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24 maio 2018

mário-henrique leiria / um dia estarei na praça




um dia estarei na praça
lá onde se ergue a enorme
estátua vertical
brilhando ao sol

em silêncio     
encontrarei o grande segredo
da tua vinda
porque
tu aparecerás
olhos     sexo     boca
seios fulgurantes
enquanto vários homens
vão escavando lentamente o solo

eu sei
que caminharás para mim
nada poderás fazer
senão isso
o leito onde existiremos
já estará construído

caminharemos     abraçados
eu e tu
o grande milagre
das aves que voam para a noite
o caminho para o poço
povoado de seres desconhecidos
e amados por nós dois



mário-henrique leiria
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998







21 fevereiro 2018

mário-henrique leiria / simples como é




simples como é
a claridade é a coisa
mais difícil de encontrar

talvez porque a distância que nos
separa longa muito longa
e nítida
seja a torre de chumbo do nosso
próprio isolamento
talvez porque sentir
o aparecimento da madrugada
seja a origem do desespero
sombra trópico lâmina
entre nós dois

                ouve o que te digo

não esqueças que os meus lábios
mesmo quando desfeitos
e a claridade
essa não a procures não nunca
deixa-a ir comigo
até ao esgotamento do meu sangue
até ao limite
do meu corpo em carne viva




mário-henrique leiria
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998









20 novembro 2017

mário-henrique leiria / eu sei



eu sei
que há um lugar por descobrir
um lugar tenebroso e cantante
como uma ponte de velhos manequins


o teu corpo
dois seios despedaçados
e o vento só o vento
soprado através dos
teus cabelos




mário-henrique leiria
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998






09 junho 2015

mário-henrique leiria / último encontro



o amor não somos nós que o temos
é-nos dado
muito antes de termos nascido
talvez verdadeiro     autêntico
como o encontro do mar e da luz

depois    muito depois
quando os teus braços     os teus seios
chegaram até mim
já estavam perdidos
já não existiam
o meu rosto deformado     atroz
já não te podia olhar
mas os meus olhos    esses sim
ainda te viam como antes
como tu eras quando não existias
só os meus olhos
só os meus olhos
as mãos    essas     sem dedos
esfoladas    esfaceladas
de tanto esperar
nunca te encontraram
w    na grande planície do medo
ficavas tu    que não existias
o meu corpo   belo   perdido
sem rosto   muito pálido
partiu então
entre a nuvem e a sombra
maravilha de verdade
mas perdido na praia do sonho
embalado em algas
com muitos animais marinhos no sexo
com um rasto de luas
que sempre     sempre
o acompanharão

apenas duas gotas de sangue
pequenas    rutilantes

os meus olhos     os meus olhos
sempre os meus olhos



mário-henrique leiria
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998




03 janeiro 2015

mário-henrique leiria / viver com a crueldade



viver com a crueldade
da criança que
tira os olhos ao pássaro

um desconhecido
movendo-se constantemente
no deserto
em que cada pegada deixa
bem marcada na areia
a imagem dessa
outra existência
em que a morte e a memória
ainda mais significam

mais alto

muito mais alto talvez
que a claridade
do voo das aves que
partem para o desconhecido

o próprio corpo nada mais é
do que a sombra
bem simples por sinal
dos braços que nos rodeiam
por erro nosso ou dos outros
já não existe
a persistência do que
foi perdido

e as mãos
as mãos que sentimos
bem presas     seguras     aptas
essas
todos sabemos
que podem ainda     cada vez mais
esmagar com cuidado     com extremo cuidado
dilacerar     suavemente


nos olhos
está o amor

  

mário-henrique leiria
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998





15 abril 2013

mário-henrique leiria / a banana


  
Era uma Velha
tinha uma touca
estava sentada lá na Aldeia
com generais
imperativos e marciais
lá na Aldeia
também havia
alguns pardais
bastante menos que generais
e muito menos
marciais

mas o que se impunha
era educar
e impor a lei
em posição mais marcial
que a do pardal
que tal que tal que tal
e a Velha querida
perna estendida
e sorridente e cordeal
já prometi
a importação a exportação
e algum grão
de bico de bico de bico

parece então que foi
então
que quem não era general
nem considerado
com preparação operacional
na construção
reconstrução constipação
do bananal nacional
viva Tentugal
e não tinha o menor bico
pico pico serenico
sentiu que só sol
e só Velha com uma touca
que louca que louca que louca
era tristeza era pobreza
e coisa pouca
e foi-se embora
para Chucrute
para Bolero
para Zamora
e até pra França
deixando o bico
tão rico tão rico tão rico
marcando passo requiquitico
em contradança
com generais industriais
da construção
da exportação da importação
e de algum grão
de bico de bico de bico




mário-henrique leiria
novos contos do gin
estampa
1973



16 dezembro 2012

mário henrique leiria / origem dos sonhos esquecidos




Entre a bicicleta e a laranja
vai a distância de uma camisa branca

Entre o pássaro e a bandeira
vai a distância dum relógio solar

Entre a janela e o canto do lobo
vai a distância dum lago desesperado

Entre mim e a bola de bilhar
vai a distância dum sexo fulgurante

Qualquer pedaço de floresta ou tempestade
pode ser a distância
entre os teus braços fechados em si mesmos
e a noite encontrada para além do grito das panteras

Qualquer grito de pantera
pode ser a distância
entre os teus passos
e o caminho em que eles se desfazem lentamente

Qualquer caminho
pode ser a distância
entre tu e eu

Qualquer distância
entre ti e eu
é a única e magnífica existência
do nosso amor que se devora sorrindo.

(1949)



Publicado, inédito, por Mário Cesariny na revista "MELE - International Poetry Letter", revista de Honolulu dirigida por Stefan Baciu cujo número de Março de 81 foi integralmente dedicado aos poetas surrealistas portugueses. 



08 novembro 2012

mário-henrique leiria / ida sem volta




Acordar na cidade logo da manhã
e esperar a noite com exactidão
no encontrar do último comboio
que parte conciso para outro dia
sair na estação que é central
de outra cidade já a anoitecer
onde talvez seja o lugar habitual
do vendedor ambulante das sortes
quase grandes
no caminho designadamente antecipado
pelo voo dos pássaros migradores
que agora mesmo se vão de partida
para outra cidade de amanhecer definitivo
e depois da viagem sempre conhecida
da porta em porta na cidade
adormecer ao aviso da madrugada
e esperar o sinal propício indicado
pelo caminho persistente dos peixes
a subir o rio exaustivamente nele
acordar na noite da noite na cidade
até chegar o momento muito matinal
de partir no primeiro comboio efectivo
da manhã de outra cidade a entardecer



mário-henrique leiria
contos do gin tonic
editorial estampa
1973



22 outubro 2012

mário-henrique leiria / esclarecimento


  

Quando estamos cansados
deitamos o corpo
e adormecemos


às vezes não


procuramos outra mão
outros olhos
que nos limpem a fadiga
e evitem o sono
que nos vem antigo


quando estamos cansados
podemos erguer o corpo
e acordar
e morrer acordados
sem cansaço

  

mário-henrique leiria
novos contos do gin
estampa
1973




18 outubro 2012

mário-henrique leiria / explicação rigorosa





Esperar
o quê?
uma máquina
de transformar bananas
em governos?
uma porta
que só obedece ao sinal
do ombro respeitável?
o cão profissional
que morde à sexta-feira
a perna que contesta?
o dedo
de unha poluída
que aponta a única direcção?

esperar
o quê?
o riso explosivo
e quente
como um sexo de mulher
aberto em flor

a faca
a granada
o dia




mário-henrique leiria
novos contos do gin
estampa
1973




16 setembro 2012

mário-henrique leiria / forte de caxias, março de 1952





nós somos…
nós somos inúmeros
desconhecidos
feitos de revoltas e de lutas
nós somos inúmeros
feitos de sangue e de combates
nós somos todos os de nome ignorado
feitos de força e de amor
somos aqueles que
de Ocidente a Oriente
olham o sol bem de frente
e acreditam nas estrelas
somos os que caem a sorrir
que morrem a cantar
folhas ignoradas duma árvore
que ao tombar     verticais     belas
vêm fecundar a raiz
de outras árvores por nascer
aquecer a terra
onde nascerão papoilas vermelhas
que serão colhidas por crianças sorridentes
nós somos os que caminham
de olhos bem abertos virados à manhã
canções nos lábios

nós somos inúmeros
desconhecidos…





mário-henrique leiria
depoimentos escritos
editorial estampa
1997





02 maio 2012

mário-henrique leiria / evocação






Pegada na areia
recortada ainda
como o sinal distante
que espera apenas
a prevista vinda
do mar em maré cheia
barco oscilante
vazio como o búzio
abandonado
entre os escombros
a recordar
um rosto perdido
de mulher
envolto em algas
com manchas solares
até aos teus ombros
num tempo já esquecido
sorriso de mulher
a desaparecer suavemente
atrás da duna
como a leve escuna
que parte
ao sol poente

todos os demónios
cantando em tua mão
o mar
a solidão




mário-henrique leiria
contos do gin tonic
editorial estampa
1973


07 novembro 2011

mário henrique leiria / triângulo kabalístico





Eu sei que as túlipas
são os olhos de todos os aviões perdidos

Eu sei que as cidades
são os esqueletos das aves de rapina

Eu sei que os candeeiros ardendo de noite
são os pulmões dos peixes-voadores

Eu sei que o mistério
é uma dentadura abandonada

Eu sei que a loucura
é um braço solitário sorrindo eternamente

Eu sei que os meus olhos
são as tuas pernas frementes

Eu sei que os teus cabelos
são o meu acendedor de pirilampos

Eu sei que a tua boca
é o meu uivo solar

Eu sei que o teu peito e o teu sexo
são a minha água profundamente azul
onde se encontram todos os fantasmas
já perdidos há séculos.







mário-henrique leiria
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998




09 fevereiro 2010

mário-henrique leiria /claridade dada pelo tempo







I

Deixa-me sentar numa nuvem
a mais alta
e dar pontapés na Lua
que era como eu devia ter vivido
a vida toda
dar pontapés
até sentir um tal cansaço nas pernas
que elas pudessem voar
mas não é possível
que tenho tonturas e quando
olho para baixo
vejo sempre planícies muito brancas
intermináveis
povoadas por uma enorme quantidade
de sombras
dá-me um cão ou uma bola
ou qualquer coisa que eu possa olhar
dá-me os teus braços exaustivamente
longos
dá-me o sono que me pediste uma vez
e que transformaste apenas para
teu prazer
nos nossos encontros e nos nossos
dias perdidos e achados logo em
seguida
depois de terem passado
por uma ponte feita por nós dois
em qualquer sítio me serve
encontrar o teu cabelo
em qualquer lugar me bastam
os teus olhos
porque
sentado numa nuvem
na lua
ou em qualquer precipício
eu sei
que as minhas pernas
feitas pássaros
voam para ti
e as tonturas que a planície me dá
são feitas por nós
de propósito
para irritar aqueles que não sabem
subir e descer as montanhas geladas
são feitas por nós
para nunca nos esquecermos
da beleza dum corpo
cintilando fulgurantemente
para nunca nos esquecermos
do abraço que nos foi dado
por um braço desconhecido
nós sabemos
tu e eu
que depois de tudo
apenas existem os nossos corpos
rutilantes
até se perderem no
limite do olhar
dá-me um cigarro
mesmo que seja só um
já me basta
desde que seja dado por ti
mas não me leves
não me tires
as tonturas que eu teria
que eu terei
sempre que penso cá de cima
duma altura vertiginosa
onde a própria águia
nada mais é que um minúsculo
objecto perdido
onde a nuvem
mais alta de todas
se agasalha como um cão de caça
leva-me a recordação
apenas a recordação
da vida martelada
que em mim tem ficado
como herança dada há mil e
duzentos anos

deixa que eu fique
muito afastado
silencioso
e único
no alto daquela nuvem
que escolhi
ainda antes de existir











mário-henrique leiria
o surrealismo na poesia portuguesa
antologia organizada por natália correia
frenesi
2002







18 setembro 2008

mário-henrique leiria / retorno à memória








estar sempre com frio
como o caminhar à noite só sem luz
como a árvore que olha com raiva a tempestade
talvez mesmo como a cama
que conserva apenas as formas já desfeitas
dos corpos que nelas se deitam


depois com o vento
é a saudade das madrugadas doutros tempos
quando o simples descer uma escada
era a mais extraordinária das aventuras
quando a certeza de encontrar uns braços abertos
estava evidente no fundo da escuridão


então tudo era simples muito belo
qualquer palavra tua
era a mais maravilhosa das afirmações
qualquer gesto que fizesses
era o mais belo movimento de amor
caminhar ao acaso
era a grande viagem sempre renovada todos os dias
e à noite
não havia frio como agora
mesmo que o mar nos cobrisse de algas
mesmo que a areia
trouxesse consigo o gelo das mais remotas estrelas


agora amor escuto o teu olhar
através da distância cada vez maior e mais alucinante
que nos separa
escuto-o através da ponte
que formaram os caminhos por nós percorridos um dia
vejo-te como partiste
muito pura flores na testa mãos abertas
igual às madrugadas doutros tempos
igual à grande aventura
de caminhar ao acaso










mário-henrique leiria
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998







28 novembro 2006

ternura

cruzeiro seixas



Cheguei a casa um pouco mais cedo que de costume. Tirei a ventoinha da cabeça, pus-me à vontade, fui ver se os mamutes estavam a fazer disparates e sentei-me na sala, no velho e confortável sofá que a tia Mizé nos oferecera pelo casamento. Querida tia Mizé! Preparei um gin.
Josela ainda não chegara. Estava atrasada, talvez as compras, quem sabe.
Foi quando ouvi abrir a porta. Fui ver. Josela chegava, empurrando o carrinho antigo que servira para o nosso filho agora com dezoito anos como sabem, e com um bom lugar de Viet qualquer coisa, lá não estou bem certo onde; lugar seguro e de futuro, foi o que me disseram. Bom rapaz, o nosso garoto.
Olhei o carrinho. Trazia um bebé dentro. Josela sorria. Vi o preço. Razoável. Do talho do senhor Esteves. Manias da Josela.
Olhei Josela.
Tinha os olhos brilhantes, havia urna ternura inesperada que a envolvia, uma tristeza distante nas mãos.
— Achas que podemos ficar com ele? — perguntou-me, afirmando.
Concordei. Josela manda.
Arrumei o carrinho.
Era um bebé ainda em muito bom estado. Durou cinco dias até apodrecer, calculem!





mário-henrique leiria
“casos de direito galático / o mundo inquietante de josela (fragmentos)”
ilustrações de cruzeiro seixas
editorial república
1975