17 agosto 2014

rui knopfli / sem nada de meu


Dei-me inteiro. Os outros
fazem o mundo (ou crêem
que fazem). Eu sento-me
na cancela, sem nada
de meu e tenho um sorriso
triste e uma gota
de ternura branda no olhar.
Dei-me inteiro. Sobram-me
coração, vísceras e um corpo.
Com isso vou vivendo.


rui knopfli
memória consentida : 20 anos de poesia 1959-1979
imp. nac. casa da moeda
1982



16 agosto 2014

alberto caeiro / da minha aldeia



Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não, do tamanho da minha altura...
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe 
de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos 
nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.



alberto caeiro
o guardador de rebanhos



15 agosto 2014

gil t. sousa / sê então



sê então
a majestade da pirâmide
sobre
o meu sonho de faraó

e guarda o meu segredo
até ao despertar de outros reinos

e que o amor me guie ainda
na grande solidão cósmica

e que o meu olhar
se perpetue no teu sono
sem nunca te acordar

e que o tempo não acabe

e que o amor não acabe
nunca mais



gil t. sousa



14 agosto 2014

rui baião / um homem perdido no baldio de ser



Um homem perdido no baldio de ser
a verdadeira assunção da palavra.
Um homem sem memória,
baleado pelas sequelas do tempo,
pensa em tudo, é lenha
em turva combustão. Um homem
em riste perante o castigo, persiste.
É o mal no território do nada
a pregar a cura aos porcos.


rui baião
ladrador
averno
2012



13 agosto 2014

philip larkin / os velhos tolos



Que pensam eles que aconteceu, os velhos tolos,
Para os pôr assim? Porventura supõem
Que é mais crescido terem a boca aberta e a babar-se
E mijarem-se a toda a hora e não se recordarem
De quem os visitou hoje de manhã? Ou que é só quererem
E volta tudo a ser como quando dançaram toda a noite,
Ou casaram, ou marcharam de arma ao ombro num certo Setembro?
Ou imaginam que não houve mudança alguma
E que sempre se portaram como inválidos e bêbados
Ou se sentaram o dia inteiro em devaneio contínuo
Vendo a luz mover-se? Se não o crêem (e não podem), é estranho:
               Porque não estão a gritar?

Na morte, desfazemo-nos: os pedaços do que éramos
Começam a fugir uns dos outros para sempre
Sem ninguém a ver. Não é mais que um olvido, é certo:
Já o tivemos antes, mas dessa vez ia acabar,
E combinava-se com um esforço sem igual
para fazer desabrochar a flor de um milhão de pétalas
Que é estar aqui. Da próxima vez não se pode fingir
Que vai haver algo mais. E são estes os indícios:
Não saber como, não ouvir quem, já não ter
Força para escolher. Pelo ar deles, estão prontos para ir:
               Como podem não o saber?

Ser velho é talvez ter salas iluminadas
Dentro da cabeça e, lá dentro, gente a representar.
Gente que se conhece, mas cujo nome nos escapa;
Cada vulto responde a uma perda profunda, assomando
A uma porta conhecida, pousando uma vela, sorrindo
Das escadas, tirando um livro da estante; ou por vezes
Só as próprias salas, cadeiras e uma lareira acesa,
O vento no arbusto para lá da janela, ou a débil
Simpatia do sol na parede, num solitário
Fim de tarde de Verão, depois da chuva. É onde eles vivem:
Não aqui e agora, mas onde tudo aconteceu em tempos.
               Por isso é que eles têm

Um ar de ausência perplexa, tentando estar lá
E contudo estando aqui. É que as salas vão-se afastando,
Deixando para trás um frio inepto e o atrito constante
Do ar respirado, enquanto eles, os velhos tolos,
De cócoras junto ao morro da extinção, não se apercebem
De como está próximo. Deve ser isto que os sossega:
O pico que se observa de onde quer que se vá
Para eles é uma elevação. Será que não adivinham
O que os puxa para trás, e como tudo acabará? Nem à noite?
Ao longe de toda a horrível infância do avesso? Bom,
               Havemos de o saber.




philip larkin
janelas altas
trad. rui carvalho homem
cotovia
2004



12 agosto 2014

herberto helder / o barulho do mar e do vento

                                                         
                                                               (o quarto, fragmento)



     O barulho do mar e do vento.
     A montanha, a ideia da montanha impraticável.

                     E depois a terra arenosa por ali fora. E a solidão.
                     E sentir sobretudo que já não pode haver medo.

     Fecho as portas da casa, a porta de saída e as portas dos quartos entre si.

                     E fico no quarto sem soalho e deito-me no chão.

     Ouço o mar e o vento à frente e atrás da montanha solitária e poderosa.

     Depois encosto a cara à terra profundíssima
     para escutar o seu húmido sussurro
     atravessando-a toda e passando por mim.


                      E então poderei morrer.


  

herberto helder
os passos em volta
editora estampa
1963  





11 agosto 2014

fernando pessoa / a minha vida é um barco abandonado



A minha vida é um barco abandonado
Infiel, no ermo porto, ao seu destino.
Por que não ergue ferro e segue o atino
De navegar, casado com o seu fado?

Ah! falta quem o lance ao mar, e alado
Torne seu vulto em velas; peregrino
Frescor de afastamento, no divino
Amplexo da manhã, puro e salgado.

Morto corpo da acção sem vontade
Que o viva, vulto estéril de viver,
Boiando à tona inútil da saudade.

Os limos esverdeiam tua quilha,
O vento embala-te sem te mover,
E é para além do mar a ansiada Ilha.



fernando pessoa





10 agosto 2014

archibald macleish / ars poetica



Um poema deve ser palpável e mudo
como o fruto em globo

Calado
como antigos medalhões nos dedos

Silente como a pedra gasta por mangas
em umbrais onde o musgo cresceu -

Um poema deve ser sem palavras
como o voo das aves

Um poema deve ser imóvel no tempo
como a lua sobe

Largando, como a lua solta
ramo a ramo as árvores presas na noite,

largando, como a luz atrás do inverno larga
memória a memória, o espírito -

Um poema deve ser imóvel no tempo
como a  lua sobe

Um poema deve ser igual a -
não «verdadeiro»

Porque toda a história da dor
uma porta vazia e uma folha de plátano

Porque o amor
as ervas que se curvam e duas luzes acima do mar

Um poema não deve significar
mas ser.



archibald macleish
estados unidos
1892





09 agosto 2014

jaime salazar sampaio / instantâneo na cidade tranquila



Com vento favorável, mesmo junto aos edifícios dos bancos e dos grandes escritórios, pode sentir-se o cheiro do mar.

Vem do cais, não é absoluto nem abafa as buzinas dos carros. Não leva o perdão aos sonhos dos homens curvados nos arquivos, nem é mesmo vigoroso como pensar de repente na morte, pensar na morte e trincar uma laranja.

Mas com vento favorável boa vontade e raiva pode sentir-se, chega a sentir-se, o cheiro do mar.



jaime salazar sampaio
poemas propostos
1954



08 agosto 2014

liberto cruz / a exacta viagem (fragmento inicial)



                                A Urbano Tavares Rodrigues e
                                           David Mourão-Ferreira


Falo de um tempo incolor,
onde a luz brilha como um aço esquecido.
Aqui um gesto limita carícias como vidro esmagado,
e, do que sabemos, só é nossa esta sagrada flor
que não desvendamos.
Prodigiosos os insectos,
cujo vocabulário é tão reduzido e ondulado
e sentem a morte
como os pássaros escuros e sem destino.
Sábios, brilhantes e frios,
os dedos que nos estendem
trazem eternidade de gargantas falsas
onde um reino é sempre dourado,
mas nunca, nunca chega a nossa voz
de juncos e ausência.

Onde estás primavera de vinho e loucura
que não nos restituis as acácias
e os peixes das ervas pequenas e sadias?

Onde se esconde teu coração adolescente,
teu riso de neve e seda
em perene sigilo?

Onde colher os gestos da lua
se nos cortaram as mãos
e a catedral de nossa esperança
agoniza todas as noites,
entre estátuas e estátuas?

Não; não nos falem de palavras
compondo bênçãos
e escorrendo rios de alegria e paz.
Não é verdade que temos ossos e músculos
e o sangue dói quando nos apertam a cabeça?
… …... … … … … … … … … … … … … … …




liberto cruz
itinerário
1962



07 agosto 2014

ângelo de lima / olhos de lobas



Teus olhos lembram círios
Acesos n'um cemitério...
Dr. Rogério de Barros

Têm um fulgor estranho singular
Os teus olhos febris... Incendiados!...

Como os Clarões Finais... - Exaustinados
Dos restos dos archotes, desdeixados...
- Nas criptas d'um Jazigo Tumular!...

- Como a Luz que na Noute Misteriosa
- Fantástica - Fulgisse nas Ogivas
Das Janelas de Estranho Mausoléu!...

- Mausoléu, das Saudades do Ideal!...

- Oh Saudades... Oh Luz Transcendental!
- Oh memórias saudosas do Ido ao Céu!...

- Oh Pérpetuas Febris!... - Oh Sempre Vivas!...
- Oh Luz do Olhar das Lobas Amorosas!...


ângelo de lima
poesias completas
editorial inova
1971


06 agosto 2014

mário cesariny / o moço pastor que ali vem cantar




III

o moço pastor que ali vem cantar
a sombra que deu
aos montes que têm o rio a passar
outro azul no céu

vê perto seu canto que ouvido se esconde
e é o que ele sabe
mas longe na noite sem fim lhe responde
a mesma verdade

que é a estação fria como está nos ramos
e na lua-cheia
pequeno cordeiro que há anos e anos
ele pastoreia



mário cesariny
manual de prestidigitação
vizualizações
assírio & alvim
1981




05 agosto 2014

rené char / o inofensivo


Choro quando o sol se põe porque ele te esconde da minha vista e porque não sei entender-me com os seus rivais nocturnos. Embora ele esteja baixo e agora sem febre, é impossível contrariar o seu declínio, suspender a sua desfolhagem, arrancar ainda algum desejo à sua desfolhagem, arrancar ainda algum desejo à sua claridade moribunda. A sua partida funde-te com a sua obscuridade, como a lama do leito se dissolve na água da torrente para além do entulho das margens destruídas. Dureza e moleza de origens diferentes têm então efeitos semelhantes. Cesso de receber o hino da tua palavra; subitamente já não te vejo inteira ao meu lado; não é o fuso nervoso do teu pulso que eu seguro na mão, mas o ramo oco de uma qualquer árvore já morta e gasta. Só se dá nome ao arrepio, e a mais nada. É de noite. Os artifícios que se acendem acham-me cego.

De verdade só chorei uma única vez. O sol ao desaparecer tinha cortado o teu rosto. A tua cabeça rolara na fossa do céu e eu já não acreditava no futuro.

Qual é o homem da manhã e qual o homem das trevas?




rené char
este fanático das nuvens
poemas dos dois anos
palavra em arquipélago (1952-60)
tradução y. k. centeno
cotovia
1995