31 maio 2006

pictures at an exibition / j. m. w. turner

Photobucket - Video and Image Hosting


J.M.W. Turner
Sunrise with Sea Monsters
c. 1845
oil on canvas
91.5 x 122 cm.
Tate Gallery, London

29 maio 2006

post it / l. maltez




o dia chegou puro.
os olhares falavam num silêncio
onde as palavras tinham todas um nome
e a eternidade se fechava sobre um corpo
parado nas águas, entre os espaços
para assistirem ao nascimento das árvores

o grito do verão ressoava entre formas mudas,
delicadas, impregnadas de delírios imaginários.
alguém parte o silêncio e o transforma
em sons vergados, sensíveis às palavras vivas,
atrás fica uma vida, remexida desabaladamente
numa leveza, estrangulada entre dedos

olhares bailam enfeitiçados sobre as áscuas...

murmuram ao longe, frases ríspidas e frias
o vento arrasta soprando as vozes em pedaços,
agarrando a vida, que deseja invencível
lento, leve e moroso deixa respirar o dia.
mergulha na alegria suplicante da voz
onde ardem, na alma, chamas de desejo
assumido num jogo de amor único

escapa-se o pensamento, afunda-se
dentro da paixão voraz,
espelhada no sorriso dum peito aberto
o fio liga a veia, no abraço da morte
triunfante, a festa tornou-se imortal,
sufoca de júbilo,
entre palavras que passam a correr

o momento, amadurece na terra
cativo do nome que persegue...




l. maltez

24 maio 2006

estações

7)


Alice Loureiro, 2001




em acrílico forte


não sei
a que cidade cheguei

lembro-me de ter vinte anos
e cegar

perdi
o que nenhum homem sabia perder

e alguém me disse:
- desenha a tua morte

e eu peguei nos meus olhos
e fiz este silêncio negro

porque os meus olhos
eram negros

e neles é que eu guardava
a vida e a morte


foi há muito tempo
pois sou um homem muito velho

sou tão velho
como a distância do caminho que percorri

lembro-me que fui
que fui, como o sangue vai numa veia

até ao coração
do nada

até sofrer a eternidade
como uma pedra ou um planeta

fui na gota de mim
ao oceano de mim

e agora cheguei
sem saber onde cheguei


estou no mais abstracto
de um ser

estou na minha alma
ou no meu sonho

estou na essência
do que faz enlouquecer

sinto-o na cor forte
que me devolve os olhos

no estranho calor
que me concede humanidade

não sei
a que mundo cheguei

sou um velho
que ensaia o seu olhar

e há esta cidade estranha
onde não corre o vento

onde nenhum céu vigia
nenhum horizonte define


estou sentado
num prado de aço

e nenhuma estrada
foi escrita

nenhum rio
foi pintado

nenhum ser
foi dito


sou um velho
e ensaio o meu olhar

exerço-o no invisível
que precede as coisas

que está antes do objecto
antes do ser

e tenho nas mãos
a ciência dos gestos

tenho a Arte
sou o talento da vida

por isso
gota a gota

dou-me
um mar

dou-me
os homens e as mulheres

e dou-me em cada um
a voz

todas as vozes
até ao esplendor do grito


e nesse rumor
nesse quase cantar

é que oiço o nome
do que me chama

não sei
que cidade me espera

sou um velho
sou um pássaro cego

que voa adormecido
os seus vinte anos






gil t. sousa
poemas
2001



20 maio 2006

um poema de: mário cesariny



do capítulo da devolução



Hoje venho dizer-te que morreste e que velo o teu corpo no meu
leito, um corpo estranho e surdo um corpo incompreensível

aquele desespero que deixou de ter forças para erguer os portais do
outro reino tristeza de menino a quem tiraram tudo, até
a tinta e as flores e o prazer de gritar

esse (foi visto) deve subsistir porque é a tua maneira de tomar banho
no cosmos, olhar o cosmos como os que ainda podem
interrogar as ondas e morrer

mas tu ainda não sabes a que ponto morreste; vais até à janela, aspiras
com cuidado o oxigénio que o espaço te oferece, apontas
rindo a meiga criatura que pela rua arrasta a sua condição
de animal fulminado

depois olhas para mim, olhas as tuas mãos, e elas ambas, tão claras,
tão seguras, são as mãos de um soldado a arder em febre,
aves a percorrer o seu novo deserto

mas tu sabes, tu vistes, e mais do que eu; a mão do homem é doce e
iluminada como a noite como um rasto de fumo sobre
os hospitais

tivemos uma história mas a história foi-se, em fileiras angélicas e
gratas, a fazer a manhã de outras paragens; outra sombra,
outros olhos semelhantes

noutro leito nas nuvens deito os teus cabelos, o teu cansaço e a
minha miséria, os teus braços e os meus, altos como
cidades, altos como flores

parou o automóvel, lá em baixo, e eu não tenho mais que descer as
escadas, fechar ainda a porta do teu quarto, atravessar de
um pulo a minha própria vida

agora posso sonhar até deixar de te ver

belo rio sem lágrimas




mário cesariny
pena capital
assírio & alvim
1982




13 maio 2006

reflexões / os modos das modas culturais


Mimmo Rotella, Pepsi, 1979, Serigraph


OS MODOS DAS MODAS CULTURAIS


Les femmes nuiles suivent la mode,
les prétentieuses l’exagèrent, mais
les femmes de goút pactisent agréa-
blement avec elle.

Marquise du Châtelet



O jogo nacional dos italianos cultos compõe-se de três lances, jogados pelo doutor Branco contra o doutor Preto (para maiores esclarecimentos sobre a dinâmica dos «jogos» veja-se Eric Berne, A que Jogo Jogamos; compreender-se-á mais adiante porque me apresso a citar uma fonte de inspiração: senão seria submetido ao segundo lance do leitor Branco como autor Preto)

Primeiro lance.
Preto: «Gente daquela deviam matá-la! »
Branco: «O provincianismo italiano do costume. Na Inglaterra, há pelo menos dez anos que o homicídio foi demonstrado inútil. Se lesses...»

Segundo lance.
Preto: «Pensei melhor. Acho que não se deve matar nenhum ser humano.»
Branco: «Não me parece grande ideia. Já Gandhi disse isso.»

Terceiro lance:
Preto: «Bem, acho que Gandhi tinha razão. »
Branco: «Já sabia. Agora temos a moda do pacifismo! »

A fórmula é variável até ao infinito. 1) As crianças não deviam ler bandas desenhadas. Enganas-te, se te mantivesses ao corrente das investigações sociológicas americanas... 2) Bem, eu também as li e não as acho mal. Não me parece grande descoberta: há quarenta anos Gilberto Seldes em Seven Lively Arts... 3) Bem, estou de acordo com Seldes... Já sabia: agora temos a moda da banda desenhada!

Ou então: 1) Nos Noivos há poucos rasgos líricos refreados por uma estrutura impoética. Enganas-te: se lesses os estudos americanos sobre as estruturas narrativas... 2) Pensei melhor: a intriga também tem um valor poético. Que descoberta: já Aristóteles sabia isso. 3) Bem, sabes que tinha razão? Já sabia: agora são todos aristotélicos.

O jogo que propus não é fictício. Se há uma coisa que impressiona o orador estrangeiro num nosso círculo cultural é a objecção de que aquilo que ele está a dizer já o tinha dito mais alguém. Em geral, o estrangeiro não consegue compreender porque é que deve queixar-se O que não sabe é que, logo que se tenha ido embora, será acusado de conformismo quem se achar de acordo com as suas opiniões. Após três tentativas, o seu fã italiano não poderá citá-lo mais.

Do jogo não há saída, pois que se rege por três princípios lógico-antropológicos indiscutíveis, que são: 1) por cada afirmação feita num lugar pode-se encontrar uma contrária feita em precedência noutro lugar; 2) por cada afirmação feita numa dada época existe um fragmento dos pré-socráticos que a antecipa; 3) toda a afirmação de consenso com uma tese, se expressa por várias pessoas, toma as opiniões dessas pessoas definíveis como «afins» ou «conformes».

O jogo nacional que há pouco definimos torna os italianos particularmente sensíveis àquele perigo comummente indicado como «moda cultural». Ansiosos de actualização e severos para com aqueles que não estão igualmente actualizados, os italianos tendem a considerar parasitária toda a ideia proveniente de operações de actualização alheia e condenar a actualização — auspiciada — como moda. Pois que a ânsia de actualização os expõe ao risco da moda, a severidade para com a actualização alheia age como correctivo e faz com que as actualizações sejam rápidas e transitórias, isto é, «modas» precisamente. Em consequência, dificilmente se criam correntes e movimentos culturais, porque os Brancos velam pelos Pretos e estimulam a alternância das suas escolhas, tornando-se cada Branco por sua vez o Preto de qualquer outro que foi Preto por sua vez. A ânsia de actualização unida ao temor da moda neutraliza assim a actualização e encoraja a moda.

Esta situação teria urna sua funambólica substancialidade, e uma graça não ignóbil de ballet permanente da inteligência crítica, se o desenvolvimento dos meios de massa não tivesse introduzido um novo elemento no jogo: a presença dos italianos que seguem o futebol.

Estimulados pela rápida circulação divulgadora das revistas ilustradas e dos quotidianos, os italianos interessados no futebol vêm ao conhecimento do jogo jogado pela upper class. Deste apanham só algumas e não todas as deixas, de modo que o ciclo ignorância-informação-consenso-moda-repúdio se cumpre neles apenas por metade. Num certo sentido entram em jogo só no lance número três, quando o jogador Preto concorda com uma tese dominante expressa por outros, e fixam-se sobre a descoberta perdendo de vista o facto de o mesmo jogador, batido pelo Branco, abandonar repentinamente a tese e jogar outro desafio. Em consequência, nas classes sujeitas a moda dura mais tempo (como uso linguístico, recurso a argumentos tópicos, tiques verbais) do que acontece nas classes hegemónicas (sendo sabido que as subdivisões entre classe hegemónica e proletariado seguem aqui linhas de demarcação que não têm necessariamente atinência à realidade económica).

Eis então porque pode ser interessante seguir, ao longo do arco de um decénio, o nascer, o permanecer, o gangrenar de uma série de modas culturais. A sua permanência é testemunhada por vezos, citações, aberrações jornalísticas de vário género; o seu fim testemunha a volubilidade dos jogadores cultos, uma nossa dolorosa incapacidade de fazer germinar sugestões e ideias, linhas de investigação, temáticas, problemas.

De particular interesse será, pois, seguir esta aventura, como se está fazendo, ao longo de um decénio que foi (para usar a fórmula já célebre de Arbasino) o da excursão a Chiasso. Uma cultura italiana provinciana que durante o vinténio se tinha consolado com a sua própria timidez, acusando dela a ditadura que impedia de saber aquilo que acontecia algures (e acrescentamos: não era sequer necessário chegar a Chiasso para saber o que se publicava pelo mundo fora; Gramsci da prisão conseguia ler bastante), nos primeiros dez anos da libertação continua a cultivar as suas próprias culpáveis obscuridades: mas, enquanto sobem no horizonte os anos 60, de repente, entorna o caldo da actualização, e com ele empanturra os próprios filhos, das colunas das páginas culturais, com os chumbos das edições hard cover, nos quiosques pupulantes de paperbacks. As descobertas fazem-se excitação, a excitação hábito linguístico, o hábito linguístico tique, os tiques despropósitos.

O sombrio episódio da palavra «alienação» serve para demonstrar o que se queria: um termo venerável, uma realidade terrível, um dado cultural que os estudiosos manobram por sua conta sem traumas de repente torna-se moeda corrente. O uso, que desenvolve o órgão, enfraquece porém os termos. Daquele que está em exame fez-se desbarato, e foi bem que alguém denunciasse o seu excesso. Mas o temor do excesso fechou a boca até a quem podia falar com calma e consciência. Conheço um estudante de filosofia que há alguns anos estava a trabalhar numa tese sobre o conceito de alienação em Marx e que, entre 1961 e 1962 foi obrigado a mudar o título à sua investigação para poder ser tomado a sério. Mas noutros casos alguns mudaram decididamente, não só o título, o assunto. O que é triste.

Não sei se conseguiremos corrigir-nos. Eis um episódio que me sucede enquanto revejo as provas deste texto.

Conversa descontraída com um amigo que não vejo há muito tempo, agora professor numa pequena universidade de província, absorvido em problemas de filologia clássica mas atento aos acontecimentos culturais «na moda» — com distanciação, naturalmente, uma ponta de ironia, mas sempre com tensão intelectual. Conto-lhe que me encontrei na América com Jakobson. Sorri: «Tarde de mais. Precisamente agora que o estão a destruir...» — «Quem é que o está a destruir?» — «Ora, todos. Passou de moda, não?»

Bem, Jakobson nasce no século passado. Participa no círculo de Moscovo, passa através da revolução, chega a Praga, vive os anos 30, sobrevive ao nazismo, inicia a aventura americana, sobrevive à guerra, defronta-se com a nova geração estruturalista e é aclamado mestre, sobrevive aos mais jovens da nova geração, conquista os mercados culturais que o ignoravam, sobrevive aos seus setenta anos já feitos, sobrevive às novas escolas de semiótica eslavas, francesas e americanas, de que permanece um leader, sai de cada experiência com os reconhecimentos unânimes da cultura internacional, cometerá erros — decerto — mas sobrevive aos seus erros... Ai de mim, citado em Itália em 64, lido em 65, traduzido em 66, por volta do declinar de 67 não sobrevive à erosão da inteligência italiana. Quod nonfecerunt barbari, etc. Três anos de notoriedade em Itália espapaçam-no. Para crer ainda na validade das suas páginas é preciso ser-se muito jovem, muito ingénuo, muito retirado ou muito emigrado. Agora tratar-se-á de fazer envelhecer o mais rapidamente possível Chomsky, possivelmente antes que seja traduzido (se se jogar bem, o golpe surte efeito, a tempo). São empresas que dão trabalho, mas depois obtém-se a satisfação.

Não é preciso ser uma vestal do saber para reconhecer que o nascer e o difundir de uma moda cultural semeiam incompreensões, confusões, usos ilegítimos. Deploramos as modas culturais. Quem quer que tenha enfrentado seriamente um assunto que depois se tomou moda advertiu o mal-estar proveniente do facto de que qualquer palavra que ele tivesse usado já não seria interpretada segundo o contexto em que aparecia, mas agitada como pendão, etiqueta, sinal de trânsito.

É absoluta e tristemente verdade que hoje nem sequer um cientista das construções pode falar de estruturas sem passar por estruturalista à la page. E, todavia, na indignação contra as modas há qualquer coisa de arrogante e imodesto (lance três do jogo proposto), tão prejudicial como a moda.

As «modas» não nascem quando se tem uma cultura rigorosamente de classe ou rigorosamente especializada. Uma cultura de classe permite que temas e problemas circulem a um nível inatingível pelos demais: os gostos do duque de Berry não são moda, quanto mais não seja porque se resumem a um exemplar único manuscrito; ninguém pensará em estampar as imagens dos meses em lenços para utentes de mini-saia.

Uma cultura especializada defende-se pela sua impenetrabilidade. A palavra «relatividade» pode ter provocado uma certa voga, mas as equações de Maxwell não.

O problema da moda nasce então quando, por várias razões, o dado cultural viaja do vértice para a base por obra de técnicas escolares mais difusas (entendendo por estas qualquer técnica divulgadora, do cartaz ao semanário e à televisão). A divulgação recruta novos utentes para a cultura, para os encaminhar para a especialização, mas paga este recrutamento com o desperdício, com a consumpção: os termos e os conceitos que põe em círculo passam por demasiadas mãos para poderem voltar — ao cume da pirâmide de que partiram — íntegros como dantes.

Contemporaneamente, o excesso de especialização impõe uma tentativa de interdisciplinariedade. Interdisciplinariedade significa contacto e compreensão entre homens que trabalham em diversos sectores de especialização. O contacto exerce-se de dois modos: antes de mais, o técnico de um sector deve esclarecer o técnico de outro sobre o sentido dos seus discursos e os limites do seu universo de discurso; em segundo lugar, ambos devem procurar traduzir os elementos válidos no seu próprio universo de discurso em termos assimiláveis pelo universo de discurso alheio. Neste trabalho de extravasamento (em que toda uma cultura colabora) deita-se muito líquido ao chão. As tentativas de tradução geram metáforas apressadas, mal-entendidos, corridas forçadas à actualização aparente. Como para a divulgação do cume da pirâmide na base, o extravasar de sector para sector de igual nível produz inflação.

Mas, se isto é verdade, as modas culturais são a consequência inevitável de uma dinamização das culturas. Na medida em que é vital, tendendo a uma revisão e comunicação contínua entre os seus vários níveis, uma cultura produz uma moda para cada um dos aspectos em que se expõe. E não é que a moda se forme como borra, resíduo, franja externa ao processo cultural autêntico: constitui ao mesmo tempo o adubo, o terreno adubado. Pois que entrega e extravasar de saber não acontecem segundo modalidades de pureza absoluta, quem apreende ou traduz em termos próprios a aprendizagem alheia muitas vezes passa antes de mais através do território da moda cultural, pressentindo um problema de forma aberrante antes de o captar de modo exacto; a moda cultural e é assim essencial ao processo de uma cultura, de modo que, muitas vezes, só através do apelo da moda uma cultura recruta os seus leaders futuros.

Portanto, diante das modas que gera, uma cultura não deve colocar a si própria tanto o problema de as reprimir como o de as controlar. O trabalho de uma cultura consiste em produzir tanto saber especializado como saber espontâneo e difuso; e — ao criticar os excessos do saber espontâneo — não só ao reprimi-lo, mas ao fazer brotar dele conexões, ocasiões, outro saber especializado, num movimento mais ou menos ordenado em que o mal-entendido muitas vezes se toma serendipity. De uma coisa podemos estar certos, porém: uma cultura que não gere modas é uma cultura estática. Não houve e não há modas na cultura Hopi ou na cultura Aloresa. Porque não há processo. A moda cultural é o acne juvenil do processo cultural. Quando é reprimida demasiado violentamente, acelera-se simplesmente o advento de uma nova moda. E então a moda cultural como modelo permanente torna-se o aspecto mais visível dessa cultura, que se faz cultura das Modas Alternativas. Este é o nosso problema de hoje. Não devemos preocupar-nos porque existem modas culturais, mas porque são superadas depressa de mais.

A cultura francesa, que é mais madura do que a nossa, suporta perfeitamente a moda estruturalista há dez anos e não se envergonha disso, embora tenha consciência dos seus excessos. Aquilo que é preocupante, na cultura italiana, não são os milhares de imbecis que enchem a boca com a palavra «estrutura» nos casos mais imotivados, mas a consciência que destes imbecis se dará cabo o mais cedo possível com demasiado rigor. Subestimar a função bactérica (em sentido botânico) dos imbecis é sinal de imaturidade cultural.

Por outro lado, se uma cultura que não gera modas é uma cultura estática, uma cultura que reprime as modas é uma cultura reaccionária: consistindo o primeiro lance do conservador em carimbar como moda a novidade. Aristófanes com o socratismo, Cícero com os cantores Euphorionis, e assim por diante até às indignações dos homenzinhos selváticos de papiniana e giuliottiana memória.

Contanto que seja longa, uma moda restitui o rigor que tirou, sob outra forma. O perigo é quando é breve.

1967




Viagem na irrealidade quotidiana
Umberto Eco
Trad. Maria Celeste Morais Pinto
Difel
1993





09 maio 2006

post it / m. f. s.

chegar tarde



cheguei sempre tarde e sempre a horas

quando o fogo das noites brancas se sentava nos bancos
abandonados dos negros jardins
e os suspiros das andorinhas morriam nos ninhos de lama

cheguei tarde à soleira da porta para a dimensão do impossível

e cheguei cedo à montanha onde Maomé foi buscar o poder
de a arrasar

estendi planícies ao alvorecer porque era a hora de acordar

com um gesto improvável atirei as sementes da harmonia
que cresceram em declives cascalhantes
e secaram sobre os corpos etéreos dos pensamentos transparentes

chegarei cedo ao túnel iluminado em cujo término me espero

no colo imenso que me estende os braços e me pousa
na sua mão direita



m.f.s.

05 maio 2006

04 maio 2006

estações

6)


outubro



sei que as mãos
me morreriam
nesse nada

e no exausto silêncio
dos gestos
subiriam tristes

o lento horizonte
que percorre
as palavras

sei que apertariam
o céu que trazias
no peito

esse céu de Outubro
como um fumo de ternura
sobre o Verão




gil t. sousa
poemas
2001


01 maio 2006

polaróide mínima #004


jaime rocha


Nasceu em 1949, na Nazaré, Portugal. Estudou na Faculdade de Letras de Lisboa e viveu em França nos últimos anos da ditadura, até 1974. Exerce a profissão de jornalista, há cerca de três décadas, com o nome próprio de Rui Ferreira e Sousa. Tem editadas várias obras de poesia, ficção e teatro.
No domínio da poesia, Jaime Rocha publicou “MELÂNQUICO” (com o pseudónimo de Sousa Fernando), “A DANÇA DOS LILAZES”, “BEBER A COR”, “A PEQUENA MORTE/ESSE ETERNO CANTO” (díptico com Hélia Correia), “A PERFEIÇÃO DAS COISAS”, “DO EXTERMÍNIO”, “ARCO DE JASMIM”, “OS QUE VÃO MORRER” e “ZONA DE CAÇA”.
Na ficção destacam-se os romances “A LOUCURA BRANCA”, “TONHO E AS ALMAS” e “OS DIAS DE UM EXCURSIONISTA”.
No Teatro editou mais de uma dezena de peças. Foi galardoado, em 1998, com o Grande Prémio APE de Teatro, com a peça “O TERCEIRO ANDAR”, texto incluído no volume “O CONSTRUTOR” e, em 2000, com o Prémio Eixo Atlântico de Textos Dramáticos, com a peça “SEIS MULHERES SOB ESCUTA”. A sua primeira peça representada intitula-se “A REPARTIÇÃO” e foi levada à cena, na Comuna, pelo Grupo de Teatro da Faculdade de Ciências de Lisboa, em 1989. O Teatro de Carnide encenou, em 1998, a sua peça “DEPOIS DA NOITE O QUÊ?”, uma réplica à obra de José Saramago, “A NOITE”. Em 2001, estrearam quatro peças suas: “CASA DE PÁSSAROS” pelo Teatro Experimental de Cascais, “O TELEVISOR” pelo Teatro Mosca, “TRANSVIRIATO” pelo Trigo Limpo Teatro Acert e “O JOGO DA SALAMANDRA”, uma co-produção da Comuna Teatro de Pesquisa e do Teatro Público, de Lisboa. Em 2003, “SEIS MULHERES SOB ESCUTA” numa produção do Teatro da Trindade e “QUINZE MINUTOS DE GLÓRIA” pelo GRETUA, Grupo Experimental de Teatro da Universidade de Aveiro. Em Fevereiro de 2004 estreia em Lisboa a peça “HOMENS COMO TU”.

Obras publicadas

Poesia

MELÂNQUICO, 1970, Livros Sem Editor
A DANÇA DOS LILASES, 1982, Edições Bico d’Obra
BEBER A COR, 1985, Edições &Etc
A PEQUENA MORTE/ESSE ETERNO CANTO, 1986, Black Sun Editores (Díptico com Hélia Correia)
A PERFEIÇÃO DAS COISAS, 1988, Caminho
ARCO DE JASMIM, 1999, Edições Duas Luas, Belo Horizonte, Brasil
OS QUE VÃO MORRER, 2000, Relógio D’Água Editores
ZONA DE CAÇA, 2002, Relógio d’Agua Editores
DO EXTERMÍNIO, 2003, Relógio D’Água Editores; 1ª edição, 1995, Black Sun Editores

Ficção

TONHO E AS ALMAS, romance, 1984, Relógio D’Água Editores
O ÚLTIMO PARENTE DE JUSTINO, conto, 1989, Antologia Terrortório-Europress
A LOUCURA BRANCA, romance, 1990, Livro Aberto; 2ª edição, 2001, Íman Editores
OS DIAS DE UM EXCURSIONISTA, romance, 1996, Relógio D’Água Editores
A MULHER QUE APRENDEU A CHORAR, conto, 2ooo, Antologia Ficções-Tinta Permanente

Teatro

DEUSCÃO seguido de O TELEVISOR, 1988, SPA
O CONSTRUTOR, seguido de QUINZE MINUTOS DE GLÓRIA e O TERCEIRO ANDAR (Grande Prémio de Teatro APE 98), 1998, SPA/D.Quixote
SEIS MULHERES SOB ESCUTA, 1999, Teatro do Noroeste (Prémio Eixo-Atlântico de Textos Dramáticos 99)
CASA DE PÁSSAROS, 2001, SPA/D.Quixote
TRANSVIRIATO, 2001, Trigo Limpo/Teatro Acert
O JOGO DA SALAMANDRA e outras peças: A DESCIDA PARA AS CINZAS, DETALHE À PORTA DO INFERNO, SEIS MULHERES SOB ESCUTA e O ANEXO, 2001, Relógio d’Água Editores

Peças representadas

A REPARTIÇÃO, 1989, na Comuna, pelo Grupo de Teatro da Faculdade de Ciências de Lisboa, encenação de Almeno Gonçalves
DEPOIS DA NOITE O QUÊ?, 1998, pelo Teatro de Carnide, encenação de Paulo Ferreira
CASA DE PÁSSAROS, 2001, no Teatro Mirita Casimiro, pelo Teatro Experimental de Cascais, encenação de Carlos Avilez
O TELEVISOR, 2001, pelo Teatro Mosca (Cacém), encenação de Paulo Campos dos Reis
TRANSVIRIATO, 2001, pelo Trigo Limpo/Teatro Acert (Tondela), encenação de José Rui
O JOGO DA SALAMANDRA, 2001, pela Comuna e Teatro Público (Lisboa), encenação de Celso Cleto
SEIS MULHERES SOB ESCUTA, 2003, uma produção do Teatro da Trindade, Lisboa, encenação de Jorge Fraga
QUINZE MINUTOS DE GLÓRIA, 2003, pelo GRETUA, Grupo Experimental de Teatro da Universidade de Aveiro e Leitura Dramática na Eterno Retorno, Lisboa, pelo Grupo de Teatro Mínimo, da Sociedade Guilherme Cossoul
O TERCEIRO ANDAR, 2004, pelos Estudantes da Universidade de Manchester, Inglaterra
HOMENS COMO TU, 2004, pelo Teatro Útero, Lisboa, encenação de Miguel Moreira




A Arte do Fogo


1º ANDAMENTO


Um grito dá início à desordem.
A sua lâmina rasga a montanha
e desenha nela um caminho onde
existiram cabras. Ali vive agora um
cavalo escondido entre árvores.
Uma névoa nasce das raízes, como um
novelo de pó branco marcado pelas facas.

É o fogo que chega.

Há homens que carregam alguma
lenha, enquanto as mulheres dançam
no tojo, antes da noite, quando as
fogueiras estão no seu declínio e o
corpo tomba ferido pelo vinho.
De todos os lados vem esse som da
terra, um uivo que ressoa como um
um falcão e corta a resina, deixando no ar
uma música, um vento que existe por
detrás do sol, uma aragem, um sinal
pressentido no fundo da pele.




2° ANDAMENTO


No meio do fogo, uma boneca. O seu
vestido prendeu-se a uma árvore, tem
o corpo enforcado, sem pés, e deita um
riso de fera como se estivesse atada a
uma coluna de um templo. No rosto dela
cola-se a imagem de um deus que anda à
solta pelo bosque transportando no dorso
aquele monte nascido de um bode.

É o fogo que arde para cima.

E depois os rapazes, com os seus joelhos
de ferro, deitados sobre o musgo, respiram
a cinza de uma mulher que passou por ali
devastando tudo com o ciúme. São eles
que choram como pequenos carrascos, ao abandono.
Porque naquele monte o aroma das mulheres
é mais forte do que o fogo. E tudo o que arde
vem dos bichos, de um diabo que inventou
o mundo, das suas penas, como uma culpa.




3º ANDAMENTO


A chuva não veio como de costume para
separar o lume da terra e matar as vozes
dos homens no momento em que ao fundo
da paisagem, no mar, o sol cai num abismo.
O fumo toma conta das mãos, todos os desejos
ficam presos a uma tinta. Os cabelos saltam
do corpo, os pés cravam-se na terra quente
e toda a gente se vira para o centro daquele
monte onde um telhado vai sendo construído
e as raparigas entregam o suor e os olhos.

É o fogo que chama as cobras.

Junto da boneca surge outro cavalo e três
faunos espalham o pão enquanto outros
batem num tambor e cantam até que o monte
se abre para receber o fim das fogueiras,
os restos deixados pelos homens depois de um
vírus. A doença que atravessou o pinhal para
lá do alcatrão, das máquinas, é agora um hino
espetado na alma, um pedaço assombrado,
como um carnaval que se aproxima deixando
atrás de si uma cratera delimitada pelo sangue.




a arte do fogo
in hablar / falar de poesia
nr. 4, 2001