Mostrar mensagens com a etiqueta fernando pinto do amaral. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta fernando pinto do amaral. Mostrar todas as mensagens

18 agosto 2017

fernando pinto do amaral / lisboa-94




Descri  do tempo: a vida arrependeu-se
de todas as promessas, dia a dia
irrompendo e rompendo o infinito
do que chamamos febre, labareda
acesa desde sempre. Neste corpo
há um princípio de alma a respirar
como fogo roubado a outro a fogo
que mais ninguém conhece – ergueu-se a chama
e ondula ainda em cada gesto meu
a decompor-se ao longo de mil gestos
das pessoas autómatas, varrendo
a atmosfera das ruas, o prazer
de repetir retratos entre as curvas
da pálida cidade boquiaberta
em fim de quarta-feira. De improviso
a memória atravessa uma abertura
pelo meio de portas mal fechadas,
caleidoscópio histérico de encontros
em bares e restaurantes sob as luzes
cada vez mais à deriva. O pensamento
dilui-se ao ritmo dos lugares-comuns
no quase inútil mapa dos sorrisos
agora sobrepostos – engrenagens
nocturnas, reticências prolongando
as falas sempre vãs dos vãos amigos,
poeira de mil sonhos dissipados,
melodia espectral, oásis mudo,
palácio em ruínas, coração.



fernando pinto do amaral
o lento apocalipse do sangue
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000




27 outubro 2016

fernando pinto do amaral / limiar



Queria roubar ao céu a luz do dia
e oferecer-ta agora, enquanto passam
as aves e o vento
arrasta um «rio de nuvens» infelizes
a caminho da noite. A primavera
põe um sorriso em cada verso, quando
floresce no meu sangue o mais divino
arrepio. Estou só,
mas sei que existe algures uma estrela
ainda por nascer.

De silêncio em silêncio
cintilam as imagens que deixaste
a arder sobre os meus olhos, cuja cinza
abraça este crepúsculo e regressa
ao coração. Entre a folhagem
palpita a voz do sol, estremece ainda
a pura melodia do seu fogo
quase em segredo
 – esse primeiro sonho de que é feita
a memória dos deuses no teu rosto.



fernando pinto do amaral
às cegas
relógio de água
1997



19 fevereiro 2016

fernando pinto do amaral / antevisão


Talvez a alma seja apenas
uma imperfeita câmara escura
onde o que vemos serão cenas
de uma vida futura

e no contorno das imagens
que pouco a pouco se revela
descortinamos personagens
dessa vida mais bela.

Fotografias no avesso
da consciência fugidia
hão-de exigir-nos o seu preço
para a melancolia,

mas é tão bom ficar a vê-las
dentro de nós, num céu fictício
onde cintilam as estrelas
desse puro artifício

iluminando a nossa treva
com a estranha luz de um sobressalto
e é talvez isso que nos leva
a um lugar mais alto.


fernando pinto do amaral
poesia do mundo/3
afrontamento
2001



03 setembro 2015

fernando pinto do amaral / zeitgeist



Os meus contemporâneos falam muito
e dizem: «Então é assim»,
com o ar desenvolto de quem se alimenta
do som da própria voz, quando começam
a explicar longamente as actuais tendências
das artes ou das letras ou das sociedades
a pouco e pouco iguais umas às outras
neste primeiro mundo em que nascemos,
agora que o segundo deixou de existir
e que o terceiro, mais guerra, menos fome,
continua abstracto, em folclore distante.

Parece que está morta a metafísica
e que a verdade adormeceu, sonâmbula,
nos corredores vazios onde, às escuras,
se vão cruzando alguns milhões de frases
dos meus contemporâneos. Todavia,
falam de tudo com o entusiasmo
de quem lança «propostas» decisivas
e percorre as «vertentes» de novos caminhos
para a humanidade, enquanto saboreiam
a cerveja sem álcool, o café
sem cafeína e sobretudo
o amor sem amor, para conservarem
o equilíbrio físico e mental.

Os meus contemporâneos dizem quase sempre
que não são moralistas, e é por isso
que forçam toda a gente, mesmo quem não quer,
a ser livre, saudável e feliz:
proíbem o tabaco e o açúcar
e se por vezes sofrem, tomam comprimidos
porque a alegria é uma questão de química
e convém tê-la a horas certas, como
o prazer vigiado por preservativos
e outros sempre obrigatórios cintos
de segurança, pra que um dia possam
sentir que morrem cheios de saúde.

Quando contemplo os meus contemporâneos
entre as conversas trendy e os lugares da moda,
«tropeço de ternura», queria ser
plo menos tão ingénuo como eles,
partilhar cada frémito dos lábios,
a labareda vã das gargalhadas
pla madrugada fora. No entanto,
assedia-me a acedia de ficar
assim, mais preguiçoso do que um Oblomov
à escala portuguesa — ó doce anestesia
a invadir-me o corpo, a libertar-me
desse feitiço a que se chama o «espírito
do tempo» em que vivemos, sob escombros
de um céu desmoronado em mil pequenos cacos
ainda luminosos, virtuais
estrelas que se apagam e acendem
à flor de todos os écrans
que os meus contemporâneos ligam e desligam
cada dia que passa, nunca se esquecendo
de carregar nas teclas necessárias
para a operação save
e assim alcançarem a eternidade.


fernando pinto do amaral
leyapoemas, jl
2009



22 agosto 2015

fernando pinto do amaral / confessionário



Vagueara contigo de mãos dadas
pela Piazza del Duomo, àquela hora
ainda polvilhada de turistas
japoneses, chineses, coreanos,
todos armados de câmaras de vídeo,
e entrámos quase a medo: a catedral
respirava connosco a indiferença
dos séculos passados e futuros
nas imagens que ardiam com o furor
de agonias infelizes - santos, santas
e outras personagens lancinantes
olhavam para nós do seu abismo
feito de espelhos náufragos, que às vezes
reflectiam a cor das nossas faces.

Depois de alguns minutos por ali,
tacteando, assombrados, todo o peso
do silêncio compacto e vibrante,
reparámos de súbito na fila
dos típicos cubículos católicos
onde alguém escutaria a voz de alguém:
dois ou três ostentavam inscrições
em línguas estrangeiras - que Milão
sempre foi um lugar cosmopolita -
e à beira de um deles, irreal,
ajoelhava-se uma rapariga
de quem só conseguíamos fixar
a translúcida mancha do cabelo
sob um halo de luz avermelhada.

Na sua pose quase clandestina
alheia a tudo o resto, segredava
frases incandescentes, num murmúrio
por onde se escoavam os espectros
da sua vida ainda breve e obscura:
homens com quem dormiu só por capricho,
logo traídos sem saber porquê;
mulheres mais belas, mais inteligentes,
a quem guardou um ódio sufocado
nos sociais limites da amizade;
ou sobretudo essa ambição de ser
invejada por toda a perfeição
de uma existência limpa de ameaças,
desinfectada contra as tentações.

Cá fora o sol desaparecera. Os pombos
recolhiam aos ninhos sobre os rios
de gente absorvida pelas montras
acesas, procurando resgatar
da sombra as suas almas, os cinzentos
corações tão imunes ao remorso
a caminho da noite, plas feéricas
Galerias Vittorio Emanuelle.
Íamos de mãos dadas e sabíamos
que ninguém é capaz de absolver
ninguém, que toda a culpa ressuscita
a cada instante o nosso próprio rosto
e desenha pra sempre o seu perfil
sob o manto de gelo e de palavras.



fernando pinto do amaral
às cegas
relógio de água
1997




26 novembro 2014

fernando pinto do amaral / á chegada do inverno



Nem sempre a vida acolhe ou alimenta
os nomes do passado, o seu abismo
repetido num sonho, na mais lenta
assombração, no mais íntimo sismo

Do que chamamos alma. Não existo
sem essa febre mansa que relembro
enquanto as nuvens cobrem tudo isto
com o frio escuro de um dezembro

Longe de mim, de ti, de qualquer lei
ou juízo a que dêmos um sentido:
o que finjo saber é o que não sei
e as palavras colam-se ao ouvido.

  


fernando pinto do amaral
às cegas
relógio d´ água

1997




04 outubro 2009

fernando pinto do amaral / schubert, d.714











Demorámos um ano a aprender
alguns gestos de assombro e maravilha,
a voz da adolescência que desperta
silenciosa, depois do degelo,
e nos derrete a neve que envolvia
o próprio coração, agora aqui
à flor das nossas bocas.

Afogado na tua presença,
repito cada vez com menos estranheza
uma palavra: nós.
A sua vibração é um relâmpago
no crepúsculo da sala
e volto a encontrar a flor azul
que brota dos teus olhos, sempre em busca
de um sobressalto iluminado
quando dizemos: "toma, este é o meu corpo,
revelado por ti."

Sei hoje como é perder a inocência
e conservá-la ainda num recanto
desta sala de espelhos onde vive
a luz da tua imagem entre vozes
que celebram em coro o espírito das águas,
essa primeira esperança confiada
por Deus às nossas vidas.








fernando pinto do amaralàs cegas
relógio d´água
lisboa
1997






20 novembro 2008

fernando pinto do amaral / segredo





Esta noite morri muitas vezes, à espera
de um sonho que viesse de repente
e às escuras dançasse com a minha alma
enquanto fosses tu a conduzir
o seu ritmo assombrado nas trevas do corpo,
toda a espiral das horas que se erguessem
no poço dos sentidos. Quem és tu,
promessa imaginária que me ensina
a decifrar as intenções do vento,
a música da chuva nas janelas
sob o frio de fevereiro? O amor
ofereceu-me o teu rosto absoluto,
projectou os teus olhos no meu céu
e segreda-me agora uma palavra:
o teu nome — essa última fala da última
estrela quase a morrer
pouco a pouco embebida no meu próprio sangue
e o meu sangue à procura do teu coração.







fernando pinto do amaral
às cegas
relógio d´ água
1997