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08 setembro 2017

manuel antónio pina / a porta estreita




A porta estreita do regresso
abre-se finalmente para aquele
que perdeu a paciência e também a impaciência
e que pára sobre o coração sem lugar de tudo.

A visão de esse, de o que está de fora,
de aquele que regressa sem ter partido
dançando sobre os destroços da sua imagem,
é o que me vê a mim: falo ainda de mim

embora por um momento só.
Mas já não sou o mesmo nem sou diferente.
O dentro de isto está fora
de mim e de si próprio.


manuel antónio pina
aquele que quer morrer III (1978)
todas as palavras, poesia reunida
assírio & alvim
2012




22 abril 2017

manuel antónio pina / a poesia vai acabar



A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum
poeta por este senhor?»    E a pergunta
afligiu-me tanto por dentro e por
fora da cabeça que tive que voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça.
— Como uma coroa de espinhos:
estão todos a ver onde o autor quer chegar? —


manuel antónio pina
ainda não é o fim nem o princípio do
mundo calma é apenas um pouco tarde (1969)
algo parecido com isto, da mesma substância
poesia reunida 1974-1992
afrontamento
1992



14 abril 2017

manuel antónio pina / mateus, 26, 26



Tomai, este é o meu corpo:
formas e símbolos.

Fora de mim, o meu reino
Desmembra-se dentro de mim.

E o que fala falta-me
dentro do coração.

E estou sozinho fora de mim
como um coração ora de mim.



manuel antónio pina
o caminho de casa (1989)
algo parecido com isto, da mesma substância
poesia reunida 1974-1992
afrontamento
1992




27 janeiro 2017

manuel antónio pina / van gogh mondrian


Uma vez um anjo apaixonou-se por van gogh e veio vê-lo
van gogh pintou-o naquela cadeira, te acuerdas federico bajo
                                                                                      [la tierra?
o anjo depois foi-se embora  van gogh ficou com o tabaco
                                                                               [estragado

mondrian também tinha um anjo mas o dele era mau
não se importava com coisa nenhumas batia-lhe nos olhos



manuel antónio pina
as pessoas e outros poemas clóvis da silva
algo parecido com isto, da mesma substância
poesia reunida 1974-1992
afrontamento
1992



24 novembro 2016

manuel antónio pina / o medo




Ninguém me roubará algumas coisas,
nem acerca delas saberei transigir;
um pequeno morto morre eternamente
em qualquer sítio de tudo isto.

É a sua morte que eu vivo eternamente
quem quer que eu seja e ele seja.
As minhas palavras voltam eternamente a essa morte
como, imóvel, ao coração de um fruto.

Serei capaz
de não ter medo de nada,
nem de algumas palavras juntas?




manuel antónio pina
nenhum sítio
algo parecido com isto, da mesma substância
poesia reunida 1974-1992
afrontamento
1992




14 setembro 2016

manuel antónio pina / algumas coisas



Sair é viver
entrar é morrer.

(do Tao Te King)


A morte e a vida morrem
e sob a sua eternidade fica
só a memória do esquecimento de tudo;
também o silêncio daquele que fala se calará.

Quem fala de estas
coisas e de falar de elas
foge para o puro esquecimento
fora da cabeça e de si.

O que existe falta
sob a eternidade;
saber é esquecer, e
esta é a sabedoria e o esquecimento.


manuel antónio pina
o que está atrás de ti
algo parecido com isto, da mesma substância
poesia reunida 1974-1992
afrontamento
1992



09 junho 2016

manuel antónio pina / depois



Primeiro sabem-se as respostas.
As perguntas chegam depois,
como aves voltando a casa ao fim da tarde
e pousando, uma a uma, no coração
quando o coração já se recolheu
de perguntas e respostas.

Que coração, no entanto, pode repousar
com o restolhar de asas no telhado?
A dúvida agita
os cortinados
e nos sítios mais íntimos da vida
acorda o passado.

Porquê, tão tardo, o passado?
Se ficou por saldar algo
com Deus ou com o Diabo
e se é o coração o saldo
porquê agora. Cobrança,
quando medo e esperança

se recolheram também sob
lembranças extenuadas?

Enche-se de novo o silêncio de vozes despertas,
e de poços, e de portas entreabertas,
e sonham no escuro
as coisas acabadas.


manuel antónio pina
nenhuma palavra e nenhuma lembrança (1999)
primeiros poemas
todas as palavras,poesia reunida
assírio & alvim
2012



24 abril 2016

manuel antónio pina / a décima oitava infância



1.       A  Casa
Tenho dezoito amigos. Um doente, outro não.
Dezoito casas, uma verde: gozos
não se discutem, como dizia a avó
do Alexandre, que era escritora.
Tenho pois dezoito amigos, um amigo
Verde. Onde a noite principia vejo-os.
São três. Um verde. Um morto
com uma bala na cabeça. São os meus
amigos. Faço as pazes com eles.

2.       A Guerra
Os meus amigos vão para a guerra. Dão
e levam devagar, asseguro-vos. São novos, morrem.
Em dezoito guerras perdi
dezoito amigos, um doente outro não.
Odeio a guerra devagar,
tenho tempo. Os meus amigos
atravessam ruas, adoecem.
Escrevem oitocentas cartas por minuto,
nove em cada dez perdem-se para sempre.
A verdade é que isto não vai com poemas,
como diria o outro.

3.       Um Amigo
Entrevisto vagarosamente um amigo.
As suas declarações são sensacionais.



manuel antónio pina
ainda não é o fim
nem o princípio do mundo
calma
é apenas um pouco tarde
erva daninha
1982



27 janeiro 2016

manuel antónio pina / partida




De súbito extinguiu-se qualquer coisa,
soltou-se qualquer peça de uma máquina incompreensível
de que dependia, afinal, a minha vida;
tornou-se tudo demasiadamente literal,
até eu estar ali, sem compreender;
e até eu não compreender parecia
algo inteiramente incompreensível;
o mundo, que via pela primeira vez,
via-o através de uns olhos que não me pertenciam,
que não pertenciam, porque eu próprio era
um acontecimento incompreensível acontecendo,
algo que me acontecia não sabia a quem;
o comboio afastava-se levando-te
para fora de mim como alguém sonhando,
e eu e tudo o que de mim sabia desaparecera
e ficara um sítio vazio
onde as últimas horas da tarde
como aves extenuadas pousavam.


manuel antónio pina
atropelamento e fuga (2001)
todas as palavras
poesia reunida
assírio & alvim
2012



08 janeiro 2016

manuel antónio pina / os tempos não



Os tempos não vão bons para nós, os mortos.
Fala-se de mais nestes tempos (inclusive cala-se).
As palavras esmagam-se entre o silêncio
que as cerca e o silêncio que transportam.

É pelo hálito que te conheço  no entanto
o mesmo escultor modelou os teus ouvidos
e a minha voz, agora silenciosa porque nestes tempos
fala-se de mais são tempos de poucas palavras.

Falo contigo de mais assim me calo e porque
te pertence esta gramática assim te falta
e eis por que não temos nada a perder e por que é
cada vez mais pesada a paz dos cemitérios.


manuel antónio pina
ainda não é o fim
nem o princípio do mundo
calma
é apenas um pouco tarde
erva daninha
1982



04 outubro 2014

manuel antónio pina / o caminho de casa



XII

«As palavras fazem
sentido (o tempo que levei a descobrir isto!),
um sentido justo,
feito de mais palavras.
(A impossibilidade de falar
e de ficar calado
não pode parar de falar,
escrevi eu ou outro).

Volto a casa,
ao princípio,
provavelmente um pouco mais velho.
As mesmas árvores,
mais velhas,
a lembrança delas
passando sem tempo nos meus olhos,
como uma ideia feita ou como um sentimento.

Entre o que regressa
e o que partiu um dia
ficaram palavras;
talvez (quem sabe?)
algum sentido.
Agora, como um intruso, subo as
escadas e abro a porta; e entro, vivo,
para fora de alguma coisa morta.

Senta-te aqui, fala comigo,
faz sentido
e totalidade à minha volta!»



manuel antónio pina
monólogos
todas as palavras
poesia reunida
assírio & alvim
2012




27 junho 2014

manuel antónio pina / numa estação de metro



A minha juventude passou e eu não estava lá.
Pensava em outra coisa, olhava noutra direcção.
Os melhores anos da minha vida perdidos por distracção!

Rosalinda, a das róseas coxas, onde está?
Belinda, Brunilda, Cremilda, quem serão?
Provavelmente professoras de Alemão
em colégios fora do tempo e do espa-

ço! Hoje, antigamente, ele tê-las-ia
amado de um amor imprudente e impudente,
como num sujo sonho adolescente
de que alguém, no outro dia, acordaria.

Pois tudo era memória, acontecia
há muitos anos, e quem se lembrava
era também memória que passava,
um rosto que entre outros rostos se perdia.

Agora, vista daqui, da recordação,
a minha vida é uma multidão
onde, não sei quem, em vão procuro
o meu rosto, pétala dum ramo húmido, escuro.


manuel antónio pina
um sítio onde pousar a cabeça (1991)
todas as palavras
poesia reunida
assírio & alvim
2012




01 abril 2014

manuel antónio pina / como desenhar uma casa



Primeiro abre-se a porta
por dentro sobre a tela imatura onde previamente
se escreveram palavras antigas: o cão, o jardim impresente,
a mãe para sempre morta.

Anoiteceu, apagamos a luz e, depois,
como uma foto que se guarda na carteira,
iluminam-se no quintal as flores da macieira
e, no papel de parede, agitam-se as recordações.

Protege-te delas, das recordações,
dos seus ócios, das suas conspirações;
usa cores morosas, tons mais-que-perfeitos:
o rosa para as lágrimas, o azul para os sonhos desfeitos.

Uma casa é as ruínas de uma casa,
uma coisa ameaçadora à espera de uma palavra;
desenha-a como quem embala um remorso,
com algum grau de abstracção e sem um plano rigoroso.



manuel antónio pina
como desenhar uma casa
todas as palavras
poesia reunida
assírio & alvim
2012



05 março 2014

manuel antónio pina / o nome do cão




O cão tinha um nome
por que o chamávamos
e por que respondia,
 
mas qual seria
o seu nome
só o cão obscuramente sabia.
 
Olhava-nos com uns olhos que havia
nos seus olhos
mas não se via o que ele via,
nem se nos via e nos reconhecia
de algum modo essencial
que nos escapava
 

ou se via o que de nós passava
e não o que permanecia,
o mistério que nos esclarecia.
 
Onde nós não alcançávamos
dentro de nós
o cão ia.

E aí adormecia
dum sono sem remorsos
e sem melancolia.
 
Então sonhava
o sonho sólido que existia.
E não compreendia.
 
Um dia chamámos pelo cão e ele não estava
onde sempre estivera:
na sua exclusiva vida.
 
Alguém o chamara por outro nome,
um absoluto nome,
de muito longe.
 
E o cão partira
ao encontro desse nome
como chegara: só.
 
E a mãe enterrou-o
sob a buganvília
dizendo: " É a vida..."


manuel antónio pina
primeiros poemas
todas as palavras
poesia reunida
assírio & alvim
2012



19 julho 2013

manuel antónio pina / theo



Às vezes o gato fitava
com estranheza
o que de nós (um excesso)
se interpunha entre nós e o gato,
a nossa presença.



manuel antónio pina
moradas
todas as palavras
poesia reunida
assírio & alvim
2012


07 abril 2013

manuel antónio pina / à beira do princípio




À beira do princípio, do precipício,
o Anjo do Conhecimento cega
para poder ver o início
da sua queda caótica.

Aquilo que o Visionário vê é o que
o vê a ele do alto do Futuro
para onde cai com o conhecimento obscuro de
saber que está no sítio para onde vai.

(O que regressa ao sítio de onde nunca saiu
é o mesmo que nunca lá esteve,
o que sobe a escada e transpõe a porta
que dá para toda a parte).

1976/1977





manuel antónio pina
aquele que quer morrer
todas as palavras
poesia reunida
assírio & alvim
2012




06 fevereiro 2013

manuel antónio pina / junto à água





Os homens temem as longas viagens
os ladrões da estrada, as hospedarias,
e temem morrer em frios leitos
e ter sepultura em terra estranha.

Por isso os seus passos os levam
de regresso a casa, às vontades da infância,
ao velho portão em ruínas, à poeira
das primeiras, das únicas lágrimas.

Quantas vezes em
desolados quartos de hotel
esperei em vão que me batesses à porta,
voz da infância, que o teu silêncio me chamasse!

E perdi-vos para sempre entre prédios altos,
sonhos de beleza, e em ruas intermináveis,
e no meio das multidões dos aeroportos.
Agora só quero dormir um sono sem olhos

e sem escuridão, sob um telhado por fim.
À minha volta estilhaça-se
o meu rosto em infinitos espelhos
e desmoronam-se os meus retratos na moldura.

Só quero um sítio onde pousar a cabeça.
Anoitece em todas as cidades do mundo,
acenderam-se as luzes de corredores sonâmbulos
onde o meu coração, falando, vagueia.




manuel antónio pina
um sítio onde pousar a cabeça (1991)
todas as palavras
poesia reunida
assírio & alvim
2012



19 outubro 2012

manuel antónio pina (1943-2012)










Quinquagésimo ano



São muitos dias
(e alguns nem tantos como isso...)
e começa a fazer-se tarde de um modo
menos literário do que soía,
(um modo literal e inerte
que, no entanto, não posso dizer-te
senão literariamente).
Mas não há pressa, nem se vê ninguém a correr;
a única coisa que corre é o tempo,
do lado de fora, porque dentro
a própria morte é uma maneira de dizer.
Caem co’a calma as palavras
que sustentaram o mundo,
e nem por isso o mundo parece
menos terreno ou impermanece.
Restam, é certo, alguns livros,
algumas memórias, algum sentido,
mas tudo se passou noutro sitio
com outras pessoas e o que foi dito
chega aqui apenas como um vago ruído
de vozes alheias, cheias de som e de fúria:
literatura, tornou-se tudo literatura!
E a vida? (Falo de uma vida
muda de palavras e de dias, uma vida nada mais que vida;
haverá uma vida assim para viver,
uma vida sem a si mesma se saber?)
Lembras-te dos nossos sonhos? Então
precisávamos (lembras-te?) de uma grande razão.
Agora uma pequena razão chegaria,
um ponto fixo, uma esperança, uma medida.

18/5/00






manuel antónio pina
atropelamento e fuga (2001)
todas as palavras
poesia reunida
assírio & alvim
2012



06 outubro 2012

manuel antónio pina / o país das pessoas de pernas para o ar


O Menino Jesus não quer ser Deus



O menino Jesus não fugia à escola.
Os outros meninos juntavam-se para fazer maldades,
o menino Jesus ficava sempre de fora.
Os meninos tinham pena dele, mas tinha que ser assim:
ele era Deus, e Deus não pode fazer determinadas coisas.
Por isso, o menino Jesus não ia para o rio roubar fruta,
nem dizia coisas indecentes. Nem sequer podia jogar à bola
com os outros, porque fazia sempre milagres.

Até que um dia o menino Jesus foi ter
com S. José e disse-lhe:
- Pai, não quero ser mais Deus.
- Isso não é comigo, é com a tua mãe.

Foi ter com a Virgem Maria. Mas ela disse-lhe:
- Agora já és Deus e pronto. Já não se pode fazer nada.
Tu hás-de habituar-te, a mim a princípio também
me meteu confusão. E agora vai estudar,
porque amanhã tens que ensinar os doutores da lei.

O menino Jesus ficou muito triste e nessa noite
não estudou nada. O milagre dos doutores
por pouco ficava estragado. Nossa Senhora zangou-se
e disse-lhe que o acusava à pomba.
Mas ele, como era Deus, sabia tudo; portanto,
sabia que as pombas não fazem mal a ninguém
e ria-se da Virgem Maria. S. José também lhe dizia:

- Não metas medo ao rapaz. Não te calas com o diabo
da pomba, tu és mas é maluca.
- Não tens nada com isso. Ainda se o menino fosse
teu filho, mas não. Falas só para questionares, és mau.
Daqui a pouco começas para aí a dizer porcarias.

Mas estas discussões acabavam sempre bem,
porque o menino Jesus fazia um milagre.

Um dia pediu  à mãe um irmão, mas ela respondeu-lhe de maus modos.

Os vizinhos riam-se muito de S. José,
faziam troça de S. José por o filho dele ser filho de uma pomba,
e como S. José era muito bom,
o menino Jesus tinha pena e fazia mais milagres.

Um dos vizinhos tinha um filho muito mau
chamado Alberto Caeiro, que nunca ia à escola,
que se metia com as raparigas. O menino Jesus
tinha muita inveja dele porque ele sabia nadar como ninguém
e era dono duma caverna ao pé do rio.

Às vezes ia espreitá-lo e via-o lá dentro com as raparigas.
Acendiam fogueiras, comiam. O que o menino Jesus mais queria
era ser um rapaz como ele. Mas a mãe queria que ele fosse Deus
e o Deus que estava no céu também queria que ele fosse Deus,
porque alguém tinha que viver aquela vida
que estava escrita nos livros, uma vida pequenina
(só durava 33 anos) e ainda por cima que acabava mal!
O menino Jesus sabia tudo isto porque era Deus, e podia adivinhar.

Como era muito bom, não queria zangar a mãe,
nem aborrecer o pai do céu. Mas também não queria ser mais Deus,
porque ele é que sabia o que aquilo era.
E então começou a convencer o outro rapaz a trocar com ele.
O outro a princípio não queria, bateu-lhe, etc..
O menino Jesus podia ter feito um milagre,
fazer-lhe cair o braço, ou chamar as legiões de anjos todas.
Mas não. Disse-lhe assim:

- Ou trocas comigo ou transformo-te num porco.

O rapaz ficou assustadíssimo e fugiu para casa.
Mas o menino Jesus fê-lo voltar para trás com um milagre.
E voltou a dizer-lhe:

- Já sabes. Agora escolhe.

O outro estava muito aflito. Ofereceu-lhe a caverna,
ofereceu-lhe tudo. Mas o menino Jesus não quis.

- E depois eu, também posso fazer milagres?
- Sim, disse o menino Jesus.
- Então obrigo-te a destrocar outra vez comigo.

E quando disse isto julgou que tinha vencido o menino Jesus.
Mas o menino Jesus disse:

- Agora ainda sou Deus. E posso fazer um milagre. Esse milagre
é que tu não possas nunca obrigar-me a destrocar .
- Está bem, disse o outro.

Foram sozinhos para a floresta e lá fizeram a troca. O menino Jesus
ficou o outro, e o outro ficou menino Jesus.
E vieram por aí fora a conversar os dois.

E só depois é que viram: afinal de contas não tinham trocado nada,
porque o menino Jesus só fazia coisas perfeitas
e a troca fora tão perfeita que tinha ficado tudo na mesma.
E o menino Jesus, o de agora, voltou para casa muito aborrecido.
Afinal o pai do céu era mais esperto do que ele. E fez
mesmo umas figas, coisa que nunca tinha feito na vida,
Quando, ao deixar as últimas árvores da floresta,
viu uma pomba muito branca que levantava voo, fugia.

- Oh, disse ele quase a chorar.





manuel antónio pina
o país das pessoas de pernas para o ar
a regra do jogo
1978