e não subestimar os guardas. O tecto da prisão suporta as armaduras republicanas para os dias de gala. O reino dos inúteis terminou. Quiseram pôr-me uma barba falsa e fazer desempenhar o papel sepulcral de camareiro. Ameaçaram-me de me intrigarem com o rei de Agosto, mas eu rangi e disse-lhes quarenta e oito se não me largam a mão já não entrarei na caixa de moer para lhes fazer fogo.
Escrevi bem em bastardo na minha mala e fiz-mo registar pondo a cabeça de fora. Meteram-me no furgão dos leões, mas desde que me reconheceram já não tinham senão uma juba de margarida. Fiz puncionar mil leões durante o caminho no branco de muito que ficara livre. A seguir saltei do comboio que a si mesmo se atou. Tinha chegado.
Tirei o escalpe ao público. Pus a minha verdasca em todas as chaminés na noite de Natal.
Fui investido na confiança das pessoas ciumentas que me consultam para crimes passionais. Há razão para calafetar os sinos com as tranças das Francesas que não desbotam que já não têm senão o seu armário de espelho nas costas. Olho-me ali, ali me embalo e que se levanta? uma suspeita de piruetas desajeitadas nos joelhos de um velho senhor que satisfaz. Carreiras de lobas e cinzentos de chumbo, vi tudo. É preciso rir com os lobos.
Acredito na filatelia. Tenho as armas de Poitiers tatuadas no lado esquerdo do meu braço coberto por um xairel e as palavras pode-se prolongam artificialmente cada urna das pestanas da minha pálpebra superior enquanto que em cada uma das minhas faces se arredonda em rosa macabro a primeira letra de oui. A filatelia começou antes do homem, pelo início da época terciária. Os pterodáctilos saltam neste momento de uma margem para a outra do meu tinteiro. As imagens da boda não são obscenas: o padre devia trazer na sua casula um girino. As gomas enfoladas das serrilhas dos selos de correio cercam sempre com balões a nossa boa cidade. São precisos legumes frescos para os missionários, pois a antropofagia é contagiosa e dela só são suspeitos os selvagens. Um parricida em África arrancou um olho em forma de concha. As peças de jogo da carnificina são dez mil dedos ágeis.
Tenho um jazz no polegar alternando com um músico chinês que faz de unha. Estou enforcado num brinco de cerejas. Lancei todas as modas dos velhos tempos: a saia de esporas a arrasta-nascente, o globo com cruz na mão das crianças que chucham no polegar. Saboreei todas as iguanas que não se atreveram ainda a servir. Os dorminhocos não têm o mesmo cheiro das pessoas acordadas: se os despertam em sobressalto o cíclame espalha-se pelo quarto.
Tenho a mão de fathma nos Gémeos e um pé niquelado na Balança. A imensidade da minha natureza está compreendida entre duas picadas de vespas atreladas ao mesmo compasso que pede o biscato. Se é no lábio, existe beijo; se é nas nádegas, há Tibete.
Eu sou o avô, o pai, o sogro, o irmão, o cunhado, o tio, o genro, a nora, o primo, o padrinho e o cura do actual papa que não é mais do que um espião disfarçado, um amigo traidor ao serviço dos arquiduques de Tule. Não se poderá desmascará-lo senão mostrando à multidão a flecha do Parto cravada no seu ombro. Assim se unem os canalhas, os frutos adulterinos da criadagem e do colchão. Não temo senão ao ouvido a relojoaria dos Grandes Armazéns que construí amontoando 33000 raios de confeitaria sobre os tratados de paz. Um outro par de mangas sobre um outro par de ter razão sem estar lá, um outro par de mangas de outros braços sobre um outro par de mangas. Vai ter-se realmente em vista a manga do túnel sob a Mancha se os pinguins e os manetas são capazes de reconhecer o meu cérebro pelo grande Banhista do Bolo-Rei. É preciso servir-se do elevador para ir dos pés à cabeça pela imaginação mas, quando vejo as Repúblicas apresentarem-se à visita todas as semanas, lacro preciosamente o meu sangue depois de o ter posto em garrafas. O rapaz já não é tão sabedor acerca da sua sorte com as cadeiras nas quais se limita a sentar-se quilometricamente em relação a si mesmo sem marcar passo. Estou às cavalitas nos ombros de três raparigas que se dirigiam para ver melhor ao último andar da torre na qual me degolam enquanto desço o Niágara corno flutuador, em bola, em cana, em bola de som dos condenados que as jovens preferem e que libertam as jovens das armadilhas dos seus seios.
Nada darei às feras, matá-las-ei a golpes de adaga. Sou habitado de baixo para cima por urna matilha, o veado desce, põe-me no seu dorso de poltrona. O que vai escalar? O Sena desenrola-se, tenho a bobina, fio-a em fio de água por toda a parte. Tenho 21 000 vulcões em erupção. Faço fogo por todos os lados. Contudo desconfio dos 500 biliões de chamas que domo como cães. Estou em liberdade, o que me surpreende por parte da trovoada e da medicina dos simples. Escrevo aos notários a minha livre vontade em minha alma e consciência que jura perante o tribunal dizer toda a verdade ao insistir sobre as circunstâncias atenuantes e juro-o. Mas juro mandar o júri para os trabalhos forçados por me condenar a ser livre, laico e obrigatório. Não no mês de Julho mas no final e com carência em todos os duelos à lima e ao esquadro pelos meus superiores hierárquicos que se agarram as costelas em cada uma das minhas costelas. Nada fiz de mais que o mais e de menos que o mais e dei a liberdade a Deus que trazia urna gotilha de ouro que me entregou por estar livre e me conduzir pela mão nas pradarias com o botão de ouro.
Sob a palmatória dos corregedores que resmungam de viges os sumares de irdiana eu passo a tarde nos frascos sob o argério dos pimões. Salta por gluto. Constatei que o falecimento deseja trair numa gargalhada e submeter aos vivos a noite, esta seda rosa e branca do regresso da retardação das rasuras de ruptura. Riason ne hast gler. Comi à mesa de Fausto em crespins de machado e intimavam-se os convidados a passarem os olhos para azul para que o diabazulasse este passageiro azul que presidia com uma mão na minha mão, a outra nas suas rendas. E manchava-se até à medula. As brocas se rascacam umbeliferrantes com as ferraduras na manjedoura molhada e os fracosos engrenam os cadetesruivos. Eu quanto a mim eu abaixo-assinado eu me consequenco. Sentimentos com velas habituam-me ao apartamento para alugar com abrigo para o meu povo e o entendimento com cogumelos criqueta-me a erva preparando-se para a necessidade de arrancar a cabeça. E subir a um oleoto para tagarelar que ao Reno a Pátria reconhecida, ao Reno remorsos modernos e dos nossos Lorelei às apalpadelas ao baixar-se. Quando me ponho de capa dos pés a cabeça para ser a faia, o ante-nome, o contra-nome, o entre-nome e o Pártenon roga-me e eu digo não e canhão e disparo e o obus ricila e vai perder-se em mim e em mim e repercute em mim. Docemente a mirabonda e as fendas da galinha obstruem-se com darinça e arbila de Brioude no cotovelo o gafanhoto do cotovelo come o Inverno dos Heindes e dos Niobays de Soude. O frifro absorve-se pelo obo de eracmo. Bailarica-se nas pinças enquanto Aladino quiquiqui. Pedro é silogono em cachimbo de mucedro em ouro e em portanto, minhamuito e minhadernais. O andar de baixo é ocupado por Paris. O x exaspaltera o fogo de Seltz. Bataver e rolser em divisa de rabo de rato condecoram superviga o Onifonargelinglesa. Eu como para comoer de como é teu. Mas sim é da minha linhagem. Equivoqe jouh dir de ener o sistelo, as rubricas do teu saber se frisasasariam sem tardar. A açafanálise reduz as frubas de drona e posta doze quatro vezes oito. Maneira de aumentar o cieiro ceifar seis fica débito de exergo. Pego em onze e corto-os em onze fica onze que liassiprono de sam. Danret! Fina e funda que se climatoriza sem saber. Em beelza biribiada de léxicos negros que rondoce antes Que a Fronguarnição não Se adjective como Umdois que se adpalavra na língua e não na provisa, eu vos moeudo para mim que Marguesclin quem Dortapostrofa. E Quem heliotemposa os mercados das taças. Começamos por cada um nofoforo/lofoforo = Filho de Judas rondeva, que A Lineu pastor hipomito U vraili ouabi bencirog platol fernaca gla... lanço. U qualon purlo ouam gacirog olaiarna oual, u feaiva zuaïlo, gaci zulo Gaci zulo plef. U feaiva oradarfonsedarça nic olp figilê. U elaïaipí mouco drer hôdarca hualica-siptur. Oradar-gaçirog vraïlirn... u feaiva drer kurmaça ribag nic javli.








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as possessões
a imaculada concepção

tradução franco de sousa
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19 maio 2009

andre breton e paul éluard / tentativa de simulação do delírio de interpretação





Quando se acabou este amor, encontrava-me como a ave no ramo. Já não servia para nada. No entanto observava que as manchas de petróleo na água me devolviam a minha imagem e apercebi-me de que a Pont-au-Change, junto da qual se encontra o mercado das aves, se curvava cada vez mais.

Foi assim que um belo dia passei para sempre para o outro lado do arco-íris à força de ver as aves furta-cores. Agora nada mais tenho a fazer na terra. Assim como as outras aves digo que já não tenho que cumprir na terra, de dar testemunho de presença alada sobre a terra. Recuso-me a repetir convosco a canção primaveril: «Morremos pelos passari-i-nhos, façam bem aos passari-i-inhos!»

A variedade de cores da chuvada fala papagaio. Choca o vento que sai do ovo com grãos nos olhos. A dupla pálpebra do Sol levanta-se e baixa-se sobre a vida. As patas das aves sobre o vidro do céu são o que eu recentemente chamava as estrelas. A própria Terra de que tão mal se explica a marcha, enquanto se vive sob a abóbada, a terra espalmada pelos seus desertos está submetida às leis da migração.

O verão de pena não acabou. Abriram-se os alçapões e ali se enfiaram searas de penugem. O tempo tem a sua muda.

O galo do campanário adorna o fumo dos tiros enquanto a viúva de peito alaranjado volta ao cemitério cujas cruzes são o ponteado minúsculo dos diamantes do Senegal e que o homem continua a imaginar-se na terra como o melro no dorso do búfalo, sobre o mar como a gaivota na crista das vagas, o melro sólido e a gaivota líquida.

Horo, de dedo na boca, é a avalanche. Eu não tinha visto estes passarinheiros que procuram homens no céu e se apanham no ninho com as pedras que atiram para o ar.

As fénix vêm trazer-me o meu alimento de vermes brilhantes e as suas asas que incessantemente se reanimam no ouro da terra são o mar e o céu que só se vêem esbraseados nos dias de tempestade, e que escondam as suas cristas de raios nas penas no momento em que adormecem sobre o único pé do ar.

Os moinhos dos relâmpagos quebraram-lhes a concha e escapam em voo rápido, a aragem come as dunas, o horizonte tenta evitar as nuvens.

Reconhecereis que os vossos leitos-gaiolas, e as vossas grades torcidas, e os vossos sobrados picados, e os vossos e as vossas moscadas e os vossos espantalhos à última moda, e os vossos fios telegráficos, e as vossas viagens em compartimentos de pombo, e o soco de cordeiros das vossas estátuas de rapina, e as vossas corridas de sebes feitas ao crepúsculo de pintarroxos que levantam voo, e as horas, e os minutos, e os segundos nas vossas cabeças de pica-paus, e as vossas gloriosas conquistas, contudo, as vossas gloriosas conquistas de cucos! Todas armadilhas de graça nunca ali estiveram senão para me fazerem passar as barreiras do perigo, as barreiras que separam o medo da coragem. Não contem mais comigo para vos fazer esquecer que os vossos fantasmas têm a forma das aves-do-paraíso.

No começo era o canto. Toda a gente às janelas! De uma margem à outra já não se vê senão Leda. As minhas asas redemoinhantes são as portas pelas quais ela entra no pescoço do cisne, na grande praça deserta que é o coração da ave da noite.









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16 março 2009

andre breton e paul éluard / tentativa de simulação da paralisia geral





Minha grande adorada bela como tudo na terra e nas mais belas estrelas da terra que eu adoro minha grande mulher adorada por todos os poderes das estrelas bela com a beleza dos biliões de rainhas que adornam a terra a adoração que tenho pela tua beleza põe-me de joelhos para te suplicar que penses cm mim ponho-me aos teus joelhos adoro a tua beleza pensa em mim tu minha beleza adorável minha grande beleza que adoro faço rolar os diamantes no musgo mais alto que as florestas de que os teus cabelos mais altos pensam em mim — não me esqueças minha mulherzinha nos meus joelhos na altura ao canto da. lareira sobre a areia em esmeralda — olho para ti na minha mão que me serve para me firmar em tudo no mundo para que tu me reconheças por aquilo que sou minha mulher morena-loura minha bela e minha tola pensa em mim nos paraísos com a cabeça nas minhas mãos.
Eu não estava cansado dos cento e cinquenta castelos onde nos íamos amar irão construir-me amanhã outros cem mil cacei das florestas de baobás de teus olhos os pavões as panteras e as aves-liras eu os encerrarei nos meus castelos fortes e iremos passear ambos nas florestas da Ásia da Europa da África da América que rodeiam os nossos castelos nas florestas admiráveis dos teus olhos que estão habituados ao meu esplendor.
Não tens de esperar pela surpresa que te quero fazer pelo teu aniversário que é hoje no mesmo dia que o meu — vou fazer-ta imediatamente pois esperei quinze vezes o ano mil antes de te fazer surpresa de te pedir para pensares em mim às escondidas — quero que penses em mim rindo minha jovem mulher eterna. Contei antes de adormecer nuvens e nuvens de carros cheios de beterrabas para o sol e quero levar-te à noite à praia de astracã que estão prestes a construir com dois horizontes para os teus olhos de petróleo para fazer a guerra eu te levarei por caminhos de diamantes pavimentados de primaveras de esmeraldas e o manto de arminho com que quero cobrir-te é urna ave de rapina os diamantes que teus pés pisarão mandei-os lapidar em forma de borboleta. Pensa em mim que não sonho senão com o teu clarão onde adormece o luxo alegre de uma terra e de todos os astros que conquistei para ti adoro-te e adoro os teus olhos e abri os teus olhos abertos a todos aqueles que viram e darei a todos os seres que os teus olhos viram vestidos de ouro e de cristal vestidos que deverão tirar quando os teus olhos os tiverem embaciado com o seu desprezo. Sangro no meu coração apenas com as iniciais do teu nome num estandarte com iniciais do teu nome que são todas as letras de que o z é a primeira no infinito dos alfabetos e das civilizações onde te amarei ainda pois queres ser minha mulher e pensar em mim nos países onde já não existe termo médio. O meu coração sangra na tua boca e volta a fechar-se na tua boca em todos os castanheiros-rosas da avenida da tua boca onde vamos na poeira deslumbrante deitarmo-nos entre os meteoros da tua beleza que eu adoro minha grande criatura tão bela que eu estou feliz por embelezar os meus tesouros com a tua presença teu pensamento e teu nome que multiplica as facetas do êxtase dos meus tesouros com o teu nome que eu adoro porque encontra um eco em todos os espelhos de beleza do meu esplendor minha mulher original meu andaime de pau-rosa tu és a minha culpa da minha culpa da minha muito grande culpa como Jesus Cristo é a mulher da minha cruz — doze vezes doze mil cento e quarenta e nove vezes te amei com paixão no caminho e estou crucificado ao norte a este a oeste e ao norte pelo teu beijo de rádio e quero-te e és no meu espelho de pérolas o hálito do homem que não te trará à superfície e que te ama na adoração minha mulher deitada de pé quando estás sentada a pentear-te.
Tu virás tu pensas em mim tu virás tu correrás nas tuas treze pernas cheias e em todas as tuas pernas vazias que batem o ar com o baloiçar dos teus braços urna multidão de braços que querem enlaçar-me a mim de joelhos entre as tuas pernas e os teus braços para te enlaçar sem receio de que as minhas locomotivas te impeçam de vir até mim e sigo-te e estou diante de ti para te deter para te dar todas as estrelas do céu num beijo nos olhos todos os beijos do mundo numa estrela sobre a boca.



Bem teu em archote.




P. S. — Queria um botim para a missa com uma corda de nós para marcar as páginas. Traz-me também um estandarte franco-alemão para eu colocar no terreno vago. E uma libra de chocolate Menier com a menina que cola anúncios (já não me lembro). E depois mais nove dessas meninas com os seus advogados e os seus juízes e tu vem no comboio especial com a velocidade da luz e os bandidos do Far-West que me distrairão um minuto que aqui salta infelizmente como as rolhas de champanhe. E um patim. O meu suspensório esquerdo acaba de se partir eu levantava o mundo como uma pena. Podes fazer-me um favor compra um tank quero ver-te chegar como as fadas.








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07 janeiro 2009

andre breton e paul éluard / tentativa de simulação da mania aguda





Bom dia, Senhores, boa noite, Minhas Senhoras e Companhia do Gás. Senhor Presidente, estou às suas ordens, tenho um chapéu tricorne negro na minha bicicleta. Puseram o gato, o cão, a minha mãe e o meu pai, os meus filhos, a águia na sua carrocinha, puseram os espécimes pobres no furgão, cujos eixos giram, giram e giram. De uma ponta à outra, as agulhas caem como feridas à sabrada. O cemitério está na ponta da aldeia perto da câmara municipal. Aí está o que não é para reatar as cadeias da família em tempo de fome.

O cocorocó das elegantes anima as alíneas dos escrivães. Existe ali Lamartine que dormia num estandarte em cima da carreta de urna garupa de lebre a toda a velocidade, existia lá Bazaine que ia entregar Sedan a César. Tu, por exemplo, não estás lá: tu tens um regador, tens uma perna cortada, isso sorna duas pernas que eu salto no mês de Janeiro. Em Fevereiro colho as favas. Em 1930 vivo dos meus rendimentos.

Atingido por uma insolação no alto do céu, o Parisiense acaba por armar uma rede de patos. Não se grita por socorro, mas auréola, e a dignidade encontra-se nela bem. Tenho processos absolutamente seguros para colher o feno do fauno. Um massagista ofereceu-me uma amassadeira. É para as reler ao canto da lareira que trago comigo as obras dos Titãs e dos Tântalos. Não tenho necessidade de os mencionar no inventário das minhas invenções. A pintura faz-se notada. Respeito Monsieur Courbet, Monsieur Ingres fatiga-me. Foices eclipsam a meus olhos a couraça. Aqui, a propósito disto, avisei os gendarmes: não sacrificamos jogos de cartas à pequena preguiça; não é uma razão para estarmos enforcados em corvos com vinte metros de altura, para irmos gritar «Arre» às árvores mortas.

O casamento de Maria consumou-se no meio de um transbordamento de suspiro. Foi preciso separar o construtor da sua obra. Ele misturava demasiadas arquitecturas a esta carcaça de tijolos que ceifa as sanguessugas nas belas tardes de Verão. O ventre conserva-se inteiramente vivo na mão. Eu gosto de estar deitado sobre o ventre, com a condição de não ser sempre o meu., bem entendido. As mulheres são mãos pequeninas em Paris e mãos grandes no campo. Comem os pardais no Luxemburgo. Não compreendo o esperanto mas acho que a esperança desordenada começa por si mesma. Aposto urna bexiga contra uma lanterna de um gato-pingado em como não existe a eternidade. A eternidade é o éter e mais nada. Fiz os meus estudos em casa de uni advogado que me dizia: Nunca confesse. Na junta de saúde fui reformado pela visão.

Possuo um pavilhão de caça. Uma porta de verdura fecha a herdade de uma ponta a outra. Eu recolho as apostas. O quinteiro tem um chapéu que eu usei, é uma oferta da quinteira. No fundo do chapéu há o meu retrato com os pés no ar (pois é o chapéu quem olha). As crianças que brincam à volta deles apanham bofetadas. Se se batesse o sangue como se bate o leite, iriam fazer-se observações. Bismarck dizia-me no outro dia: «Agarra o teu tempo, que eu apanhei bem a Alsácia.» Bebemos uma taça de champanhe no Champ-do-Mars. O florista que espezinha os canteiros espezinha as áleas. Para a caça que ele leva levantam patíbulos de forca.

Não tenho como finalidade senão o símbolo da oração que dirijo todas as tardes, à minha meca. A bárbara pede perdão. Tiro o meu prazer da barba à imperial onde o encontro. A feitiçaria é uma devassidão que desemboca na sala de lavores, a obra de caridade. Se me rio é por causa da alva nos joelhos, uma bela carapuça de piolhos em cima da cabeça. O filho de Louise mudou a espingarda de ombro. Ele não cumpre dos seus deveres militares senão
o estritamente necessário: o capacete. Fraternizar igualmente com sua irmã.

Escrevo desenho, tenho boca de lobo, tenho a minha mulher comigo na minha cama, mesmo quando estou de pé. Ela trabalha para mim a entregar-se a todos os prazeres. Dou-lhe o seio assim como aos filhos que afago no ângulo. Ao mais pequeno chamo São Tomás, o pequeno São Tomás, e à maior; Primavera. É muito bonito. Toda a gente me felicita. Fiz com que fizesse a primeira comunhão em cima do balcão com um biscoito. Isto é o meu sangue, explicava-lhes eu. Depois comemos bacalhau salgado debaixo das franjas do candeeiro. E meti-os num colégio. Há mais de dez anos que não tenho notícias deles. Quem sabe se a pequena não se casou e divorciou. Minha mãe casou-se com o Xá da Pérsia, alugaram uma loja em Passy, uma espécie de casa de passe com passagem de nível para os homens sós. O xá chega cedo ao castelo, minha mãe é furta-cores.

Trago comigo uma canção que as raparigas gostam de cantar, eu empresto-a. Em troca elas confiam-me o seu primeiro livro de valor que lhes foi entregue com uma coroa seca. Recuso assinar os beijos que elas me dão. Faço-lhes sinal para terem paciência. Já não tenho idade de ter horror pela tempestade. Na nossa cama, tocamos a quatro mãos uma ária de Luili que nunca li na cama, a Paiva penteia-se a tomar banho, romanza, e também a ária da Viúva às escuras. Eu arrasto os sobejos de reconhecimento para os sorrisos que brilham à minha volta. Não me detenho com precauções inúteis.Suporto o fardo que me deram porque é quente mas só me preocupo com as ninfas. Há uma que esconde uma fonte no sovaco. Os oleiros à noite ali vão procurar a cor fugitiva.

Um dia disse para mim: O que faz esta chave na minha algibeira? Fui então a Mans ver Clemenceau. Disse-lhe: «Sabe o que esta chave faz na minha algibeira?» Ele pôs-me um olho negro e eu tive de ficar de guarda à Câmara dos Deputados durante vinte e quatro horas. Roubei a fechadura, depois de me ter certificado que estava realmente à temperatura da Câmara. Com medo que o Presidente se escondesse com as consequências deste incidente, mandei dourar seis dentes e apanhei um balão para voltar a casa. No balão encontro Gambetta. Digo-lhe: «Sabe O que faz este balão no céu?» Ele atira-me pela borda fora mas o meu cerco estava feito havia muito tempo. Era o cerco de Paris. Assino a paz e vou buscar o papel mata-borrão aos Inválidos. Na esplanada encontro Madame Curie que volta das corridas. Digo-lhe «Não tem vergonha de correr assim na sua idade?» Ela empresta-mo o seu cavalo e eis que chegamos ao seu ranch, faubourg Saint-Germain. Ali fizemos experiências de germinação espontânea. Entendia-me bem com Pasteur mas a sua irmã fez quanto pôde para me tornar a vida impossível. Dormia com um olho aberto e outro fechado. Urna noite, a aia percebeu que, muito habilmente eu a via a despir-se. Gritou tanto que toda a gente apareceu e se lançou sobre mim para me forçar a partir.

… … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Agora não me meto em mais nada, embora a guerra tenha acabado. Deito-me debaixo das pontes dos rios sem água cortados pela chuva, já não agradarei a ninguém, já não sou eu sequer quem está na minha mala de porco, não tenho fome, não tenho medo: cobarde de mais para ter medo, comilão de mais para comer. Fui eu quem tive de amputar a mulher do sexo do homem com o pretexto de cirurgia estética. Estou mais acabado que um folhetim. Ninguém se daria ao trabalho de me dar trabalhos. Estou magro como um cepo que só tem a sombra da sua única folha. Sou realmente um qualquer, arrasto-me sobre os fechos da minha janela, deviam abater-me com assobios deviam prestar-me o imenso serviço de se servirem do meu pé para pé de mesa.








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13 novembro 2008

andre breton e paul éluard / tentativa de simulação da debilidade mental





Entre todos os homens, com vinte e quatro anos, reconheci que para nos elevarmos à categoria de homem considerado não era preciso ter mais do que eu a consciência do seu valor. Sustentei há muito tempo que a virtude não é estimada, mas que meu pai tinha razão quando queria que eu me elevasse muito alto acima dos seus confrades. Em absoluto não compreendo que se conceda a Legião de honra a personalidades estrangeiras de passagem em França. Acho que esta condecoração devia estar reservada para os oficiais que fazem actos de bravura e para os engenheiros de minas saindo da Politécnica. De facto é preciso que o grande mestre da Ordem de Cavalaria não tenha bom senso para reconhecer mérito onde ele não existe. De todas as distinções, oficial é a mais lisonjeira. Mas não se pode passar sem diploma. Meu pai deu aos seus cinco filhos rapazes e raparigas a melhor instrução e urna boa educação. Não é para aceitar um emprego sem retribuição muna administração que não paga. Aqui está a prova: quando se é capaz, como meu irmão mais velho, que várias vezes concorreu nos jornais para obter o fim desejado contra bacharéis em Letras e Ciências, pode dizer-se que se tem a quem fazer frente. Mas em cada dia seu trabalho, diz o provérbio. Trago na algibeira de dentro do meu casaco de Verão os planos de um submarino que quero oferecer à Defesa Nacional. A cabina do comandante está desenhada a vermelho e os canhões lança-torpedos são do último modelo hidráulico, com comando artesiano. Os ases da estrada não apresentam mais energia do que eu. Não me sinto constrangido por garantir que esta invenção deve triunfar. Todos os homens são partidários da Liberdade, da Igualdade, da Fraternidade e, eu acrescento, da Solidariedade mútua. Mas isto não é uma razão para não nos defendermos daqueles que nos atacam pelo mar. Escrevi ao Presidente da República uma carta secreta em papel ministro pedindo para o ver. A esquadra mediterrânica cruza neste momento ao largo de Constantina, mas o almirante concede poucas licenças. Um soldado por mais que faça tem de se pôr de joelhos por humildade diante do seu superior, ordens são ordens. A disciplina beneficia quando o chefe é justo mas firme. Não se dão gaIões a torto e a direito e o Marechal Foch merecia ser realmente o Marechal Foch. O livre-pensamento tem estado errado em não se pôr ao serviço da França.

Apoio também que se mude o nome aos fuzileiros navais, fiz uma diligência nesse sentido junto da Liga dos Direitos do Homem. Este nome é indigno do seu colarinho anil. Cabe-lhes a eles, aliás, fazerem-se respeitar. A Grécia da Lacedemónia era orgulhosa de urna maneira diferente. Enfim o homem crê em Deus e viram-se grandes cabeças pedirem a extrema-unção, é já um ponto importante.





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09 setembro 2008

andre breton e paul éluard / as possessões







Os autores têm o escrúpulo de garantir a lealdade absoluta da iniciativa que para eles consiste em submeter, tanto aos especialistas como aos profanos, as cinco seguintes tentativas, nas quais a menor possibilidade de empréstimo dos textos clínicos ou de imitação mais ou menos hábil desses mesmos textos bastaria evidentemente para fazer perder toda a razão de ser, para as privar de toda a eficácia.


Longe de sacrificar por gosto ao pitoresco ao adoptar sucessivamente, com confiança, as várias linguagens usadas, com ou sem razão, pelas mais inadequadas ao seu objecto, sem mesmo se satisfazerem em conseguir um real efeito de curiosidade, esperam, por um lado, provar que o espírito, erigido poeticamente no homem normal, é capaz de reproduzir nos seus grandes traços as manifestações verbais mais paradoxais, mais excêntricas, que está no poder deste espírito submeter-se pela sua vontade às principais ideias delirantes sem que nele exista uma perturbação durável, sem que isso em nada seja susceptível de comprometer a sua faculdade de equilíbrio. De resto, não se trata de maneira alguma de conjecturar acerca da perfeita verosimilhança destes falsos estados mentais, sendo o essencial fazer pensar que com alguma preparação se poderiam tornar perfeitamente verosímeis. Que se faria então das categorias orgulhosas nas quais se divertem a fazer entrar os homens que tiveram as suas contas a ajustar com a razão humana, esta mesmo razão que quotidianamente nos nega o direito de nos exprimirmos pelos meios que nos são instintivos. Se posso sucessivamente fazer falar pela minha própria boca o ser mais rico e o ser mais pobre do mundo, o cego e o alucinado, o ser mais receoso e o ser mais ameaçador, como iria eu admitir que esta voz, que, em definitivo, é unicamente a minha, me venha de pontos mesmo provisoriamente condenados, de pontos onde, com o comum dos mortais, tenho de desesperar de ter acesso.

Não nos ofendemos por permitir por outro lado, a confrontação destas cerca de trinta páginas, na elaboração das quais presidiram certas intenções confusíonais, com os outras páginas deste livro e as páginas doutros livros definidos como surrealistas. Tendo o conceito de simulação em medicina mental o seu curso quase só em tempo de guerra e cedendo o lugar, de outra forma, ao de «sobre-simulação» esperamos impacientemente saber em que base mórbida os juízes competentes na matéria estarão de acordo em dizer que operámos.

Enfim declaramos ter-nos agradado muito especialmente, este novo exercício do nosso pensamento. Por ele, em nós, ganhámos consciência de recursos até então insuspeitados. Sem prejuízo das conquistas que anuncia em relação à mais elevada liberdade, consideramo-lo, dentro do ponto de vista da poética moderna, como um notável critério. Basta dizer que proporíamos como de toda a vantagem a sua generalização e que, a nossos olhos, a «tentativa de simulação» de doenças que encerra substituiria vantajosamente a balada, o soneto, a epopeia, o poema sem pés nem cabeça e outros géneros caducos.










andre breton e paul éluarda imaculada concepçãotradução franco de sousa
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17 julho 2008

andre breton e paul éluard / a morte







Um chamalote de campo esconde na sua trama uma fornalha de insectos. De mão em mão, o furão passa com a forma de escorpião na nassa da maldade. Vem florinha intraduzível, por aqui (ela esconde-se). Eh lá! motorista (ele desce do seu lugar e foge). Espere, lembrava-me porém de um nome… Uma pá de diamantes a quem me trouxer de volta ao cão que era!

E nada esqueço. Há ainda uma garrafa de sangue para quem se compromete a viver com as imagens que eu não quis.

Sinto-me terrivelmente melhor. As vãs palavras que me tinham posto na boca começam a fazer o seu efeito. Os meus semelhantes abandonam-me. Com a mão na juba dos leões, vejo o horizonte enganador que pela última vez me vai mentir. Tiro vantagem de tudo e das suas mentiras com forma de lixo e daquele pequeno rodeio que faz ao passar sempre por minha casa.
Nada me serve tão bem como quando ele me encontra.

Mesmo assim que exame estúpido! Ter-me-ia saído bem, com todo o rigor sem aquela pequena pergunta de história. Felizmente não me tinha apresentado.

As viagens sempre me levaram demasiado longe. A certeza de chegar nunca me pareceu mais do que a centésima campainhada a uma porta que não se abre.

O próprio sofrimento era possuído. Quando esta mulher com corpo de gelosia veio abanar-se no meu leito, compreendi que devia ter frio. Tive frio. Mas a juventude velava: na verdade ainda mal tinha sofrido. Devo confessar que fiquei com a sua cabeça sobre o meu peito. Além, aquela claridade, é a sua forma nocturna que não pode desaparecer e sustenta a noite e procura a luz onde já não existo.

De resto, o poço fica todo em superfície. O caracol do Verão nos cabelos da Primavera explicou-me demoradamente o que á a promessa. A chuva bestial trazia nas suas antenas o progresso que coxeia no musgo. E canta sempre o capricho taciturno e ameaçador que tudo deixa perecer. O som da sua voz é uma cicatriz.

Cá está a grande praça gaga. Os carneiros chegam a toda a velocidade, em andas.









andre breton e paul éluarda imaculada concepção
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20 maio 2008

andre breton e paul éluard / a vida





Da flor japonesa à coxa da rã galvanizada, vai ser preciso dormir muito para nos apercebermos da transformação. Da porta que é um corpo-a-corpo, à janela que é uma peleja, o soalho é um papagaio, o tecto um corvo que teve medo.

Há ainda a recordar do dia seguinte, a recordação de atrozes aventuras num nevoeiro de enforcado. Sabe que foi denunciado, que um parapeito está dali em diante à sua volta para o impedir de se lançar no relógio inútil que se pôs a indicar as horas. A aurora da tarde filtrada lembra-lhe a carne pura que, na proximidade dos homens, sempre desaparece num ruído de canaviais. Porque ele tocará a carne muito tempo sem a sentir e, quando a sentir, será à maneira daqueles animais encantadores que apenas sonham com a liberdade.
Toda uma rede de caretas e de contorções se opõe a que a jangada da sua idade regresse à secreta fonte do seu coração. A tarde em vão fecha a porta, uma estrada de passos, de sons, de esperança e de fadiga sempre lhe mostra aquelas grandes construções negras em que tudo para ele se compõe.

O vago substitui pouco a pouco o determinado. Em vez do sangue estende-se o mata-borrão, o mata-borrao que se embebe nas suas cartas sempre maniacamente datadas de Creusot. Olhos puros de nuvens pousam sobre ele como a ave na sua sombra. Lâmpadas varrem com a sua saia de pedra a escadaria de prata que vai dar ao grande ar dos países sem janelas. Que procura então este homem que faz uma mancha na terra? Este pobre quebra-luz lá está sobre a lâmpada das estrelas cadentes. Debate-se com a sombra matizada que choca nas suas pregas ovos de galinha-d’água, donde nascerão em hora adiantada o dever, a oportunidade a pequena felicidade e o fracasso. Os poderes do desespero com as suas rosas de sabão, os seus afagos desencontrados, a sua dignidade mal vestida, as suas respostas fugidias a perguntas de granito apoderam-se dele. Levam-no à escola das escórias, depois de o terem trajado com um avental de fogo. Persuadem-no de que o cabo de vassoura das bruxas cai a pique numa eternidade grotesca de retaguardas brilhantemente esclarecidas. Bocejam-lhe na cara sobretudo, e o que tem de mais trágico, bocejam sobre a mulher sem sequer terem o cuidado de pôr a mão sobre a boca, bocejam dos frutos da mulher com aroma de amêndoas amargas, bocejam da beleza, bocejam da duração, bocejam da recusa desta beleza e desta duração.

Uma manhã, ele lá está, a ver respirar uma cabeleira de anémonas. A rua saúda com todas as suas rodas, Entre todos os astros este... entre todos os astros… este que se submete a este astro inesquecível... Está tão perfeitamente só que se exceptua do total. Fita o dorso dos livros que se arqueiam. Escuta a música que brilha nos sapatos. Por vezes, ao meio-dia, sorri doze vezes. Sorri também à noite, quando tem medo. Põe em todas as suas sensações as algemas do sorriso.








andre breton e paul éluarda imaculada concepção
tradução franco de sousa
estúdios cor
1972





31 março 2008

andre breton e paul éluard / o nascimento



O cálculo das probabilidades confunde-se com a criança, negro como a mecha de uma bomba posta na passagem de um soberano que é o homem por um anarquista individualista da pior espécie que é a mulher. O nascimento, tirando isto, não é mais que uma rotunda. Uma tal auréola aplicada ao filho do homem e da mulher não corre o risco de que possam parecer menos insípidos os cueiros de rato que lhe prepararam e o berço como um esgoto onde o despejam com a água suja e o sal da tolice que permitiu esperar a sua vida como a de uma fénix obediente.
O vizinho afirma que ele é feito à imagem do fogo de lenha, a vizinha que não o podem comparar melhor que ao aspecto dos aeroplanos e a fada degenerada que fixou domicílio na cave inclina-se a dar-lhe como antepassado o gipso em ferro de lança que tem um pé na ociosidade e o outro no trabalho.
Para todos, ele traz em si as suas promessas. Cada um quer aprender a sua língua filial e interpreta o seu silêncio. Diz-se em toda a parte que com a sua presença favorece um mundo que já não podia passar sem ele. É o agulheiro de gatinhas, aquele que provoca com certeza o descarrilamento com panorama de ponte, celebrado pelo Petit Journal Illustrè. Traz em medalhão o salvamento, «Papá» é um disco em forma de lua, «Mamã» é côncava agora como a baixela.
Para suspender o efeito de uma presença tão obstinada como a do vaso de latão sobre a chaminé de salitre, um raio de mel veio esconder-se no quarto. Todos os cumprimentos do uso foram inúteis. Não há ninguém aqui. Nunca aqui existiu alguém.






andre breton e paul éluard
a imaculada concepçãotradução franco de sousa
estúdios cor
1972



13 janeiro 2008

andre breton e paul éluard /a vida intra-uterina



Nada ser. De todas as maneiras que o girassol tem para amar a luz, o pesar é a mais bela sombra no quadrante solar. Ossos cruzados, palavras cruzadas, volumes e volumes de ignorância e de saber. Por onde é preciso começar? O peixe nasce de uma espinha, a macaca de um caroço. A sombra de Cristóvão Colombo ela própria gira sobre a Terra de Fogo, não é mais difícil do que o ovo.
Uma grande segurança — e grande sem termo de comparação — permite ao espectro negar a realidade das formas que o encadeiam. Mas ainda não nos encontramos lá. Os gestos proibidos das estátuas no molde deram estas figuras imperfeitas e espectrais: as Vénus cujas mãos ausentes afagam o cabelo dos poetas.
De uma margem para a outra, as lavadeiras lançam o nome de um personagem fantástico que percorre a terra simulando ódio por quanto beija. As suas canções são tudo o que me arrebata e que no entanto é arrebatado, como os pombos-correios fotógrafos obtêm sem o quererem panorâmicas do campo inimigo. Os seus olhos estão menos distantes de mim que o abutre da sua presa. Compreendi que o rosto da mulher só se desvenda durante o sono. Está em deslumbramento, entre as pastagens religiosas dos céus. Quer de dentro, quer de fora, é a pérola que mil vezes vale a morte do mergulhador. Por fora é a fronde admirável, por dentro é a ave. Os espinheiros dilaceram-no e as amoras mancham-no de negro, mas concede aos silvados a singular fonte do seu fervilhar de luz. Não é possível saber aquilo em que se tornou desde que o descobri.
A corça entre dois saltos gosta de me olhar. Faço-lhe companhia na clareira. Caio lentamente das alturas, não peso ainda senão o que dão a pesar de menos cem mil metros. O lustro apagado que me ilumina mostra os dentes quando afago seios que não escolhi. Grandes ramos mortos os trespassam. As válvulas que se abrem e se fecham num coração que não é o meu e que é o meu coração são tudo o que cantará de inútil numa medida a dois tempos: grito, ninguém me ouve, sonho.
Este deserto é falso. As sombras que escavo deixam aparecer as cores como outros tantos segredos inúteis.
Vou, diz-se, ver. Vou, vê-se, ouvir. O silêncio a perder de vista é o teclado que começa por estes vinte dedos que não existem. Minha mãe é um pião, de que teu pai é o cordel.
Tenho para seduzir o tempo adereços de calafrios, o regresso do meu corpo em si mesmo. Ah! tomar um banho, um banho dos Romanos, um banho de areia, um banho de areia de jumenta! Viver como é preciso saber ligar as veias num banho. Viajar no dorso de uma medusa, à flor da água e mergulhar depois nas profundidades para ter o apetite dos peixes cegos, dos peixes cegos que têm o apetite das aves que gritam para a vida! Já se ouviu cantar as aves pelas quatro horas da tarde em Abril? Estas aves são loucas. Sou eu. Já se viu o Sol cobrir a noite com o seu peso morto, como o fogo cobre a cinza? Tenho como sóis a passagem da chama ao fumo, a queixa enlouquecida de um animal acuado e a primeira gota de água de uma chuvada.
Atenção! Esperam-me. O dia e a noite vão estar na estação. Nunca os reconhecerei se me embaraçar com as malas da justiça.




andre breton e paul éluard
a imaculada concepção
tradução franco de sousa
estúdios cor
1972



26 setembro 2007

andre breton e paul éluard /a concepção

Sigamos o Boulevard Bonne-Nouvelle
e apresentemo-lo.

A concepção
Uma vida compreendida entre duas outras vidas e, como habitualmente, passo de noite sem estrela, o ventre longo da mulher sobe, é uma pedra e a única visível, a única verdadeira, na cascata. Tudo o que tanta vez se anula, anula-se mais urna vez, tudo o que o longo ventre da mulher tanta vez realiza, para conservar o seu prazer mais puro que o frio de se sentir ausente de si mesma, se realiza mais uma vez. Até não se ouvir a respiração de animal bravio muito perto de si. Não é a dádiva que se gostaria de fazer de uma única moeda deste tesouro desenterrado que não é a vida que se gostaria de ter recebido pois assim como o longo ventre da mulher é o seu ventre, assim sonho, o único sonho é o de não ter nascido. A noite habitual é de tal modo bastante. A ignorância tão bem encontra nela o seu interesse. Não interrompe o amor que não se deita nem se ergue. Bem se sopraram os carvões, bem se fitaram na face até ao ponto de se perderem de vista. Ainda há pouco, ainda há pouco... Não éramos cada um de nós senão nós.
O homem não se reproduz numa grande gargalhada. O homem não se reproduz. Nunca ele povoou o seu leito senão com os ardentes olhos do seu amor. Julga o problema resolvido, e é tudo. O problema raramente se resolve. Os trapeiros têm filhos que são na verdade filhos de reis, filhos que, ao abrirem os olhos, confundem o diadema de suas mães com as folhagens maravilhosas das cenouras. Víboras nascem em qualquer lado. Os chefes de família em nada acreditam. Só se corta a cabeça ao desejo. Deixem passar, diz o condutor do velho autocarro, o condutor que se parecerá contigo, que se parecerá comigo sem piedade pelos cavalos com cabeça de mar de óleo. E, como é muito delicado, acrescenta, deixem passar, se fazem favor. O autocarro fantasma está já longe.
Seria necessário continuar o mesmo, sempre, com este desconcertante passo de ginasta, com este porte de cabeça ridículo. Mas eis que a estátua cai na poeira, que se recusa a manter o seu nome. Felizmente nada sabes e quase não olhas para o lado da imagem mura! que apresenta Mazeppa, só, perdido, na estepe. Foi a partir de ontem que me pareceu que ele se mexia. Esta sala é absurda, tenhamos cautela. Existem aqui paredes que não atravessarás, paredes que cobrirei de injúrias e de ameaças, paredes que para sempre são cor de sangue envelhecido, de sangue derramado.




andre breton e paul éluard
a imaculada concepção
tradução franco de sousa
estúdios cor
1972



24 setembro 2007

claude lévi-strauss / olhar ouvir ler




XX
Descrevi noutro lado as circunstâncias em que conheci André Breton, no barco que nos levava a Martinica: longa viagem em que enganávamos a maçada e o desconforto discutindo sobre a natureza da obra de arte, primeiro por escrito, depois em conversa.
Para começar, eu tinha dado um texto a apreciar a André Breton. Ele respondeu-lhe e eu guardei a sua carta preciosamente. O acaso quis que, muito mais tarde, arquivando papéis velhos, eu tivesse encontrado o meu texto: Breton, provavelmente, tinha-mo devolvido.
Ei-lo seguido do texto inédito de Andre Breton. Agradeço a Madame Elisa Breton e Madame Aube Elleouet a autorização de publicação
.
Nota sobre as relações
da obra de arte e do documento,
escrita e entregue a André Breton
a bordo do Capitaine Paul Lemerle
em Março de 1941
No Manifesto do Surrealismo A. B. definiu a criação artística como a actividade absolutamente espontânea do espírito; tal actividade pode ser concebida como resultante de um treino sistemático e da aplicação metódica de um certo número de receitas: todavia a obra de arte define-se - e define-se exclusivamente — pelo seu carácter de liberdade total. Parece que neste ponto A. B. modificou sensivelmente a sua atitude (em A Situação Surrealista do Objecto). No entanto a relação que existe, segundo ele, entre a obra de arte e o documento não é perfeitamente clara. Se é evidente que toda a obra de arte é um documento, poderá admitir-se, como o implicaria uma interpretação radical da sua lese, que todo o documento seja, por isso mesmo, uma obra de arte? Partindo da posição do Manifesto, três interpretações’ são possíveis:
1) O valor estético da obra depende exclusivamente da sua maior ou menor espontaneidade, sendo a obra de arte mais válida (enquanto tal) definida pela liberdade absoluta da sua produção. Se qualquer pessoa, convenientemente treinada, é susceptível de atingir esta completa liberdade de expressão, então a produção poética está aberta a toda a gente. O valor documental da obra confunde-se com o seu valor estético; o melhor documento (avaliado como tal em função do grau de espontaneidade criadora) é também o melhor poema; de direito se não de facto, o melhor poema pode ser não apenas compreendido mas produzido por qualquer pessoa. Podemos conceber uma humanidade na qual lodos os membros, exercitados por uma espécie de método catártico, seriam poetas.
Tal interpretação aboliria o conjunto de privilégios electivos englobados até ao presente sob a designação de talento; e se ela não nega o papel do esforço e do trabalho na criação artística, pelo menos desloca-os para um estádio anterior ao da criação propriamente dita: o da pesquisa difícil e da aplicação dos métodos para suscitar um pensamento livre.
2) Mantendo-se a interpretação precedente, verifica-se mesmo assim, a posteriori, que os documentos provenientes de um grande número de indivíduos, se, do ponto de vista documental, se podem considerar como equivalentes (quer dizer; resultantes de actividades mentais igualmente autênticas e espontâneas), não o são no entanto do ponto de vista artístico, já que alguns deles proporcionam uma fruição e outros não. Como continuamos a definir a obra de arte como um documento (produto bruto da actividade do espírito), admitiremos a distinção sem procurar explicá-la (e sem ter a possibilidade dialéctica de o fazer). Constataremos a existência de indivíduos poetas e de outros que o não são, apesar da identidade completa, das condições das suas respectivas produções. Toda a obra de arte continua a ser um documento, mas deverá distinguir-se, de entre esses documentos, os que são também obras de arte dos que são apenas documentos. Mas como uns e outros permanecem definidos como produtos brutos, essa distinção, impondo-se a posteriori, será considerada em si própria como um dado primitivo, escapando, pela sua natureza, a qualquer interpretação. A especificidade da obra de arte será reconhecida sem que seja possível detectá-la. Constituirá um «mistério».
3) Finalmente, uma terceira interpretação, mantendo o princípio fundamental do carácter irredutivelmente irracional e espontâneo da criação artística, distingue entre o documento, produto bruto da actividade mental, e a obra de arte que consiste sempre numa elaboração secundária. É evidente, no entanto, que esta elaboração não pode ser produto do pensamento racional e crítico; tal eventualidade deve ser radicalmente excluída. Mas poderá supor-se que o pensamento espontâneo e irracional pode, em certas condições, e em alguns indivíduos, tomar consciência de si próprio e tornar-se verdadeiramente reflexivo, estando entendido que esta reflexão se exerce segundo normas que lhe são próprias, e tão impermeáveis à análise racional como a matéria à qual se aplicam. Esta «tomada de consciência irracional» implica uma certa elaboração do dado bruto, exprime-se através da escolha, da eleição, da exclusão, da regulamentação em função de estruturas imperativas. Embora toda a obra de arte continue a ser um documento, ultrapassa o plano documental, não apenas pela qualidade da expressão bruta, mas também pelo valor da elaboração secundária que, de resto, apenas se chama «secundária» em relação aos automatismos de base mas que, em relação ao pensamento crítico e racional, apresenta a mesma característica de irredutibilidade e de primitividade que esses mesmos automatismos.
A primeira interpretação não está de acordo com os factos; a segunda subtrai o problema da criação artística à análise teórica. Pelo contrário, a terceira é a única que parece susceptível de evitar certas confusões, às quais o surrealismo nem sempre parece ter escapado, entre o que é esteticamente válido e o que o não é, entre o que o é mais e o que o é menos. Qualquer documento não é necessariamente uma obra de arte, e tudo o que constitui uma ruptura pode ser igualmente válido para o psicólogo ou para o militante, mas não para o poeta, mesmo se o poeta também for um militante. A obra de um débil mental tem um interesse documental tão grande como a de Lautréamont, pode ter uma eficácia polémica superior, mas uma é uma obra de arte e a outra não, e é preciso ter o meio dialéctico de dar conta da diferença, e também da possibilidade de Picasso ser melhor pintor do que Broque, de Apoilinaire ser um grande poeta e Roussel não, de Salvador Dali ser um grande pintor e ao mesmo tempo um escritor detestável. Se estes juízos apenas são dados a título de exemplo, juízos deste teor, ainda que talvez diferentes ou opostos, não deviam deixar de constituir o termo absolutamente necessário da dialéctica do poeta e do teórico.
Já que as condições fundamentais da produção do documento e da obra de arte foram reconhecidas como idênticas, estas distinções essenciais só podem ser adquiridas deslocando a análise da produção para o produto e do autor para a obra.
Relendo hoje esta nota manuscrita, a inabilidade do pensamento constrange-me, tal como a deselegância da expressão. Desculpa fraca: é evidente que escrevi de jacto (apenas duas palavras rasuradas). Teria preferido esquecê-lo. Mas seria uma injustiça para o importante texto que Breton me enviou como resposta. Sem o meu, o seu tema seria incompreensível.
No manuscrito de Breton, cuidadosas rasuras tornam indecifráveis uma dezena de palavras ou membros de frases, substituídos por uma nova redacção nas entrelinhas onde surgem também alguns acrescentos. As correcções feitas às últimas linhas, muito emendadas, não permitem avaliar se Breton, com menos pressa de acabar, teria optado por uma construção gramatical ou se deliberadamente a rejeitou.
Resposta de André Breton
A contradição fundamental que você sublinha não me escapa: ela permanece, apesar dos meus esforços e de mais alguns para a reduzir (mas não me preocupa nem poderia confundir-me porque sei que nela reside o segredo do movimento para a frente que permitiu ao surrealismo durar). Claro que, naturalmente, as minhas posições variaram sensivelmente desde o 1° manifesto. No interior de textos-programa deste tipo, que não comportam a expressão de nenhuma reserva, de nenhuma dúvida, cujo carácter essencialmente agressivo exclui toda a casta de subtilezas, é óbvio que o meu pensamento tende a adquirir um tom extremamente brutal, mesmo simplista, que não lhe conheço interiormente.
Esta contradição que o choca é, creio, a mesma que Caillois, como eu lhe dizia, rebateu de um modo tão severo. Tentei explicar-me num texto intitulado «A beleza será convulsiva» (Minotaure n°5) e retomado no início de L’Amour fou. Com efeito, cedo alternadamente - e afinal por que não? não sou o único — a dois apelos muito distintos: o primeiro leva-me a procurar na obra de arte uma fruição (é a única palavra exacta, você emprega-a, já que a análise deste sentimento em mim não me dá senão elementos para-eróticos); o segundo, que se manifesta independentemente ou não do primeiro, leva-me a interpretá-la em função da necessidade geral de conhecimento. Estas duas tentações, que distingo no papel, nem sempre são separáveis (tendem a confundir-se também em muitas passagens de Uma época no Inferno).
Escusado será dizer que, se qualquer obra de arte pode ser considerada sob o prisma do documento, a recíproca não poderia de forma nenhuma sustentar-se.
Examinando sucessivamente as suas três interpretações, não me sinto nada embaraçado em lhe dizer que apenas me sinto absolutamente próximo da última. No entanto, algumas palavras a propósito das precedentes:
1) Não estou seguro de que o valor estético da obra dependa da sua maior ou menor espontaneidade. Eu tinha muito mais em vista a sua autenticidade do que a sua beleza, e a definição de 1924 testemunha-o: «Ditame do pensamento.., fora de qualquer preocupação estética ou moral. » Não lhe pode passar despercebido que a omissão deste último membro da frase pudesse ter privado o autor de textos automáticos de uma parte da sua liberdade: seria preciso começar por defendê-lo de qualquer juízo deste tipo se quiséssemos evitar que ele fosse por isso constrangido a priori e se comportasse de acordo com isso. Infelizmente isto não foi completamente evitado (mínimo de organização do texto automático em poema: deplorei-o na minha carta a Rolland de Reneville publicada em Points du Jour mas é fácil ter em conta esta preocupação e de a retirar da obra considerada).
2) Não estou tão seguro como você da enorme diferença qualitativa que existe entre os diversos textos completamente espontâneos que se podem obter. Sempre me pareceu que o principal elemento de mediocridade susceptível de intervir era devido à impossibilidade em que se encontram muitas pessoas de se colocarem nas condições requeridas para a experiência. Contentam-se em registar um discurso descosido, onde se iludem com os despropósitos, o absurdo, mas podemos constatar por sinais facilmente discerníveis, que não se expuseram verdadeiramente, o que basta para afastar o seu pretenso testemunho. — Quando afirmo que não estou tão seguro disso como você é sobretudo porque ignoro como é que a ipseidade (comum a todos os homens) se encontra repartida (igualmente ou, se o está desigualmente em que medida?) entre os homens. Só uma investigação de carácter sistemático e que deixe provisoriamente os artistas de lado nos poderia esclarecer a este propósito. A hierarquização das obras surrealistas não me interessa praticamente nada (ao contrário do que Aragon afirmava em tempos: «Se escreverem de maneira puramente surrealista algumas imbecilidades tristes, serão sempre imbecilidades tristes»); o mesmo se passa, como o dei a entender, com a hierarquização das obras românticas ou simbolistas. A minha classificação destas últimas obras diferiria radicalmente da que é aceite e, sobretudo, tenho a objectar a estas classificações o facto de nos fazerem perder de vista o significado profundo, histórico desses movimentos.
3) Será que a obra de arte exige sempre esta elaboração secundária? Sim, sem dúvida, mas somente no sentido muito lato em que você o entende: «tomada de consciência irracional», e mesmo assim, em que nível de consciência se opera essa elaboração? Em todo o caso, estaríamos apenas no pré-consciente. As produções de Hélène Smith em estado de transe não poderão ser tomadas como obras de arte? E se chegássemos a demonstrar que certos poemas de Rimbaud são pura e simplesmente sonhos acordados, você apreciá-los-ia menos? Relegá-los-ia para a gaveta dos «documentos»? A distinção continua a parecer-me arbitrária. Torna-se, a meu ver, especiosa, quando você opõe Apollinaire poeta a Roussel não-poeta ou Dali pintor a Dali escritor. Tem a certeza de que o primeiro destes juízos não é demasiado tradicionalista, de que não reproduz demasiado a «velharia poética»? Não considero Dali um grande «pintor» e isto pela excelente razão de que a sua técnica é manifestamente regressiva. O que me interessa nele é o homem e a sua interpretação poética do mundo. Por isso, não posso associar-me à sua conclusão (mas isto você já o sabia). Há outras razões mais imperiosas que argumentam em favor da sua não aceitação da minha parte. Essas razões, insisto, são de ordem prática (adesão ao materialismo histórico). É verdade que o alijar da responsabilidade psicológica é necessário à obtenção da atitude inicial de que tudo depende, mas é a responsabilidade psicológica e moral mais profunda: identificação progressiva do eu consciente com o conjunto das suas concreções (está muito mal dito) considerado como o teatro no qual ele é chamado a produzir-se e reproduzir-se, tendência para a síntese do princípio do prazer com o princípio da realidade (desculpe por ficar uma vez mais no limiar do meu pensamento sobre este assunto); concordância a todo o preço do comportamento extra-artístico e da obra: anti-valerismo.





claude lévi-strauss
olhar ouvir ler
trad. teresa meneses
edições asa
1995




14 agosto 2007

andre breton e paul éluard / o juízo original






Não leias. Olha as figuras brancas desenhadas pelos intervalos separando as palavras de várias linhas dos livros e inspira-te nelas.

Dá aos outros a tua mão a guardar.

Não te deites sobre as muralhas.

Retoma a armadura que abandonaste na idade da razão.

Põe a ordem no seu lugar, desarruma as pedras da estrada.

Se sangras e és homem, apaga a última palavra na ardósia.

Forma os teus olhos fechando-os.

Dá aos sonhos que esqueceste o valor daquilo que não conheces.

Conheci três lampistas, cinco guarda-barreiras mulheres, um guarda-barreira homem: e tu?

Não prepares as palavras que gritas.

Habita as casas abandonadas. Não foram habitadas senão por ti.

Faz um leito de afagos aos teus afagos.

Se eles batem à porta, escreve as tuas últimas vontades com a chave.

Rouba o sentido ao som, existem tambores encobertos mesmo nos vestidos claros.

Canta a grande piedade dos monstros. Evoca todas as mulheres de pé sobre o cavalo de Tróia.

Não bebas água.

Como a letra l e a letra m, pelo meio encontrarás a asa e a serpente.

Fala consoante a loucura que te seduziu.

Veste-te com cores cintilantes, não é hábito.

O que encontras só te pertence enquanto a tua mão está estendida.

Mente ao morder o arminho dos teus juízes.

Enforca-te, bravo Crillon, eles te tirarão da forca com o seu Isso depende.

Ata as pernas infiéis.

Deixa a madrugada aumentar a ferrugem dos teus sonhos.

Aprende a esperar, de pés para a frente. É assim que brevemente sairás, bem coberto.

Acende as perspectivas da fadiga.


Vende com que comer, compra com que morrer de fome.

Faz-lhes a surpresa de não confundir o futuro do verbo ter com o passado do verbo ser.

Sê o vidraceiro da pedra engastada no vidro novo.

A quem peça para ver o interior da tua mão, mostra os planetas não descobertos do céu.

Diz à luz, tu calcularás as dimensões encantadoras do insecto-folha.

Para descobrir a nudez daquela que amas, olha as suas mãos. O seu rosto baixou.

Separa o giz do carvão, as papoulas do sangue.

Dá-me o prazer de entrar e sair nas pontas dos pés.

Ponto e vírgula: vês, mesmo na pontuação, como eles são surpreendentes.

Deita-te, levanta-te e agora deita-te.

Até à nova ordem, até à nova ordem monástica, isto é até que as mulheres mais jovens e belas adoptem o decote em cruz: os dois ramos horizontais descobrindo os seios, o pé da cruz nua no baixo-ventre, ligeiramente avermelhado.

Daquilo que tem a cabeça sobre os ombros, abstêm-te.

Regula a tua marcha pela das tempestades.

Nunca mates uma ave da noite.

Olha a flor da campainha: ela não permite ouvir.

Falha a finalidade aparente, quando tiveres que atravessar o teu coração com a flecha.

Opera milagres para os negares.

Tem a idade deste velho corvo que diz: Vinte anos.

Tem cuidado com os carroceiros do bom gosto.

Desenha na poeira os jogos desinteressados do teu tédio.

Não escolhas o tempo de recomeçar.

Sustenta que a tua cabeça, contrariamente às castanhas-da-índia é em absoluto sem peso, uma vez que ainda não caiu.

Doura a pílula com a centelha sem isso negra pela bigorna.

Faz para ti sem franzir as sobrancelhas uma ideia possível das andorinhas.

Escreve o imperecível na areia.

Corrige os teus pais.

Não guardes em ti aquilo que não fira o bom senso.

Imagina que esta mulher está contida em três palavras e que esta colina é um abismo.

Lacra as verdadeiras cartas de amor que escreves com uma hóstia profanada.

Não deixes de dizer ao revólver: Muito lisonjeado mas parece-me tê-lo já encontrado em qualquer lado.

As borboletas do exterior não procuram mais do que alcançar as borboletas do interior; não substituas em ti, se vier a ser quebrado, um único espelho do revérbero.

Amaldiçoa o que é puro, a pureza está amaldiçoada em ti.

Observa a luz nos espelhos dos cegos.

Queres ter ao mesmo tempo o mais pequeno e o mais inquietante livro do mundo? Pede para relerem os selos das tuas cartas de amor e chora; não obstante tudo, tens razão para isso.

Nunca esperes por ti.

Contempla bem estas duas casas: numa estás morto, na outra estás morto.

Pensa em mim que te falo, põe-te no meu lugar para responderes.

Receia passar demasiadamente perto das tapeçarias quando estás só e ouças chamar por ti.

Torce o teu corpo com as tuas próprias mãos por cima dos outros corpos: aceita corajosamente este princípio de higiene.

Come apenas aves em folhas: a árvore animal pode sofrer de Outono.

A tua liberdade com a qual me fazes chorar a rir é a tua liberdade.

Faz fugir o nevoeiro diante de ti mesmo.

Considerando que a natureza mortal das coisas não te confere um poder excepcional de duração, pendura-te pela raiz.

Deixa ao travesseiro idiota o cuidado de te acordar.

Corta as árvores se quiseres, quebra também as pedras mas tem cuidado, tem cuidado com a luz lívida da utilidade.

Só te fitas com um olho, fecha o outro.

Não anules os raios vermelhos do Sol.

Segues pela terceira rua à direita, depois pela primeira à esquerda, chegas a uma praça, voltas junto do café que conheces, segues a primeira rua à esquerda, depois a terceira rua à direita, lanças a tua estátua por terra e ficas.

Sem saber o que irás fazer com ele, apanha o leque que esta mulher deixou cair.

Bate à porta, grita: Entre, e não entres.

Nada tens para fazer antes de morrer.










andre breton e paul éluarda imaculada concepçãotradução franco de sousa
estúdios cor
1972