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30 maio 2019

wislawa szymborska / roupa



Tiras, tiramos, tiram,
gabardinas, jaquetas, casacos, blusas,
de lã, algodão, de algodão e lã,
saias, calças, meias, roupa branca,
vestindo, pendurando, atirando para
costas de cadeiras, asas de biombos,
por agora, diz o médico, não é nada de sério,
vista-se, por favor, descanse, viaje,
tomar em caso de, antes de dormir, depois de comer,
voltar daqui a três meses, um ano, ano e meio;
vês, e tu que pensavas, e tínhamos medo,
e vocês supuseram, e ele que suspeitava;
é altura de atar, apertar, de mãos ainda trémulas,
atilhos, éclairs, fivelas, colchetes,
cintos, botões, gravatas, colares,
e retirar das mangas, da mala, da algibeira,
enrugado, às bolas, às riscas, às flores, aos quadrados, o lenço
que de repente continua a revelar-se útil.



wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998




05 fevereiro 2019

wislawa szymborska / o céu





Era por aí que se devia ter começado: o céu.
janela sem parapeito, sem caixilho, sem vidros.
A abertura e nada para além dela,
de par em par aberta todavia.

Não tenho que esperar uma noite calma
nem de levantar a cabeça
para olhar o céu.
O céu tenho-o à mão,
atrás de mim, nas minhas pálpebras.
Hermeticamente o céu me envolve
e me levanta do chão.

Nem mesmo os mais altos cumes
ficam mais perto do céu
que os vales profundos.
Em lugar algum ele existe mais
que nalgum outro.
E em rigor tão coberta de céu está a nuvem
como o túmulo.
Tão do céu é a toupeira
como a coruja de asas lestas.
E coisa que caia em precipício
cai do céu para o céu.

Soltos, fluidos, rochosos,
coruscantes e etéreos
abas de céu, sobras de céu,
sopros de céu e medas.
O céu é omnipresente
até nas escuridões sob a pele.

Eu como o céu, expulso o céu.
Eu sou armadilha na armadilha,
o habitante habitado,
o possuído da posse,
pergunta em resposta a uma pergunta.

Dividir em terra e céu
não é a maneira certa
de pensar nesta unidade.
Permite-me apenas viver
em morada mais exacta,
mais rápida de encontrar
se eu fosse procurada.
Os meus sinais particulares
são o fascínio e o desespero.



wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998







13 dezembro 2018

wislawa szymborska / amor feliz



Amor feliz. Será normal,
será sério, será útil? —
que tem o mundo a ver com duas pessoas
que não vêem o mundo?

Erguidos ao seu céu sem mérito nenhum,
os melhores entre milhões e convencidos
que assim tinha que ser — a premiar o quê? Nada;
de algum ponto cai a luz —
e porquê logo sobre estes e não outros?
Ofenderá isto a justiça? Sim.
Perturbará os princípios estabelecidos com cuidado?
Derrubará do seu púlpito a moral? Perturba e derruba.

Olhem-me bem estes felizardos:
se ao menos se mascarassem um pouquinho,
fingissem melancolia dando assim algum ânimo aos amigos!
Ouçam bem como se riem — é um insulto.
A linguagem que usam — entendivel, pelos vistos.
E aquelas cerimónias, etiquetas,
obrigações rebuscadas um para com o outro —
parece mesmo um acordo nas costas da humanidade.

É difícil até de prever no que daria
se um tal exemplo pudesse ser seguido.
Com que é que poderiam contar as religiões, a poesia,
de que nos recordaríamos, de que desistiríamos,
quem quereria pertencer ao círculo?

Amor feliz. Assim terá que ser?
Tacto e bom senso mandam omiti-lo
como a um escândalo nas altas esferas da Existência.
Magníficas crianças nascem sem a sua ajuda.
Nunca por nunca ele poderia povoar a terra
já que tão raro é acontecer.

Deixem que quem não conheceu o amor feliz
afirme que não há amor feliz.

Com esta crença mais leve lhes será tanto viver como morrer.


wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998







05 novembro 2018

wislawa szymborska / nuvens




Para descrever as nuvens
muito teria de apressar-me,
pois numa fracção de segundo
deixam de ser estas e começam a ser outras.

É sua propriedade
não se repetir
nas formas, tonalidades, poses e configurações.

Sem o peso de qualquer lembrança,
pairam sem dificuldade sobre os factos.

Mas nem testemunha-los podem,
pois logo se dissipam em todas as direcções.

Comparada com as nuvens,
a vida afigura-se firme,
quase duradoura, eterna.

Perante as nuvens
até uma pedra parece nossa irmã,
na qual se confia,
mas elas, enfim, umas levianas primas afastadas.

As pessoas que existam, caso queiram,
e depois morram uma por uma,
as nuvens não têm nada a ver com
coisas
tão estranhas.

Sobre toda a tua vida
e sobre a minha, ainda não toda,
desfilam com pompa, como desfilavam.

Não têm obrigação de morrer connosco.
Não precisam do nosso olhar para navegar.


wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006








31 agosto 2018

wislawa szymborska / as três palavras mais estranhas




Quando pronuncio aa palavra Futuro
a primeira sílaba já pertence ao passado.

Quando pronuncio a palavra Silêncio,
destruo-o.

Quando pronuncio a palavra Nada,
crio algo que não cabe em nenhum não-ser.


wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006











07 junho 2018

wislawa szymborska / álbum




Na minha família ninguém morreu de amor.
Se alguma coisa houve não passou de historieta.
Tísicas de Romeu? Difterias de Julieta?
Alguns envelheceram até ganhar bolor.
Ninguém a definhar por falta de resposta
a uma carta molhada e dolorosa.
Apareceu sempre por fim algum vizinho
com lunetas e uma rosa.
Ninguém a desfalecer no armário de asfixia
de algum marido voltando sem contar.
E os mantos e os folhos e as fitas de apertar
a nenhum impediram de ficar na fotografia.
E nunca no espírito satânico de Bosch!
E nunca pelos quintais de arma em punho!
De bala na cabeça teve a morte outro cunho
e em macas de campanha alguém os trouxe.
De olheiras fundas como após grande folia,
até esta aqui de carrapito extático,
se fez ao largo em grande hemorragia
mas não por ti, ó bailarino, e com viático.
Talvez antes do daguerreótipo, alguém,
mas dos deste álbum, ninguém, que eu verifique.
Tristezas dissipam-se, os dias sucederam-se,
e eles, reconfortados, sumiram-se de gripe.



wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998







20 abril 2018

wislawa szymborska / crepúsculo do século




Devia ter sido melhor que os anteriores o nosso século XX.
Já não conseguirá sê-lo,
tem os anos contados,
o passo vacilante,
o fôlego curto.


Já demasiadas coisas se passaram
que se não deveriam ter passado
e não chegou
o que deveria ter chegado.

Devia ter-se tendido mais para a primavera
e para a felicidade, entre outras coisas.

O terror devia ter abandonado vales e montanhas.
E, mais rápida que a mentira,
Devia ter sido a verdade a primeira a chegar.

Houve desgraças
que já não deviam ter acontecido,
a guerra, por exemplo,
e a fome, e por aí fora.

Deveriam ter sido considerados
a capacidade de defesa dos indefesos,
a confiança e etc.

A quem quis alegrar-se com o mundo,
deparou-se-lhe um projecto
impossível de realizar.

A imbecilidade não é cómica.
A sensatez não é alegre.
A esperança não é já aquela rapariga fresca
e mais e mais, infelizmente.

Deus deveria finalmente ter confiado no homem
bom e forte,
mas o bom e o forte
continuam a ser duas pessoas.

Como viver, perguntou-me numa carta alguém
a quem eu tencionava perguntar
a mesma coisa.

Uma vez mais e como sempre,
como se vê no que acabei de dizer,
não há perguntas mais urgentes
que as ingénuas.


wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998






12 janeiro 2018

wislawa szymborska / alguns gostam de poesia



Alguns –
quer dizer que nem todos.
Nem sequer a maior parte mas sim uma minoria.
Não contando as escola onde se tem que,
e quanto a poetas,
dessas pessoas, em mil haverá duas.

Gostam –
mas gosta-se também de sopa de esparguete,
dos galanteios e da cor azul,
do velho cachecol,
brindar à nossa gente,
fazer festas ao cão.

De poesia –
mas que é isso a poesia?
Muitas e vacilantes respostas
Já foram dadas à questão.
Por mim não sei e insisto que não sei
e esta insistência é corrimão que me salva.


wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998







25 dezembro 2017

wislawa szymborska / agradecimento



Devo imenso
aos que não amo.

O alívio com que aceito
eles estarem mais próximos de outras pessoas.

A alegria de não ser eu
o lobo dos seus cordeiros.

A minha paz com eles,
com eles a minha liberdade,
e isto não o pode dar o amor
nem o consegue tirar.

Não espero por eles
entre porta e janela.
Quase tão calma
como um relógio de sol,
entendo
o que o amor não entende,
desculpo
o que o amor jamais desculparia.

Entre carta e encontro
não passa a eternidade,
mas simplesmente uns dias ou semanas.

As viagens com eles são conseguidas,
os concertos escutados,
as catedrais visitadas,
as paisagens nítidas.

E quando nos separam
sete rios e montanhas,
são rios e montanhas
bem conhecidos dos mapas.

É mérito deles
que eu viva em três dimensões,
num espaço não lírico e não retórico
com um horizonte real porque movente.

Eles próprios ignoram
quanto trazem nas mãos vazias.

«Nada lhes devo» -
diria o amor
a este tema aberto.




wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998






06 dezembro 2017

wislawa szymborska / a curta vida dos nossos ascendentes




Poucos chegaram aos trinta anos.
A velhice era privilégio das pedras e das árvores.
A infância durava a das crias dos lobos.
Havia que ser rápido, acompanhar a vida,
antes que se ponha o sol,
antes que a primeira neve caia.

Geradoras de filhos aos treze anos,
aos quatro assaltantes de ninhos nos juncais,
aos vinte dirigindo a montaria,
ainda há pouco mal estavam, agora já não estão.
As pontas do infinito depressa se alongavam.
As bruxas ruminavam os anátemas
ainda com toda a primeira dentição da mocidade.
À vista de seu pai o filho amadurava,
ao baço olhar do avô brotava o neto.

E por fim nem sequer os anos eles contavam.
Contavam tachos, redes, barracas e machados.
Tão benévolo o tempo para qualquer estrela
e estendia-lhes uma mão quase vazia
para logo a retirar como se achasse pena.
Um passo mais, mais dois ainda,
ao longo de um rio tremeluzente,
que das trevas escorre e as trevas volta.

Não havia nem um momento a perder,
perguntas a adiar, revelações tardias,
se não fora tudo experimentado previamente.
A sensatez não podia esperar pelos cabelos brancos;
havia que ver claro antes de a claridade vir,
ouvir a grande voz antes que o som se propagasse.

O bem e o mal –
pouco sabiam sobre eles e, porém, tudo:
quando triunfa o mal, o bem esconde-se;
quando o bem aparece, fica o mal de atalaia.
Um e outro impossíveis de vencer
ou de afastar para uma distância sem regresso.
Eis porque, se alegria – com angústia misturada,
se desespero – nunca sem esperança muda.
A vida, embora também longa, é sempre curta.
Curta de mais para dizer mais do que isto.



wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998







07 novembro 2017

wislawa szymborska / contributo para as estatísticas



Em cem pessoas,

sabedoras de tudo melhor —
cinquenta e duas;

inseguras de cada passo —
quase todo o resto;

prontas para ajudar,
desde que não demore muito —
quarenta e nove;

sempre boas,
porque não conseguem de outra forma —
quatro, talvez cinco;

dispostas a admirar sem inveja —
dezoito;

constantemente receosas
de algo ou alguém —
setenta e sete;

aptas para a felicidade —
vinte e tal, quando muito;

individualmente inofensivas,
em grupo ameaçadoras —
mais de metade, com certeza;

cruéis,
por força das circunstâncias —
é melhor não sabê-lo,
nem aproximadamente;

com trancas na porta depois da casa roubada —
quase tantas como
aquelas que as têm, antes da casa roubada;

não levando nada da vida a não ser coisas —
quarenta,
embora preferisse estar enganada;

agachadas, doloridas
e sem lanterna no escuro —
oitenta e três,
mais tarde ou mais cedo;

dignas de compaixão —
noventa e nove;

mortais —
cem em cem.
Número, até agora, não sujeito a alterações.



wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006






20 março 2017

wislawa szymborska / possibilidades



Prefiro o cinema.
Prefiro os gatos.
Prefiro os carvalhos nas margens do Warta.
Prefiro Dickens a Dostoiévski.
Prefiro-me gostando dos homens
em vez de estar amando a humanidade.
Prefiro ter uma agulha preparada com a linha.
Prefiro a cor verde.
Prefiro não afirmar
que a razão é culpada de tudo.
Prefiro as excepções.
Prefiro sair mais cedo.
Prefiro conversar com os médicos sobre outra coisa.
Prefiro as velhas ilustrações listradas.
Prefiro o ridículo de escrever poemas
ao ridículo de não os  escrever.
No amor prefiro os aniversários não marcados,
para serem comemorados cada dia.
Prefiro os moralistas
que não prometem nada.
Prefiro a bondade esperta à bondade ingénua demais.
Prefiro a terra à paisana.
Prefiro os países conquistados aos países conquistadores.
Prefiro ter objecções.
Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem.
Prefiro os contos de fada de Grimm às manchetes de jornais.
Prefiro as folhas sem flores às flores sem folhas.
Prefiro os cães com o rabo não cortado.
Prefiro os olhos claros porque os tenho escuros.
Prefiro as gavetas.
Prefiro muitas coisas que aqui não disse,
outras tantas não mencionadas aqui.
Prefiro os zeros à solta
a tê-los numa fila junto ao algarismo.
Prefiro o tempo do insecto ao tempo das estrelas.
Prefiro isolar.
Prefiro não perguntar quanto tempo ainda e quando.
Prefiro levar em consideração até a possibilidade
do ser ter a sua razão.


wislawa szymborska
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de aleksandar jovanovic e henry siewierski
assírio & alvim
2001