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01 setembro 2021

joaquim manuel magalhães / cortei uma folha doutra terra

 
 
Cortei uma folha doutra terra
com que nas noites sem frio saíamos a passear.
Ouvi a tua voz ao telefone, rouca,
no susto de mentir, e foi então
que subiu o perfume da flor
ao arame enferrujado dos sentimentos,
os sentimentos à poeira indecifrável
com que te dizia “já és de novo
a ilusão”, o que não amava,
o que sentado ao carro no arrabalde
me dizia, encolhendo os ombros,
“tudo há-de passar”. E passou.
A porta fechou-se, o som do motor
perdeu-se no ruído monstruoso da avenida.
 
 

joaquim manuel magalhães
os poços
uma luz com um toldo vermelho
editorial presença
1990





29 maio 2021

joaquim manuel magalhães / a vida traz alguma dor

 
 
 
A vida traz alguma dor. Ludibrio-me.
A dor traz alguma vida. Ontem acarinhei-te tanto
queria andar hoje desacompanhado, na amurada
uma vaga de crude, um malte de ablação anal.
Acordamos a látego na alcatifa,
imundo dossel, flâmula, flagelo,
a caneca de sidra entornei-a.
 
A madeira maciça na hierática mobília
desornada. Na lupa, o monturo.
Num talo uma corola de açafrão.
Retomo o reflexo. Modifico-o
num rimance guarnecido e errático
em débito de alonjamento. O porvir
delicado brandia o borboto e a pureza
que no cofre rilhavam aparas em aluvião.
Se a labuta manietou o teu impropério, o adelo
provocará o carimbo, a rédea
e o local onde te coloquei a adelfa.
 
A melodia um relato a laborar
o mensageiro de um sonho.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
canoagem
relógio d´água
2021





26 abril 2021

joaquim manuel magalhães / pedra em negativo

 
Enquanto ia o dia escurecia
foi de noite que te encontrei.
A ti, passarinheiro. No cinzento
entre cabos de tensão e guindaste
e o fantasma em arco-íris
das vigas a cinzel.
 
Na cadeira de pau negro e alto espaldar
estava o teu casaco. Subia sobre os móveis
o seu aroma de febre
onde tantas vezes antes que chegasses
escondi a cara que me parecia inchar de castração.
 
Voltando-me para a despedida
encontrei as lágrimas que mudavam em areia
as pálpebras, no escárneo do tempo findo.
Pior. Na certeza do tempo findo com
ainda mais tempo para sofrer o tempo,
o devaste da espera do fim.
 
Quando as cartas chegam (na fronteira mudada
em que já não nos lembra esse que se lembrou,
com aquelas palavras, de nós num anterior momento
em que o esquecíamos) um vitríolo afaga
a retina que perdeu mansamente a ternura.
Dizias que me fui embora sem nada mais te dizer.
E pensava eu que tinhas sido tu a ter partido.
Logros, nuvens inúteis, carregadas de água que desaba
noutro lugar, inóspito, mais real.
 
Ao olhar o rosto definitivamente imóvel,
todo o sangue coagulado, uma pedra a desfazer-se,
 esse objecto medonho
ainda será o corpo pelo qual chorámos,
a quem trouxemos a última chávena, o último
comprimido, o último aterrado sorriso?
Alguma coisa nos afirma que é uma totalidade
diferente; que nada está ali; que não é
por aquilo a nossa dor.
 
Descobrimos que tudo quanto era partiu.
E o que seria? Então o corpo é a alma,
rapaz? A rebentação das artérias a crença final?
 
Potes de barro frísio e de latão,
dois pregos com uma trança de cebolas,
a máquina de moer café no lambril
da escada que sobe para o pátio,
poalha de farinha pelo chão.
A tua mãe tinha a testa descoberta,
os cabelos puxados para trás. Na fotografia.
Sobre a camilha forrada a estopa
segurava miolo de pão e com a esquerda
despejava para um alguidar uma caneca
de leite. O açúcar, os ovos, as compotas
estavam a meio do tampo; e numa cerca,
com um plástico na mão e o cabelo alvo
e a luz amarelecida, estavas tu
com a boca escancarada de choro,
os lábios ainda por formar.
 
 

joaquim manuel magalhães
sloten
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990





14 março 2021

joaquim manuel magalhães / a chuva nova canta sobre os dedos

 
 
A chuva nova canta sobre os dedos.
Ele ergue do lume, ela segura
a imaginação alagada no beiral.
O dia fica frio, não importa,
pode-se cantar, oh chuva nova,
molhado na secura desta lança
estalam nos ossos
actos despertos onde o pesar corre.
E se não corre, corre um corpo dentro dele.
 
 
joaquim manuel magalhães
dos enigmas
consequência do lugar
relógio d´água
2001




02 março 2021

joaquim manuel magalhães / abriu a porta

 
 
Abriu a porta. Os pés
Acariciam o soalho.
Lírios novos nos taipais.
O tanque, a barreira de silvas.
Atravessou pelo pinhal.
 
O dobre da luz passa nos montes.
Os coelhos abrigam-se no tojo.
Perdizes feridas na caruma
escavam para adormecer.
A tristeza de alguém que ri.
 
Espero até ao fim das brumas.
No largo do fortim abandonado
sentamo-nos os dois. Ondas
serenas, rouxinóis.
 
 
joaquim manuel magalhães
segredos, sebes, aluviões
editorial presença
1985




22 dezembro 2020

joaquim manuel magalhães / o cabelo rasgado de carícias

 
 
O cabelo rasgado de carícias, o orvalho da camisa.
Peguei no vidro dos sais, no sabonete
com musgo de linho, no ígneo frasco
de champô à névoa tão tensa
da lâmpada turva. O sândalo,
o bálsamo servo com vapor de mal.
 
Quando danço contigo as romãs do jardim
ardem no seu sangue. Quando danço contigo
no terror do salão tu és a viagem
mais rápida do meu olhar. Pego num copo
donde te vi beber e esmago-o
como se te apertasse a mão.
 
 

joaquim manuel magalhães
os poços
uma luz com um toldo vermelho
editorial presença
1990




10 agosto 2020

joaquim manuel magalhães / a águia sublevou ganimedes

ilda david



A águia sublevou Ganimedes. Um corpo
pode ser um tiro uma casa incendiada
na submissa ferocidade do amor.
Nunca soube donde vinha. Vinha. Tocava
á porta, tomávamos um café. Saía.
O que tentamos para amarem o que somos.
Na selva de interditos o longe de dentro
tem a medo sossegos sem nenhum lugar.


joaquim manuel magalhães
ilda david
alguns antecedentes mitológicos
assírio & alvim
1984






13 julho 2020

joaquim manuel magalhães / o aqueduto



O aqueduto,
côncavo e desafinado,
singra.

Singulares o indulto e o alqueire.
O baloiço broca a representação.
Assinalam a derrota.

Amei muita vez amei-te.
Dissimulei deriva, nocivo,
feliz a rédea da albufeira.



joaquim manuel magalhães
para comigo
traço
relógio d´água
2018






09 abril 2020

joaquim manuel magalhães / encontro-te depois de procurar-te



Encontro-te depois de procurar-te
nas ruas onde é costume encontrar

Beijo-te no pescoço, os lábios
húmidos de treva, as mãos
firmes nos teus ombros.
Oculto, inseguro, dividido
quero festejar, festejar-te.

A alma, esta dilatação do corpo extasiado,
canta no quarto habitado pelo tempo.
Um som falso de cassettes sobe no descampado donde vens.



joaquim manuel magalhães
os poços
uma luz com um toldo vermelho
editorial presença
1990






26 novembro 2019

joaquim manuel magalhães / meu amigo


  
Meu amigo, amigo que depois foste de nós dois,
abençoado de rosto e corpo, guardasses-me tu
na convulsão de tábuas de um abraço,
nessa prisão que na altura não entendi.
Seria agora um galardão, uma honra tão alta
na memória, não apenas uma noite,
dessas curvadas pela despedida. Desse-me Deus
de novo, meu amigo, o torreão, a desordem, os teus passos,
esses laços que podia ser eu a desatar. Nada
em toda a extensão e duração do mundo
desejava mais do que dizer-te: foste
quem naufragou em maior temor e amor
a minha, a nossa – é difícil dizer – vida.



joaquim manuel magalhães
os poços
uma luz com um toldo vermelho
editorial presença
1990





19 agosto 2019

joaquim manuel magalhães / somos de natureza contrária



Somos de natureza contrária.
Um de nós pode destruir o outro,
mas só por fora, uma onde que vem
de muito longe, demora a chegar
à praia, ao sol que soçobra
no lugar onde nós estamos,
entregues, entristecidos. Dentro,
no interstício de silêncio
ameaçado pela despedida, sempre
de despedida ameaçado, nenhum
de nós será destruído nunca,
a memória da rua com plátanos,
o pólen mordente da primavera,
o cântico dos pardais. Não,
eu não quero esse amor indeciso
que soçobra num frio inebriante:
cada um com o outro tenta conservar
o seu ser, a identidade que sorri
na janela do quarto que fica por fechar.



joaquim manuel magalhães
os poços
uma luz com um toldo vermelho
editorial presença
1990







04 junho 2019

joaquim manuel magalhães / aluviões


31

Findou o poente nas paredes.
Breves e desconhecidos
os pássaros
assomam ao repouso dos telhados.
As últimas enxadas levantam
pela penumbra dos aroeiros
a maresia musgosa dos terrenos.
Nos quelhos com rebanhos
voltam os tractores.
Arvoredo rasteiro, cila marítima,
marcos geodésicos, a despedida,
a devastação.


joaquim manuel magalhães
segredos, sebes, aluviões
editorial presença
1985






11 março 2019

joaquim manuel magalhães / fotografias de jorge molder




6.

Um mundo silencioso onde passam rebanhos,
húmidas teias raiadas de poeiras.
Os trabalhos que remexem as terras,
as marcas de produtos suicidas
parecem-te um delírio meu, um recuo
à tradição bucólica interrompida pelo sentimento?
Nas aldeias do norte se te visse seria
num pátio com o ocre das charruas,
talos de couves para porcos e galinhas,
palhas de colchões onde se deitam burros,
canas de milhão empilhadas numa fraga.
Nesta luz urbana, coitados de nós dois.



joaquim manuel magalhães
fotografias de jorge molder
os dias, pequenos charcos
editorial presença
1981






28 dezembro 2018

joaquim manuel magalhães / inverno em vila real




Inverno em Vila Real. O nevão
cobria a rua do liceu.
Uma luva de cabedal amodorrado
no tampo, o vapor do alento
liga-nos à toada de um remoinho.
O meu tumulto ensombra-te.

Um pombo protegido no beiral,
a cabeça na plumagem de procela.
Tu calado, eu afeito ao silêncio, delineava-se
no papelão do compêndio uma letra
do nosso nome em conjunto,
única sílaba fora de alfabeto algum.
Que bem tão mal na confeitaria, sem o padrão ainda,
se convinha, se faltava à aula, na sediciosa ocasião
de um inaugural amor.

O foro furtivo já desagregava.
Nem te projectaria sequer
na luta em sobressalto do meu rumo.
Porém, sempre que falarem em neve
e o que for teu vier pela avenida
algo do desaparecimento, quem sabe, te recordará.




joaquim manuel magalhães
para comigo
segredo, aluvião
relógio d´água
2018






21 novembro 2018

joaquim manuel magalhães / domingo de cidade





As ruas com um sol humedecido,
vem a chuva não se sabe donde;
no estreito rumor da multidão
de janelas, a água segue
por rasgões ao acaso aceso.
Incrédulo o teu rosto perde-se
no fundo verde de um retrato.

A vibração íngreme da tarde
acende o equilíbrio do amor
que já não quer dizer-se; refugia-se
na iluminura do fugaz encanto.
Tiras do bolso a caixa do incenso
com um osso cravado na madeira
à entrada de um bosque de betão.
Aí nos beijaremos, porque não?

O céu de vez em quando subia
para logo baixar. E na sua sombra,
ao gozo do frio, as bicicletas
iam no empedrado irregular.
Com o prazer de ir a qualquer lado
e demorar a chegar.

E depois das pontes e represas
chegaremos ao quarto aonde em água
o dia vai findar.
Com essa luz já quase adormecida
das noites tumulares.

Lâmpadas fugazes, mesas com tapete,
jarra de peónias do quintal,
animais degolados e sem ventre,
o pavio da faca no castiçal.
Restos de sarcasmos a boiar
depois do combate final.

E quando me perguntaste a idade
eu disse-te que tinha oitenta e oito
pesadelos no sítio da voz
e tu não riste com os vinte e dois
anos e disseste que então tinhas
quarenta e quatro, tantos quantos eu.
E nessa tripla progressão de dois
o trânsito duma vida passava;
e a maior passagem do que em nós
um outro não poderia nunca ter.

Ecce homo; assim hei-de sentir
ao abrir-te na camisa todos os botões.




joaquim manuel magalhães
sloten
livro de artistas
europalia 91
1991






22 outubro 2018

joaquim manuel magalhães / fotografias de jorge molder




1.

Amanhã do dia leva a noite num fino fumo.
A promessa quebrada abre uma porta e partia.
O alarme do corpo aprende outras palavras,
guardam-no do bem os cantos mais escuros.
A última cadeira de um homem espera
na sala vazia. Onde secavam as flores das canas?
Um pássaro voava contra o vento
o das lágrimas, não sabendo como dizer adeus.


joaquim manuel magalhães
fotografias de Jorge molder
os dias, pequenos charcos
editorial presença
1981









02 outubro 2018

joaquim manuel magalhães / despedes-te depressa destes dias




Despedes-te depressa destes dias
sem o sol que pensaste e te faria
rasgar de ti o que conheces.
Precisas da ignorância e do inútil.
O que sabes soterrou as energias
ao ar do mar onde há barcos e peixes
naturalmente, como tu não és.
Dentre as mãos como pinheiros as carícias
é uma forma de corroeres a vida.
Um espírito nocturno espreita das coisas,
a transitória consciência encontra análogos
nas matérias, na falsidade.
Os vagarosos gestos ocupam os lugares,
a desolada observação dos factos e dos feitos.
O brilho visionário fez-se derrota,
a perfeição nos sonhos,
uma linguagem de sentido perdido.


joaquim manuel magalhães
dos enigmas
moraes editores
1976