Mostrar mensagens com a etiqueta al berto. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta al berto. Mostrar todas as mensagens

11 abril 2019

al berto / salsugem



8
contaram-me que eram pesadas embarcações
tinham singrado tormentosos mares contornado arquipélagos
atravessado invernos e trópicos que não vêm ainda nos mapas
e chegavam agora ao sonho
carregados de madeiras preciosas pimenta peles almíscar
canela pérolas animais empalhados
frutos cujos nomes são difíceis de dizer
e largam prolongados sabores na polpa dos dedos

vinham as tripulações exaustas
pelos rigorosos ventos e agitadas águas longe de casa
onde o lume permanece aceso de refeição para refeição
alumiando a noite e o coração das mulheres insones
ciciando nomes de portos ladainhas para consolar a dor
cuidam dos filhos e das frieiras com as bondosas mãos
sujas de azeite… bordam intermináveis cantilenas
vergadas para as toalhas manchadas de vinho e gordura barata

quando recebiam recado dalgum naufrágio
o tempo punha-se a passar sobre elas
o luto fazia-as suspirar no vapor dos tachos de comida
o sal desbotava-lhes a cor ainda jovem do olhar
engelhava-lhes bocas e seios… punham-se a cismar
depois de terem arrumado na gaveta os retratos dos homens
lembravam-se pouco
iam em bandos até ao porto
sentavam-se encolhidas dentro dos rudes xailes
dormitavam à espera que acostassem mais navios
para o descarrego de panos finos jade tabaco marfim cereais
e o amor incerto dalgum homem acabado de chegar
da parte ainda obscura do mundo



al berto
salsugem
o medo
assírio & alvim
1997





27 outubro 2018

al berto / salsugem




7
virava todo o meu sentir para o mar
quando no medo dos míticos promontórios
se rasgou a oceânica visão… a ânsia de partir

remotas eram as constelações que consultara
os rostos traziam a brancura queimada das velas
eram palavras segredadas lendas de feras
que os dedos e a matemática já tinham assinalado nos mapas
a vida da selva a flora mole dos pântanos
os costumes tribais dos arquipélagos
a prata das planícies o mistério de caudalosos rios

a tempestade sacudia o granito
da sua imobilidade surgiam estes sinais transparentes
estes animais cuja pelagem de ouro a noite corroeu
e os passos alucinados pelas lajes do porto
ressoavam no medo… medo que o mar o acorde
e descubra que não existe mar nenhum

por fim atacaram-no as febres
as febres da alba com perfume a violeta
as febres que iluminam os sentidos
e alimentam o surdo canto dos loucos e dos búzios


al berto
salsugem
o medo
assírio & alvim
1997








04 agosto 2018

al berto / salsugem




6
morriam longas cobras de água verde a estibordo dos lábios
e o nácar dos dentes fendia a geada
navegávamos sem bússola um dentro do outro
com o peso das tristes asas do albatroz no coração

passávamos os dias espremendo polposos frutos
beijos nos músculos tatuados de pin-ups dolorosas virgens
araras panteras brancas mapas geometrias misteriosas
riscavam-se os punhos com silêncios inexplicáveis
não me lembro se alguém gritou e morreu
percorríamos o areal
onde esquecemos os desejos dados-à-costa

a pouco e pouco habituei-me à solidão deste quadrante
sem destino
o fogo devorou as esperanças duma possível felicidade
espero com as aves uma mudança brusca de tempo
ou o regresso às simples profecias

mas ainda estou vivo… acordado
para rasgar o calor tremendo das cinzas
deixo a pouca vida que me resta
emaranhar-se nas quentes lágrimas das ilhas


al berto
salsugem
o medo
assírio & alvim
1997







11 julho 2018

al berto / salsugem




5
o mar arrasta
depois atira o corpo para fora do sonho que me roubou
e a noite
a violenta noite das marés arremessa contra a cama
velhas madeiras restos de vestuário pedaços de corpos
envoltos no coral… rostos
órgãos corroídos pela ferocidade dos peixes

qualquer porto era bom para embarcar
fugir às tribos e ao sol impiedoso
ir em busca de sossego noutras ilhas nocturnas
outros desertos onde o amor se revela e os olhos ficam atentos
ao movimento luminoso dos corpos atravessando
os dias lentos sem regresso

queimava as horas de viagem a esmagar saliva
aprendia a sonâmbula fala dos golfinhos
os dedos enlouquecidos pelas amarras
gritava… «Ó Fogo de Santelmo! Ajudai! Ajudai!»

e da insuspeita travessia para sul
vinha a poeira da noite com o embriagante perfume das orquídeas
e a ilusão das suaves índias que não conheço



al berto
salsugem
o medo
assírio & alvim
1997








28 abril 2018

al berto / salsugem




4
às vezes… quando acordava
era porque tínhamos chegado

ficava a bordo encostado às amuradas
horas a fio
espiava a cidade as colinas inclinando-se
para a noite lodosa do rio
e o balouçar do barco enchia-me de melancolia

a noite trazia-me aragens com cheiro a corpos suados
cantares e danças em redor de fogos que eu não sabia
o ruído dos becos a luz fosca dum bar
se descesse a terra encontrar-te-ia… tinha a certeza
para o voo frenético do sexo
e num suspiro talvez alagássemos os umbrais da noite
mas ficava preso ao navio… hipnotizado
com o coração em desordem
os dedos explorando nervosos as ranhuras da madeira
os pregos ferrugentos as cordas

as luzes do cais revelavam-me corpos fugidios
penumbras donde se escapavam ditos obscenos
gemidos agudos sibilantes risos que despertavam em mim
a vontade sempre urgente de partir




al berto
salsugem
o medo
assírio & alvim
1997






15 março 2018

al berto / salsugem




3
era um barco
onde os homens regressavam como um lamento
tinham saudades de ilhas… embebedavam-se
no receio de nunca chegar
deitados nas tábuas de sarro do porão
com o cio da noite pegando-se aos membros húmidos
esperavam que se avistasse terra
onde pudessem enfim reabastecer-se de alimentos
água fresca… e quem sabe se uma carta não bastava
para saciar as sedes e as fontes do irrequieto coração

assim se quedavam paralisados
os ventos roçando as cordas… as vagas contra o casco
suspirando mansos olhavam depois
a baba acetinada dos peixes voando

era um barco
uma sombra do mar com o sol tatuado à proa… avançava
como avançam as vozes aquáticas pelos sonhos adentro
perturbando a navegação da memória
era um barco
com o velame cansado e as mãos calejadas
pelas tempestades das sete partidas do mundo

chegava ao porto
descarregava palavras dialectos estilhaços de concha
espinhas pedaços de corda que na incerteza dos dias
alinhava pelo cais vislumbrado doutro corpo
e voltava a partir
evitando o silencioso plâncton dos espelhos
acostando somente à memória dalgum distante lugar
onde o amor largou sobre o corpo-amante
uma esteira de conhecidas e sangrentas mercadorias




al berto
salsugem
o medo
assírio & alvim
1997








01 fevereiro 2018

al berto / salsugem




I
Aqui te faço os relatos simples
dessas embarcações perdidas no eco do tempo
cujos nomes e proveito de mercadorias
ainda hoje transitam de solidão em solidão.



al berto
salsugem
o medo
assírio & alvim
1997








20 outubro 2017

al berto / salsugem



II
queria ser marinheiro correr mundo
com as mãos abertas ao rumo das aves costeiras
a boca magoando-se na visão das viagens
levaria na bagagem a sonolenta canção dos ventos
e a infindável espera do país assustado pelas águas

debruçou-se para o outro lado do espelho
onde o corpo se torna aéreo até aos ossos
a noite devolveu-lhe outro corpo vogando
ao abandono dum secreto regresso... depois
guardou a paixão de longínquos dias no saco de lona
e do fundo nostálgico do espelho
surgiram os súbitos olhos do mar

cresceram-lhe búzios nas pálpebras algas finas
moviam-se medusas luminosas ao alcance da fala
e o peito era o extenso areal
onde as lendas e as crónicas tinham esquecido
enigmáticos esqueletos insectos e preciosos metais

um fio de sémen atava o coração devassado pela salsugem
o corpo separava-se da milenar sombra
imobilizava-se no sono antigo da terra
descia ao esquecimento de tudo... navegava
no rumor das águas oxidadas agarrava-se à raiz das espadas
ia de mastro em mastro perscrutando a insónia
abrindo ácidos lumes pelo rosto incerto dalgum mar


al berto
salsugem
o medo
assírio & alvim
1997





21 junho 2017

al berto / cinco fotografias para alexandre da macedónia



1

apesar de Alexandre ter um olho de cada cor
a fotografia tinha o rigor das imagens a preto e branco
a noite desabara sobre os corpos estendidos
a lua surgia como um tentáculo de gelo
apercebíamos mãos voláteis por ente as estátuas
um de nós teimava em esconder-se no interior de uma delas

os répteis temiam a pedra
com seus inalcançáveis corações de quartzo
pulsando
uma cabeça azulada pousa docemente sobre os joelhos
a noite era um estuário de dedos emaranhados
na memória húmida das bocas… alguém contou:
a lebre é capaz de mudar de sexo em plena correria
eu não acreditei
os olhos vigiavam o exterior do corpo
quando te curvaste para colher um medronho

pelas fendas da janela entrava uma fragrância rubra
e a luz espessa deitava-se
sobre as areias cobertas de lodo
pouco sabíamos acerca do ciúme
deambulávamos à procura de um deus fogoso e terno
ou dalgum poço onde nos debruçarmos

depois tocámo-nos como crianças desajeitadas
enumerámos as terras que dali se avistavam



al berto
cinco fotografias para alexandre da macedónia
1981






27 maio 2017

al berto / trabalhos do olhar



I

escrevo-te a sentir tudo isto
e num instante de maior lucidez poderia ser o rio
as cabras escondendo o delicado tilintar dos guizos nos sais de prata da
fotografia
poderia erguer-me como o castanheiro dos contos sussurrados junto ao
fogo
e deambular trémulo com as aves
ou acompanhar a sulfúrica borboleta revelando-se na saliva dos lábios
poderia imitar aquele pastor
ou confundir-me com o sonho de cidade que a pouco e pouco morde a
sua imobilidade

habito neste país de água por engano
são-me necessárias imagens radiografias de ossos
rostos desfocados
mãos sobre corpos impressos no papel e nos espelhos
repara
nada mais possuo
a não ser este recado que hoje segue manchado de finos bagos de romã
repara
como o coração de papel amareleceu no esquecimento de te amar




al berto
trabalhos do olhar
1979/82


01 abril 2017

al berto / um dia a manhã limpa perturba



[4]

Um dia a manhã limpa perturba
o brilho molhado da boca -alastra
cicatrizando a fonte maligna do sangue

a fala ergue-se clara -sem dor
o tronco da árvore reverdece e
o mistério do voo dos pássaros sobe
á raiz viva do corpo -húmus

seiva fogo fundem lentamente -poeira
de lume vibrando
árvore volátil nascida no fundo da água
intensa - de novo
a respiração



al berto
o último coração do sonho
editora quasi
2000






04 fevereiro 2017

al berto / nunca mais o lembraremos



Um dia, em frente ao mar, ele pensou:

Se me apagasse neste preciso instante, o mundo pouco se importaria com isso.
No entanto, deixaria de ser o mesmo: seria um mundo com todas as coisas
que conheci e toquei, mas sem mim. E eu, algures na morte, é pouco provável
que levasse comigo alguma coisa do mundo. Seria um homem morto, sem mundo, definitivamente só.

Depois, não lhe agradou saber que o mundo, apesar da sua morte,
conservaria por muito tempo os vestígios da sua passagem. Desejou, uma vez mais,
que tudo o que escrevera até àquele instante se apagasse também,
e que do seu nome não restasse uma sílaba.

Pensou em tudo isto sem amargura, porque havia nele dois mistérios insolúveis:
viver e escrever. E ambos estavam tão intimamente ligados que, provavelmente,
se conseguisse desvendar um deles, o outro sê-lo-ia também.

Mas acontece que tinha tentado fazer da sua vida uma obra tão intensa
quanto a obra escrita. Por vezes diluíam-se uma na outra, confundiam-se,
tão próximas ou afastadas estavam. E tanto na vida como na escrita,
um mesmo desejo o animava: caminhar em direcção
à sabedoria última do silêncio - a memória total do mundo.

O pior é que sempre que avançava alguns passos na direcção certa, desiludia-se.
A harmonia com o mundo e com o seu próprio corpo continuava inacessível;
e outras ignorâncias surgiam, outras trevas o cegavam.
O que parecia estar perto, repentinamente, ficava fora do alcance.

Apesar de tudo, com o avançar lento da idade pressentia, algures dentro de si,
um ser de lume - um anjo mudo que o iluminava, revelando- lhe aquilo
que devia ou não silenciar.

E quando esse ser o fazia sentir árvore ou pássaro, todo o talento da árvore
e o nocturno voo do pássaro escorriam em si. E se a sensação de mar lhe era transmitida,
ele sabia que era um mar muito mais remoto e vasto que aquele
que diante de si se movia. .
Respirava fundo, tinha medo, e escrevia como uma condenação -
e nessa condenação encontrava um breve alívio para a dor das coisas vivas
e mortas que o rodeavam. E o corpo, sempre apaixonado,
tremeluzia quando o estranho anjo mudo lhe punha uma voz no coração.

Talvez seja por tudo isto que um dia nunca mais o lembraremos, nunca mais.
Mas neste preciso instante ele acabou de acordar, abre os olhos, arde,
é jovem ainda, e diz-me a sorrir:

 – Aqui tens o inocente revólver para a eternidade.



al berto
o anjo mudo
assírio & alvim
2000



11 janeiro 2017

al berto / mar



Nunca conseguiu viver longe do mar.

A sua adolescência ficara cheia de dunas e de camarinhas, de falésias e águias,
de tempestades, de nomes de barcos e de peixes;
de aves e de luz coalhada à roda duma ilha.

Conhecera a ansiedade daqueles que, ao entardecer, olham meio cegos
a vastidão incendiada do oceano - e ninguém sabe se esperam alguma coisa,
alguma revelação, ou se estão ali sentados, apenas, para morrer.

Aprendera, também, que o mar, aquele mar - tarde ou cedo - só existiria dentro de si:
como uma dor afiada, como um vestígio qualquer a que nos agarramos
para suportar a melancólica travessia do mundo.

Depois, partiu para longe. E durante anos recordou, em sonhos,
o mar avistado pela última vez ao fundo das ruas. Procurou-o sempre
por onde andou, obsessivamente - mas nunca chegou a encontrá-lo.


Certa noite de bruma fria, em Antuérpia, no "Zanzi-Bar", julgou ouvir o mar
que perdera na voz dum jovem marinheiro grego. Mas não,
o marulho que aquela voz derramava, junto à sua orelha,
era de outro mar - fechado, calmo - propício aos amores inquietos
e à lassidão embriagante do sol e do vinho.

Anos mais tarde, em Delos, haveria de reconhecer a voz do marinheiro
no rebentar das ondas, em redor da ilha, como um eco:
"onde te vi despir regresso agora / para adormecer ou chorar"
e a noite caiu subitamente sobre ele, sobre a ilha e sobre o sonolento
coração das leoas em pedra.

Uma outra vez, perto de Gibraltar, uma mulher idosa quis ler-lhe
as linhas emaranhadas da mão. Já não se lembra o que lhe contou a mulher,
 acerca da vida e dos rumos da paixão. Recorda somente
o que ela lhe disse ao separarem-se:

- Tens nos olhos a cor triste do mar que perdeste.

E passou bastante tempo antes que o homem voltasse ao seu país.
Quando o fez, foi ao encontro do mar. Largou a cidade e os amigos,
a casa, o conforto, a noite, o trabalho e tudo o mais. Viajou em direcção ao sul,
com a certeza de que jamais encontraria o mar perdido,
em lugar incerto, a meio da sua vida.

Sabia agora que nenhum mar existia fora do seu corpo,
e que tinha sido na perda irremediável de um mar que adquirira um outro onde,
por noites de inquietante insónia, podia encontrar-se consigo mesmo
e envelhecer sem sobressaltos; afastado da vã alegria dos homens
e da pobreza do mundo.

Ao chegar junto do mar sentou-se no cimo da duna, como dantes, e esperou.
Esperou que o mar guardado no fundo de si transbordasse,
e fosse ao encontro daquele que perdera e se espraiava agora à sua frente.


Ainda hoje permanece sentado, no mesmo lugar - esperando
o instante em que os dois mares se dissiparão um no outro, para sempre.

Está cansado da guerra com as palavras e do veneno dos homens,
tem os olhos queimados pelo sal. Os dedos adquiriram a rugosidade da areia
e dos rochedos; da sua boca solta-se um marulhar surdo, muito antigo,
que os dias e a solidão arrastam devagar para a luminosa euforia das águas.


al berto
o anjo mudo
assírio & alvim
2000