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28 abril 2016

eugénio de andrade / matinal



Que seja fogo e suba ao cume
das águas seminais e duras,
e cante, invada, inunde
 – juventude, juventude!



eugénio de andrade
poemas
edit. inova
1971



14 outubro 2015

eugénio de andrade / conselho



Sê paciente: espera
que a palavra amadureça
e se desprenda, como um fruto,
ao passar o vento que a mereça.



eugénio de andrade
poemas
edit. inova
1971




03 agosto 2015

eugénio de andrade / espera


Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.

Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.

  
eugénio de andrade



16 julho 2015

eugénio de andrade / a paixão



Levanto a custo os olhos da página;
ardem;
ardem cegos de tanta neve.
Faz dó esta paixão pelo silêncio,
pelo sussurro do silêncio,
pelo ardor
do silêncio que só os dedos adivinham.
Cegos, também.


eugénio de andrade




13 junho 2015

eugénio de andrade / lisboa



Esta névoa sobre a cidade, o rio,
as gaivotas doutros dias, barcos, gente
apressada ou com o tempo todo para perder,
esta névoa onde começa a luz de Lisboa,
Rosa e limão sobre o Tejo, esta luz de água,
nada mais quero de degrau em degrau.



eugénio de andrade
escrita da terra
1974 





15 maio 2015

eugénio de andrade / quase nada



O amor
é uma ave a tremer
nas mãos de uma criança.
Serve-se de palavras
por ignorar
que as manhãs mais limpas
não têm voz.


eugénio de andrade
poemas
1966




07 março 2015

eugénio de andrade / março voltou



Março voltou, esta
ácida loucura de pássaros
está outra vez à nossa porta,
o ar

de vidro vai direito ao coração.
Também elas cantam, as montanhas:
somente nenhum de nós
as ouve, distraídos

com o monótono silabar do vento
ou doutros peregrinos.
Já sabeis como temos ainda restos
de pudor.

e pelo mundo
uma enorme, enorme indiferença.



eugénio de andrade







16 fevereiro 2015

eugénio de andrade / sul



Era por Agosto, há muitos anos.
O cheiro da sombra
das oliveiras subia ao ar. Vista de baixo
aquela folhagem parecia um mar,
um mar de vidro,
quando o sol obliquo lhe caia em cima.

Eram dois cães raivosos, eram duas
cobras enroscadas, eram dois rapazes
rolando pelo chão; lutavam,
mordiam-se, abraçavam-se.

Deviam amar-se muito, para se baterem
com tal ardor. Um sol verde
lambia agora a terra.

Eram muito novos, há muitos anos,
no pino do verão, debaixo de uma oliveira,
onde só as cigarras monotonamente
consentiam.



eugénio de andrade







02 fevereiro 2015

eugénio de andrade / há dias em que julgamos



Há dias em que julgamos
que todo o lixo do mundo
nos cai em cima
depois ao chegarmos à varanda avistamos
as crianças correndo no molhe
enquanto cantam
não lhes sei o nome
uma ou outra parece-se comigo
quero eu dizer :
com o que fui
quando cheguei a ser luminosa
presença da graça
ou da alegria
um sorriso abre-se então
num verão antigo
e dura
dura ainda.

  

eugénio de andrade





13 novembro 2014

eugénio de andrade / os amantes sem dinheiro



Tinham o rosto aberto a quem passava.
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com  a água
e um anjo de pedra por irmão.

Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.

Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.



eugénio de andrade





26 junho 2014

eugénio de andrade / as amoras



O meu país sabe às amoras bravas
no verão.    
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.



eugénio de andrade



09 junho 2014

eugénio de andrade / o lugar da casa



Uma casa que nem fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino:
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia.

  

eugénio de andrade
o sal da língua
poesia
fundação eugénio de andrade
2000







13 maio 2014

eugénio de andrade / verão sobre o corpo



Esta noite preciso de outro verão sobre a boca
crescendo nem que seja de rastos.





eugénio de andrade
limiar dos pássaros
limiar
1976




24 fevereiro 2014

eugénio de andrade / há dias, há noites…

ângelo de sousa

Há dias, há noites em que as águas se movem lentas na minha memória. Movem-se? Daqui as vejo imóveis, com esse peso do verão sobre o corpo. Ninguém dirá que respiram, que não estão mortas, talvez corrompidas, pelo menos sufocadas pelas últimas poeiras, as mais cruéis. Contemplo-as, tão caladas na sua clausura ─ estremecidas águas! E tão expectantes, não à superfície, nas entranhas, ns suas raízes mais fundas, onde uma espécie de murmúrio se articula, modula na sombra, umas sílabas prenhes de silêncio se desprendem, rebentam à tona, ténues bolhas de ar, menos que suspiros ainda.
Como esquecê-las?


eugénio de andrade
limiar dos pássaros
limiar
1976


28 dezembro 2013

eugénio de andrade / que fizeste das palavras?



Que fizeste das palavras?
Que contas darás tu
dessas vogais
de um azul tão
apaziguado?


E das consoantes, que
lhes dirás,
ardendo entre o fulgor
das laranjas e o sol dos
cavalos?


Que lhes dirás, quando
te perguntarem pelas
minúsculas
sementes que te
confiaram?



eugénio de andrade




09 novembro 2013

eugénio de andrade / é quando a chuva cai, é quando




É quando a chuva cai, é quando
olhado devagar que brilha o corpo.
Para dizê-lo a boca é muito pouco,
era preciso que também as mãos
vissem esse brilho, dele fizessem
não só a música, mas a casa.
Todas as palavras falam desse lume,
sabem à pele dessa luz molhada.

  
eugénio de andrade




15 outubro 2013

eugénio de andrade / ostinato



Ao desejo, à
sombra aguda
do desejo, eu me
abandono.

Meu ramo de coral,
meu areal, meu
barco de oiro, eu
me abandono.

Minha pedra de orvalho,
meu amor, meu punhal,
eu me abandono.

Minha lua queimada.
violada, colhe-me,
recolhe-me: eu me
abandono.

  

eugénio de andrade



05 setembro 2013

eugénio de andrade / as mãos e os frutos


II
Cantas. E fica a vida suspensa.
É como se um rio cantasse:
em redor é tudo teu;

mas quando cessa o teu canto
o silêncio é todo meu.


  
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000


24 julho 2013

eugénio de andrade / a boca



A boca,
onde o fogo
de um verão
muito antigo cintila,
a boca espera
(que pode uma boca esperar senão outra boca?)
espera o ardor do vento
para ser ave e cantar.

Levar-te à boca,
beber a água mais funda do teu ser
se a luz é tanta,
como se pode morrer?
  
  

eugénio de andrade




16 maio 2013

eugénio de andrade / as mãos



Que tristeza tao inútil essas mãos
que nem sequer são flores
que se dêem:
abertas são apenas abandono,
fechadas são pálpebras imensas
carregadas de sono.

Pela noite adiante, com a morte na algibeira,
cada homem procura um rio para dormir,
e com os pés na lua ou num grão de areia
enrola-se no sono que lhe quer fugir.

Cada sonho morre às mãos doutro sonho.
Dez-reis de amor foram gastos a esperar.
O céu que nos promete um anjo bêbado
é um colchão sujo num quinto andar.




eugénio de andrade