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18 dezembro 2016

álvaro de campos / que lindos olhos de azul inocente os do pequenito do agiota!


Que lindos olhos de azul inocente os do pequenito do agiota!
Santo Deus, que entroncamento esta vida!
Tive sempre, feliz ou infelizmente, a sensibilidade humanizada,
E toda a morte me doeu sempre pessoalmente,
Sim, não só pelo mistério de ficar inexpressivo o orgânico,
Mas de maneira directa, cá do coração.
Como o sol doura as casas dos réprobos!
Poderei odiá-los sem desfazer no sol?
Afinal que coisa a pensar com o sentimento distraído
Por causa dos olhos de criança de uma criança...
s.d.


fernando pessoa
poesias de álvaro de campos
edições ática
1980



06 novembro 2016

álvaro de campos / aviso por causa da moral



Quando o público soube que os estudantes de Lisboa, nos intervalos de dizer obscenidades às senhoras que passam, estavam empenhados em moralizar toda a gente, teve uma exclamação de impaciência. Sim — exactamente a exclamação que acaba de escapar ao leitor...

Ser novo é não ser velho. Ser velho é ter opiniões. Ser novo é não querer saber de opiniões para nada. Ser novo é deixar os outros ir em paz para o Diabo com as opiniões que têm, boas ou más — boas ou más, que a gente nunca sabe com quais é que vai para o Diabo.

Os moços da vida das escolas intrometem-se com os escritores que não passam pela mesma razão porque se intrometem com as senhoras que passam. Se não sabem a razão antes de lha dizer, também a não saberiam depois. Se a pudessem saber, não se intrometeriam nem com as senhoras nem com os escritores.

Bolas para a gente ter que aturar isto! Ó meninos: estudem, divirtam-se e calem-se. Estudem ciências, se estudam ciências; estudem artes, se estudam artes; estudem letras, se estudam letras. Divirtam-se com mulheres, se gostam de mulheres; divirtam-se de outra maneira, se preferem outra. Tudo está certo, porque não passa do corpo de quem se diverte.

Mas quanto ao resto, calem-se. Calem-se o mais silenciosamente possível.

Porque há só duas maneiras de se ter razão. Uma é calar-se, que é a que convém aos novos. A outra é contradizer-se, mas só alguém de mais idade a pode cometer.

Tudo mais é uma grande maçada para quem está presente por acaso. E a sociedade em que nascemos é o lugar onde mais por acaso estamos presentes.

Europa , 1923

1922


fernando pessoa
textos de crítica e de intervenção
ática
1980


09 outubro 2016

álvaro de campos / não! só quero a liberdade!




Não! Só quero a liberdade!
Amor, glória, dinheiro são prisões.
Bonitas salas? Bons estofos? Tapetes moles?
Ah, mas deixem-me sair para ir ter comigo.
Quero respirar o ar sozinho,
Não tenho pulsações em conjunto,
Não sinto em sociedade por quotas,
Não sou senão eu, não nasci senão quem sou, estou cheio de mim.
Onde quero dormir? No quintal...
Nada de paredes — ser o grande entendimento —
Eu e o universo,
E que sossego, que paz não ver antes de dormir o espectro do guarda-fatos
Mas o grande esplendor, negro e fresco de todos os astros juntos,
O grande abismo infinito para cima
A pôr brisas e bondades do alto na caveira tapada de carne que é a minha cara,
Onde só os olhos — outro céu — revelam o grande ser subjectivo.
Não quero! Dêem-me a liberdade!
Quero ser igual a mim mesmo.
Não me capem com ideais!
Não me vistam as camisas-de-forças das maneiras!
Não me façam elogiável ou inteligível!
Não me matem em vida!
Quero saber atirar com essa bola alta à lua
E ouvi-la cair no quintal do lado!
Quero ir deitar-me na relva, pensando "Amanhã vou buscá-la"...
Amanhã vou buscá-la ao quintal ao lado...
Amanhã vou buscá-la ao quintal ao lado...
" Amanhã vou buscá-la ao quintal"
Buscá-la ao quintal
Ao quintal
ao lado...

11-8-1930



álvaro de campos
livro de versos
fernando pessoa
estampa
1993





27 agosto 2016

álvaro de campos / magnificat



Quando é que passará esta noite interna, o universo,
E eu, a minha alma, terei o meu dia?
Quando é que despertarei de estar acordado?
Não sei. O sol brilha alto,
Impossível de fitar.
As estrelas pestanejam frio,
Impossíveis de contar.
O coração pulsa alheio,
Impossível de escutar.
Quando é que passará este drama sem teatro,
Ou este teatro sem drama,
E recolherei a casa?
Onde? Como? Quando?
Gato que me fitas com olhos de vida, quem tens lá no fundo?
É esse! É esse!
Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei;
E então será dia.
Sorri, dormindo, minha alma!
Sorri, minha alma, será dia!

7-11-1933

  

fernando pessoa
poesias de álvaro de campos
edições ática
1980



31 julho 2016

álvaro de campos / começa a haver



Começa a haver meia-noite, e a haver sossego, 
Por toda a parte das coisas sobrepostas, 
Os andares vários da acumulação da vida... 
Calaram o piano no terceiro andar... 
Não oiço já passos no segundo andar... 
No rés-do-chão o rádio está em silêncio... 
Vai tudo dormir... 

Fico sozinho com o universo inteiro. 
Não quero ir à janela: 
Se eu olhar, que de estrelas! 
Que grandes silêncios maiores há no alto! 
Que céu anticitadino! - 
Antes, recluso, 
Num desejo de não ser recluso, 
Escuto ansiosamente os ruídos da rua... 
Um automóvel - demasiado rápido! - 
Os duplos passos em conversa falam-me... 
O som de um portão que se fecha brusco dói-me... 

Vai tudo dormir... 

Só eu velo, sonolentamente escutando, 
Esperando 
Qualquer coisa antes que durma... 
Qualquer coisa.

  

álvaro de campos





20 setembro 2015

álvaro de campos / de la musique



Ah, pouco a pouco, entre as árvores antigas, 
A figura dela emerge e eu deixo de pensar... 
Pouco a pouco, da angústia de mim vou eu mesmo emergindo... 

As duas figuras encontram-se na clareira ao pé do lago.... 

... As duas figuras sonhadas, 
Porque isto foi só um raio de luar e uma tristeza minha, 
E uma suposição de outra coisa, 
E o resultado de existir... 

Verdadeiramente, ter-se-iam encontrado as duas figuras 
Na clareira ao pé do lago? 
( ... Mas se não existem?...) 
... Na clareira ao pé do lago?...

  

álvaro de campos




24 maio 2015

álvaro de campos / grandes são os desertos



Grandes são os desertos, e tudo é deserto. 
Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto 
Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo. 
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes 
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas, 
Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu. 
Grandes são os desertos, minha alma! 
Grandes são os desertos. 


Não tirei bilhete para a vida, 
Errei a porta do sentimento, 
Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse. 
Hoje não me resta, em vésperas de viagem, 
Com a mala aberta esperando a arrumação adiada, 
Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem, 
Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado) 
Senão saber isto: 
Grandes são os desertos, e tudo é deserto. 
Grande é a vida, e não vale a pena haver vida, 


Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar 
Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem) 
Acendo o cigarro para adiar a viagem, 
Para adiar todas as viagens. 
Para adiar o universo inteiro. 


Volta amanhã, realidade! 
Basta por hoje, gentes! 
Adia-te, presente absoluto! 
Mais vale não ser que ser assim. 


Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro, 
E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito. 


Mas tenho que arrumar mala, 
Tenho por força que arrumar a mala, 
A mala. 


Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão. 
Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala. 
Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas, 
A  ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino. 


Tenho que arrumar a mala de ser. 
Tenho que existir a arrumar malas. 
A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte. 
Olho para o lado, verifico que estou a dormir. 
Sei só que tenho que arrumar a mala, 
E que os desertos são grandes e tudo é deserto, 
E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci. 


Ergo-me de repente todos os Césares.   
Vou definitivamente arrumar a mala.   
Arre, hei de arrumá-la e fechá-la;  
Hei de vê-la levar de aqui, 
Hei de existir independentemente dela. 


Grandes são os desertos e tudo é deserto, 
Salvo erro, naturalmente. 
Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado! 


Mais vale arrumar a mala. 
Fim.





álvaro de campos





14 março 2015

álvaro de campos / barrow-on-furness


    I
    Sou vil, sou reles, como toda a gente 
    Não tenho ideais, mas não os tem ninguém. 
    Quem diz que os tem é como eu, mas mente. 
    Quem diz que busca é porque não os tem. 
    É com a imaginação que eu amo o bem.   
    Meu baixo ser porém não mo consente.   
    Passo, fantasma do meu ser presente,  
    Ébrio, por intervalos, de um Além. 

    Como todos não creio no que creio. 
    Talvez possa morrer por esse ideal. 
    Mas, enquanto não morro, falo c leio. 

   Justificar-me?  Sou quem todos são... 
    Modificar-me?  Para meu igual?... 
    - Acaba lá com isso, ó coração! 


    II
    Deuses, forças, almas de ciência ou fé,  
    Eh! Tanta explicação que nada explica!   
    Estou sentado no cais, numa barrica,  
    E não compreendo mais do que de pé. 
    Por que o havia de compreender? 
    Pois sim, mas também por que o não havia?  
    Águia do rio, correndo suja e fria, 
    Eu passo como tu, sem mais valer... 

    Ó universo, novelo emaranhado, 
    Que paciência de dedos de quem pensa  
    Em outras cousa te põe separado? 

    Deixa de ser novelo o que nos fica... 
    A que brincar?  Ao amor?, à indif'rença?   
    Por mim, só me levanto da barrica. 


    III
    Corre, raio de rio, e leva ao mar  
    A minha indiferença subjectiva! 
    Qual "leva ao mar"!  Tua presença esquiva  
    Que tem comigo e com o meu pensar? 
    Lesma de sorte!  Vivo a cavalgar 
    A sombra de um jumento.  A vida viva 
    Vive a dar nomes ao que não se activa, 
    Morre a pôr etiquetas ao grande ar... 

    Escancarado Furness, mais três dias  
    Te, aturarei, pobre engenheiro preso  
    A sucessibilíssimas vistorias... 

    Depois, ir-me-ei embora, eu e o desprezo  
    (E tu irás do mesmo modo que ias),  
    Qualquer, na gare, de cigarro aceso... 

    IV
    Conclusão a sucata! ... Fiz o cálculo, 
    Saiu-me certo, fui elogiado... 
    Meu coração é um enorme estrado 
    Onde se expõe um pequeno animálculo 
    A microscópio de desilusões 
    Findei, prolixo nas minúcias fúteis... 
    Minhas conclusões Dráticas, inúteis... 
    Minhas conclusões teóricas, confusões... 

    Que teorias há para quem sente 
    o cérebro quebrar-se, como um dente 
    Dum pente de mendigo que emigrou? 

    Fecho o caderno dos apontamentos 
    E faço riscos moles e cinzentos 
    Nas costas do envelope do que sou ... 


    V
    Há quanto tempo, Portugal, há quanto 
    Vivemos separados!  Ah, mas a alma,  
    Esta alma incerta, nunca forte ou calma, 
    Não se distrai de ti, nem bem nem tanto. 
    Sonho, histérico oculto, um vão recanto... 
    O rio Furness, que é o que aqui banha, 
    Só ironicamente me acompanha, 
    Que estou parado e ele correndo tanto ... 

    Tanto?  Sim, tanto relativamente... 
    Arre, acabemos com as distinções, 
    As subtilezas, o interstício, o entre, 
    A metafísica das sensações - 

    Acabemos com isto e tudo mais ... 
    Ah, que ânsia humana de ser rio ou cais!

  

    álvaro de campos




15 fevereiro 2015

álvaro de campos / adiamento



Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso,
A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...

Não, não queiram saber mais de nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo divertia-se toda a semana.
Hoje só me diverte o circo d domingo de toda semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espectáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O por vir...
Sim, o porvir...



álvaro de campos





28 dezembro 2014

álvaro de campos / escrito num livro abandonado em viagem



Venho dos lados de Beja.
Vou para o meio de Lisboa.
Não trago nada e não acharei nada.
Tenho o cansaço antecipado do que não acharei,
E a saudade que sinto Não é nem no passado nem no futuro.
Deixo escrita neste livro a imagem do meu desígnio morto:
Fui, como ervas, e não me arrancaram.

  

álvaro de campos




30 novembro 2014

álvaro de campos / là-bas, je ne sais où...




Véspera de viagem, campainha...
Não me sobreavisem estridentemente!

Quero gozar o repouso da gare da alma que tenho
Antes de ver avançar para mim a chegada de ferro
Do comboio definitivo,
Antes de sentir a partida verdadeira nas goelas do estômago,
Antes de por no estribo um pé
Que nunca aprendeu a emoção sempre que teve que partir.

Quero, neste momento, fumando no apeadeiro de hoje,
Estar ainda um bocado agarrado à velha vida.
Vida inútil, que era melhor deixar, que é uma cela?
Que importa? Todo Universo é uma cela, e o estar preso não tem que ver com o tamanho da cela.

Sabe-me a náusea próxima o cigarro. O comboio já partiu da outra estação...
Adeus, adeus, adeus, toda a gente que não veio despedir-se de mim,
Minha família abstracta e impossível...
Adeus dia de hoje, adeus apeadeiro de hoje, adeus vida, adeus vida,!
Ficar como um volume rotulado esquecido,
Ao canto de resguardo de passageiros do outro lado da linha.
Ser encontrado pelo guarda casual depois da partida -
'E esta? Então não houve um tipo que deixou isto aqui?' -

Ficar só a pensar em partir,
Ficar e ter razão,
Ficar e morrer menos...

Vou para o futuro como para um exame difícil.
Se o comboio nunca chegasse e Deus tivesse pena de mim?

Já me vejo na estação até aqui simples metáfora.
Sou uma pessoa perfeitamente apresentável.
Vê-se - dizem - que tenho vivido no estrangeiro.
Os meus modos são de homem educado, evidentemente.
Pego na mala, rejeitando o moço, como a um vício vil.
E a mão com que pego na mala treme-me e a ela.

Partir!
Nunca voltarei.
Nunca voltarei porque nunca se volta.
O lugar a que se volta é sempre outro,
A gare a que se volta é outra.
Já não está a mesma gente, nem a mesma luz, nem a mesma filosofia.

Partir! Meu Deus, partir! Tenho medo de partir!...


álvaro de campos





15 novembro 2014

álvaro de campos / apontamento



A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.

Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.

Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada.
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.

Não se zanguem com ela.
São tolerantes com ela.
O que era eu um vaso vazio?

Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.

Olham e sorriem.
Sorriem tolerantes à criada involuntária.

Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-no especialmente, pois não sabem porque ficou ali.




álvaro de campos








25 outubro 2014

álvaro de campos / tabacaria



  Não sou nada.
  Nunca serei nada.
  Não posso querer ser nada.
  À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

  Janelas do meu quarto,
  Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe
  Quem é
  (E se soubessem quem é, o que saberiam?),

  Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por
  gente,
  Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
  Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
  Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
  Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos
  homens,
  Com o destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de
  nada.

  Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
  Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
  E não tivesse mais irmandade com as coisas
  Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua

  A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
  De dentro da minha cabeça,
  E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

  Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
  Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
  À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora.
  E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

  Falhei em tudo.
  Como não fiz propósito nenhum talvez tudo fosse nada.
  A aprendizagem que me deram,
  Desci pela janela das traseiras da casa.
  Fui até ao campo com grandes propósitos.
  Mas lá encontrei só ervas e árvores,
  E quando havia gente era igual à outra.
  Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
  Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
  Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
  E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver
  tantos!
  Génio? neste momento
  Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
  E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
  Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
  Não, não creio em mim.
  Em todos os manicómios há doidos malucos com tanta certezas!
  Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos
  certo?
  Não, nem em mim...
  Em quantas mansardas e não mansardas do mundo
  Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
  Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
  Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
  E quem sabe se realizáveis,
  Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
  O mundo é para quem nasce para o conquistar
  E não para quem sonha que pode conquista-lo, ainda que tenha
  razão.
  Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
  Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que
  Cristo,
  Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
  Mas sou, e talvez serei sempre o da mansarda,
  Ainda que não more nela;
  Serei sempre o que não nasceu para isso;
  Serei sempre só o que tinha qualidades;
  Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de
  uma parede sem porta,
  E cantou a cantiga do infinito numa capoeira,
  E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
  Crer em mim? Não, nem em nada.
  Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
  O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
  E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
  Escravos cardíacos das estrelas,
  Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
  Mas acordamos e ele é opaco,
  Levantamo-nos e ele é alheio,
  Saímos de casa e ele é terra inteira,
  Mais o sistema solar e a Via Láctea e o indefinido.
  (Come chocolates, pequena;
  Come chocolates!
  Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
  Olha que as religiões todas não ensinam mais do que a
  confeitaria.
  Come, pequena suja, come!
  Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que
  comes!
  Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de
  estanho,
  Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

  Mas ao menos fica a amargura do que nunca serei
  A caligrafia rápida destes versos,
  Pórtico partido para o Impossível.
  Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
  Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
  A roupa suja que sou, em rol, para o decurso das coisas,
  E fico em casa sem camisa.
  (Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
  Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
  Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
  Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
  Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
  Ou cocote célebre do tempo de nossos pais,
  Ou não sei o quê moderno - não concebo bem o quê -,
  Meu coração é um balde despejado.
  Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
  A mim mesmo e não encontro nada.
  Chego a janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
  Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
  Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
  Vejo os cães que também existem,
  E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
  E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

  Vivi, estudei, amei e até cri,
  E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
  Olho a cada um dos andrajos e as chagas e a mentira,
  E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses
  nem cresses
  (Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer
  nada disso);
  Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem
  cortaram o rabo
  E que é o rabo para aquém do lagarto remexidamente.

  Fiz de mim o que não soube,
  E o que podia fazer de mim não o fiz.
  O dominó que vesti era errado.
  Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e
  perdi-me.
  Estava pegada à cara.
  Quando a tirei e me vi ao espelho.
  Já tinha envelhecido.
  Estava bêbado, Já não sabia vestir o dominó que não tinha
  tirado.
  Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
  Como um cão tolerado pela gerência
  Por ser inofensivo
  E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

  Essência musical dos meus versos inúteis,
  Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
  E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
  Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
  Como um tapete em que bêbado tropeça
  Ou um capacho que os ciganos roubam e não valia nada.

  Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
  Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
  E com o desconforto da alma mal-entendendo.
  Ele morrerá e eu morrerei.
  Ele deixará a tabuleta, eu deixarei versos.
  A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
  Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
  E a língua em que foram escritos os versos.
  Morrerá depois o planeta girante em que tudo isso se deu.
  Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como
  gente
  Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de
  coisas como tabuletas,
  Sempre uma coisa defronte da outra,
  Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
  Sempre o impossível tão estúpido como o real,
  Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério
  da superfície,
  Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

  Mas um homem entrou na Tabacaria (pra comprar tabaco?)
  E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
  Semiergo-me energético, convencido, humano,
  E vou tencionar escrever estes versos em que digo o
  contrário.

  Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
  E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
  Sigo o fumo como uma rota própria,
  E gozo, num momento sensitivo e competente,
  A libertação de todas as especulações
  E a consciência de que a metafísica é uma consequência de
  estar mal disposto.

  Depois deito-me para trás na cadeira
  E continuo fumando.
  Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

  (Se eu casasse com a filha de minha lavadeira
  Talvez fosse feliz.)

  Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
  O homem saiu da Tabacaria (metendo o troco na algibeira das
  calças?).
  Ah conheço-o, é o Esteves sem metafísica.
  (O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
  Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu me.
  Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus é Esteves!, e o universo
  Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da
  Tabacaria Sorriu.



  álvaro de campos