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10 setembro 2014

antónio ramos rosa / e certas palavras




E certas palavras prazer
mágoa água plenitude
a cor navegando alta
a casa com flores e chamas

este jardim da verdade
duro pão água da vida
calado o tempo vencido
amor desta mão clara


 antónio ramos rosa



27 julho 2014

antónio ramos rosa / teu corpo principia

  

Dou-te um nome de água
para que cresças no silêncio.

Invento a alegria
da terra que habito
porque nela moro.

Invento do meu nada
esta pergunta.
(Nesta hora, aqui.)

Descubro esse contrário
que em si mesmo se abre:
ou alegria ou morte.

Silêncio e sol - verdade,
respiração apenas.

Amor, eu sei que vives
num breve país.

Os olhos imagino
e o beijo na cintura,
ó tão delgada.

Se é milagre existires,
teus pés nas minhas palmas.

O maravilha, existo
no mundo dos teus olhos.

O vida perfumada
cantando devagar.

Enleio-me na clara
dança do teu andar.

Por uma água tão pura
vale a pena viver.

Um teu joelho diz-me
a indizível paz.



antónio ramos rosa
estou vivo e escrevo sol
1966 


19 junho 2014

antónio ramos rosa / no centro da aparência




Repousa no espaço de um olhar. O ar dança na rua.
Sombras e ruídos. As árvores têm uma idade clara.
Vagarosa persistência, a alguns metros do solo.
O enigma está vivo no centro da aparência.
Uma criança designa o mar. Alguém traz uma folha.

Alguém compreende a sede de uma pedra!
Quem estuda a felicidade? Quem define um jardim?
Que linguagem é a do espaço? O que é o sal da sombra?
Esquecemos a linguagem do vento e do vazio
Nunca houve um encontro. Quando será o inicio?

Vejo a folhagem e os frutos da distancia.
Olho longamente até ao cimo da ternura.
Vivo na luz extrema em todas as direcções.
O pequeno e o grande conjugam-se, consagram-se.
Canto na luz suave e bebo o espaço.



antónio ramos rosa





16 março 2014

antónio ramos rosa / tal como antigamente




Tal como antigamente tal como agora
essa estrela esse muro
esse lento
esse morto
sorrir
nenhum acaso
nenhuma porta
impossível sair



antónio ramos rosa





08 fevereiro 2014

antónio ramos rosa / o ponto de partida



Será este o ponto de partida, obscuridade incerta
e sobre o fundo sombrio da morte? A esperança
nascerá deste branco vazio e desta mão de cinza?
O viajante entrou num barco ou numa árvore
que o soergue, ainda hesitante, na imensidade
de uma sombra de astro. Ele aproxima-se
de formas vagas, de espelhos entre pedras,
e junto a um muro sob as estrelas
uma figura de orvalho descalça sobre as ervas.
Tudo flutua ainda, dentro da poeira azul
e púrpura e tudo está esparso e reunido
como na primeira consciência deste mundo
tão longínquo e tão presente como se o sol fosse um perfume
que da montanha descesse sobre as palavras ditas.


antónio ramos rosa
acordes
quetzal editores
1990


12 janeiro 2014

antónio ramos rosa / uma pausa, não de plumas, mas elástica


              
                 1 
  
 Uma pausa, não de plumas, mas elástica, 
 que demorasse em si a paz ardente 
 e o ardor profundo de uma alta instância. 
 Que fosse o esquecimento na folhagem 
 e a espessa transparência da matéria. 
 O pulso pronunciaria a amplitude 
 do instante inocente. A obra acender-se-ia 
 na inteligência dos signos mais aéreos. 
  
                 2 
  
 A inadvertência pode ser um prelúdio carnal 
 na volúvel leitura de quem adormeceu. 
 O sono dá ao sangue o ócio e as cores do enxofre. 
 Por uma forma ausente a matéria ramifica-se 
 na insolência branda de umas ruínas perfeitas. 
 Um aroma rebenta da axila negra de um animal de vidro. 
 Como um veleiro de fogo uma cabeleira ondula. 
 A garganta do mar atira os seus pássaros de espuma. 
 Uma rapariga de pedra caminha entre os arbustos de fogo. 
 É a abundância da origem e o seu orvalho azul. 
 São as armas vegetais sobre as janelas da terra. 
 É a frescura do vidro nas cintilantes sílabas. 
  
                 3 
  
 Na justa monotonia do meio-dia 
 oiço o prodígio do repouso e a paixão adormecida. 
 O concêntrico sopro imobiliza-se. É uma lâmpada 
 de pedra fulgurante. Tudo é nítido mas ausente. 
 O mundo todo cabe no olvido e o olvido é transparência 
 de um denso torso que a nostalgia acende. 
 No silêncio sinto numa só cadência 
 a vociferação e o tumulto das pálpebras e dos astros. 
 Pelas veias o fogo da cal é branco e liso 
 e a mais remota substância culmina num rumor redondo. 



antónio ramos rosa
a rosa esquerda
1991




20 dezembro 2013

antónio ramos rosa / para um amigo…



Para um amigo tenho sempre um relógio
esquecido em qualquer fundo de algibeira.
Mas esse relógio não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e de ternura rápida.
É um arco-íris de sombra, quente e trémulo,
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.

  
antónio ramos rosa
viagem através de uma nebulosa
ática
1960




14 novembro 2013

antónio ramos rosa / telegrama sem classificação especial


                    Ao Egito Gonçalves



Estamos nus e gramamos.

Na grama secular um passarinho verde
canta para um poema lírico, para um poeta lírico,
que se nasceu
é certo que não cantou.

As paisagens continuam a existir.
As paisagens são suaves.
Continuam também a existir
outras coisas
que dão matéria para poemas.
A vida continua.
Felizmente que há ódios, comichões, vaidades.
A estupidez, esta crassa crença intratável, esta confiança
             indestrutível em si mesmo,
é o que felizmente dá uma densidade, uma plenitude a isto.

Num mundo descoroçoante de puras imagens
é bom este banho de resistências, pressões, vontades, atritos,
é bom navegar.
porque este presente é logo saudoso.

Na grama um passarinho canta.
Evidentemente que o poeta suicidou-se.

A vida continua.
Certas coisas que pareciam mortas
estão agora vivas ou, pelo menos, mexem-se.
Ausentes, dominam-nos.
Não é para nós que utilizam as palavras,
que insistem,
não é para nós!
Estes grandes ornamentos, estes sábios discursos
fluem em visões, em ondas, como se não no presente.
Ter-se-á o presente extinguido?
A vida continua tão improvávelmente.

Na grama um passarinho canta.
Canta por cantar, ou não, canta.

Eu poderia, com rigor, agora
cantar:
                      Os anjos exactos
                      que empunham tesouras
                      de encontro aos factos
                      - ó minhas senhoras!

Ou rigorosamente ainda,
com veemente exactidão,
inutilizar o poema,
todos os poemas
porque

Estamos nus e gramamos.

  
4 de Janeiro de 1952




antónio ramos rosa
«árvore» - 4
1953





23 setembro 2013

antónio ramos rosa (1924-2013)





até onde vós estais


Ó presenças amigas, ó momento
em que alongo o abraço e toco em cheio os rostos.
A minha língua abriu-se para dizer a face
do vento que percorre as vossas vidas.

Estou perante a noite mais profunda:
a delicada noite das raízes: vejo rostos,
vejo os sinais e os suores das vossas vidas.

Atravesso árvores submersas, ruas obscuras
poças de água verde, e vou convosco ter
minhas faces lívidas, mãe, amigos, amores.

A terra que penetro é este chão de terra
com as raízes feridas, com os ferozes pulsos,

a vertente que desço é uma subida às vossas vidas.



16 agosto 2013

antónio ramos rosa / oiço os murmúrios do sol



“Oiço os murmúrios do sol. Saboreio o que sou.
Sou renovado pelo espaço, nasço num espaço verde.
O que eu amo está perto entre a terra e o ar."




antónio ramos rosa
« o obscuro», de volante verde, 1986



16 julho 2013

antónio ramos rosa / mar



Para além dos signos
O ponto de partida
O mesmo arco
As estradas leves
Quem escreve
Um mundo
A palavra
A delicada majestade
O horizonte das palavras

  

antónio ramos rosa


07 maio 2013

antónio ramos rosa / poema de um funcionário cansado


  
A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só.



antonio ramos rosa



04 fevereiro 2013

antónio ramos rosa / porque não soube merecer




Porque não soube merecer a glória, a mais suave
de me deitar a teu lado
e que o sangue a palavra 
abolisse a diferença entre o meu corpo e a minha voz
porque te perdi 
não sei quem sou



antónio ramos rosa



17 outubro 2012

antónio ramos rosa





" Algo nos cria e nos liberta dos absurdos cercos.
Despertámos para tocar a boca esquecida pela noite.
Somos a folhagem e o espaço, somos uma garganta fresca.
As sombras aquecem-nos e as estrelas visitam-nos.
O meu corpo é de argila estou vivo e aceito o dia."




antónio ramos rosa
corpo de argila», de volante verde, 1986





29 agosto 2011

antónio ramos rosa / não posso adiar o amor


 .
.
.

Não posso adiar o amor para outro século
Não posso
Ainda que o grito sufoque na garganta
Ainda que o ódio estale e crepite e arda
Sob montanhas cinzentas
E montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
Que é uma arma de dois gumes
Amor e ódio

Não posso adiar
Ainda que a noite pese séculos sobre as costas
E a aurora indecisa demore
Não posso adiar para outro século a minha vida
Nem o meu amor
Nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração





antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985

.
.
. 

12 novembro 2010

antónio ramos rosa / que cor ó telhados de miséria






Que cor ó telhados de miséria
onde nasci
de tanta pequenez de tão humildes ovos
de nenhum querer
a que horas nasceram as estrelas que
um dia foram
a que horas nasci?

Não vim embarcado não me encontrei
na rua
não nos vimos
não nos beijámos
nunca parti

Não sei que idade tenho






antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985