29 março 2010

david teles pereira / bem-vindo ao ano zero







Deram-me a riqueza,
mas não me disseram o que fazer com ela.


Iegueni Ievtuchenko








Com a minha idade, o meu pai já era um homem honrado,
o meu avô trabalhava na marinha mercante,
disparava ocasionalmente um ou dois foguetes
em direcção a terra seca, em homenagem ao amor de uma mulher
que conheceu antes da minha avó e que me teria dado
olhos azuis e muito menos problemas.

Aos dezoito anos os meus pais participaram na Revolução.
O meu avô também. Tinha quarenta e cinco.
Depois os meus pais casaram, desculparam-se com o ciclo da vida,
o país parecia estar no bom caminho, a casa ainda não.
Quis ser actor o meu avô, depois de ter passado
cinco dias e quatro noites a traduzir uma peça de Brecht
num quarto da pensão Rosa com vista para o rio Sado.

Então nasceu o meu irmão com os olhos que – toda a gente
confirmava – eram iguaizinhos aos da minha mãe.
Depois nasci eu e depois a minha irmã, com olhos de Varsóvia,
não tão honrados quanto belos.
Eu ainda nasci em Portugal, a minha irmã já não, nasceu na CEE,
que entretanto tinha ensinado a minha mãe e o meu pai a serem
ainda mais perfeccionistas nisso de serem honrados.
O meu avô continuava a traduzir Brecht e desconfiava
da PAC e de tudo aquilo que pudesse ser formulado
apenas em três letras.
Para ele, no mínimo, eram necessárias quatro.

Foderam-me a vida, o meu pai e a minha mãe,
e o pior é que o fizeram para que eu pudesse chegar
aos vinte e três anos e dizer que já sou um homem honrado,
tal como o meu pai tem sido, ao contrário do meu avô,
que prefere Brecht à linear organização comercial
do novíssimo amor português.

E pior ainda é que tenho vinte e três anos
e corro o risco de já ser um homem honrado.









david teles pereira
resumo
a poesia em 2009

assírio & alvim
2010



2 comentários:

Lídia Borges disse...

David Teles Pereira... De facto, um poema bem terreno!


L.B.

Isabel José António disse...

Caro Amigo David,

Bom poema cheio de força e bem urdido. Parabéns.


Não leve a vida tão a sério
Ria, brinque e interaja agora
Não se escava nenhum minério
Que não seja naquela certa hora

Um sorriso abre mil portas
Um abraço transpõe barreiras
Não será à bruta que cortas
Os muros e todas as fronteiras

Olhe para dentro de si e veja
Que a vida se faz para a frente
Saiba o que é ser humano e seja
Prestando atenção ao que se sente

Um grande abrao

José António