18 março 2017

herberto helder / o poema


     VII

     A manhã começa a bater no meu poema.
     As manhãs, os martelos velozes, as grandes flores
     líricas.
     Muita coisa começa a bater contra os muros do meu poema.
     Escuto um pouco a medo o ruído das gárgulas,
     o rodopio das rosáceas do meu
     poema batido pela revelação das coisas.
     Os finos ramos da cabeça cantam mexidos
     pelo sangue.
     Talvez eu enlouqueça à beira desta treva
     rapidamente transfigurada.
     Batem nas portas das palavras,
     sobem as escadas desta intimidade.
     É como uma casa, é como os pés e a as mãos
     das pessoas invasoras e quentes.

     Estou deitado no meu poema. Estou universalmente só,
     deitado de costas, com o nariz que aspira,
     a boca que emudece,
     o sexo negro no seu quieto pensamento.
     Batem, sobem, abrem, fecham,
     gritam à volta da minha carne que é a complicada carne
     do poema.

     Uma inspiração fende lírios na minha testa,
     fende-os ao meio
     como os raios fendem as direitas taças de pedra.
     Eu sorrio e levo pela mão essa criança poderosa,
     Uma visita do sangue cheio de luzes interiores.
     Acompanho, como tocando uma espécie de paisagem
     levitante,
     as palavras pessoas caudas luminosas ascéticas aldeias.

     É a madrugada e a noite que rolam sobre os telhados
     do poema. É Deus que rola e a morte
     e a vida violenta. E o meu coração é um castiçal
     à beira
     do povo que até mim separa os espinhos das formas
     e traz sua pureza aguda e legítima.
     — Trazem liras nas mãos, trazem nas mãos brutais
     pequenos cravos de ouro ou peixes delicados
     de música fria.

     — Eu enlouqueço com a doçura dos meses vagarosos.

     O poema dói-me, faz-me.
     O povo traz coisas para a sua casa
     do meu poema.
     Eu acordo e grito, bato com os martelos
     dos dias da minha morte
     a matéria secreta de que é feito o poema.

     — A manhã começa a colocar o poema na parte
     mais límpida da vida. E o povo canta-o
     enquanto crescem os campos levantados
     ao cume das seivas.
     A manhã começa a dispersar o poema na luz incontida
     do mundo.



     herberto helder
     poesia toda
     assírio & alvim
     1996




17 março 2017

juan-eduardo cirlot / a virgem da tristeza levantada no fumo,



A virgem da tristeza levantada no fumo,
as palavras azuis,
os signos como flores com a forma de cruz.

Consumir-me-ia na sombra das muralhas absortas.

Mas ninguém.



juan-eduardo cirlot
antologia da poesia espanhola contemporânea
selecção e tradução de josé bento
assírio & alvim
1985





16 março 2017

mário cesariny / mágica



É uma estrada no céu silenciosa
um anão sem ninguém que o suspeite
é um braço pregado a uma rosa
um mamilo escorrendo leite

São edénicos anjos expulsos
sonhando quietude e distância
são homens marcados nos pulsos
é uma secreta elegância

São velhos demónios ociosos
fitando o céu bailando ao vento
são gritos rápidos, nervosos
que destroem todo o pensamento

É o frio deserto marinho
operando na escuridão
é o corpo que geme sozinho
é a veia que é coração

São aranhas jovens, pernaltas
arrastando embrulhos para o mar
são altas colunas tão altas
que o chão ameaça estalar

São espadas voantes são vielas
passeios de todos e nenhuns
são grandes rectas paralelas
são grandes silêncios comuns

É uma edição reduzida
das aras da história sagrada
é a técnica mais proibida
da mágica mais procurada

É uma estrada no céu silenciosa
por um domingo extenso e plácido
é um anoitecer cor de rosa
um ar inocente, ácido


mário cesariny
manual de prestidigitação
assírio & alvim
1981



15 março 2017

carlos martínez aguirre / o amor é um género literário



Pensei em escrever-te como se não existisse
ainda o feminismo. Como se o nosso tempo
não fosse o fim do século, nem ninguém conhecesse
a igualdade dos sexos, nem causasse estranheza
ouvir que te dissesse que o amor que eu sinto
por ti nunca poderias senti-lo tu por ninguém.
Talvez o amor seja apenas literatura
que muda com o tempo. Eu suponho que nós
não amamos como Shakespeare, nem Shakespeare como Dante,
nem Dante como Safo, nem Safo como ninguém.



carlos martínez aguirre
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000



14 março 2017

kamâl fawsi al-sharâbi / a viagem vermelha



estende-te sobre o meu braço
oh meu ramo de lírios
só a mim, a mim só pertence
este mundo azul e liso
sobre o mar dos teus olhos
o amor é a barca de Ys

guiam-me as estrelas
para a luz de ouro
de um esplêndido universo
engrandecido pela aurora
entre teus seios altas paragens
sigo a alegria do corpo

no rio das tempestades
estende-te, corre nelas
boca a boca
fogo sobre fogo
oh tu, meu vinho sem juízo
oh espírito amoroso

e depois, quando imersos
desta viagem embriagada,
eis-nos imutáveis.
nossos fogos têm mais raiva
nosso espírito surpreso
de desejos e confidências


kamâl fawsi al-sharâbi  
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de adalberto alves
assírio & alvim
2001





13 março 2017

eugénio de andrade / canção infantil



Era um amieiro.
Depois uma azenha.
E junto
um ribeiro.

Tudo tão parado.
Que devia fazer?
Meti tudo no bolso
para os não perder.




eugénio de andrade





12 março 2017

fernando pessoa / eu amo tudo o que foi,



Eu amo tudo o que foi,
Tudo o que já não é,
A dor que já me não dói,
A antiga e errónea fé,
O ontem que dor deixou,
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia.

1931


fernando pessoa
poesias inéditas (1930-1935)
ática
1955




11 março 2017

antónio osório / despir a floresta



Despir a floresta,
conduzir as nuvens
até à próxima nascente.


E alegria em terra lavrada,
Confortá-la na mão
Por suas invisíveis sementes.


antónio osório
o lugar do amor
a boca junta
gota de água
1981




10 março 2017

jesús llorente / picture



A vida desfeita
como a cama do hotel que abandonas de manhã
À espera de alguém que, distraído, mascando chiclete,
lhe ponha lençóis lavados,
esconda o pó debaixo do tapete
e procure roubar-te algo de valor.

Uma emoção infiltra-se nesta casa
como um ladrão que procura forçar todas as portas
e só encontrou por fechar,
mesmo completamente aberta,
a minha,
que não escondia nada de nada.



jesús llorente
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000





09 março 2017

silvia ugidos / canção de inocência




Não acreditávamos nos velhos provérbios
que vaticinam que a ventura é breve
e o amor
um enganoso fruto de coração incerto.

Não acreditávamos nos velhos provérbios
e fizemos bem,
quem poderá negar que durante um tempo
fomos felizes, semelhantes a deuses,
que nunca então o medo nos tocou
nem era possível incerteza nos nossos sonhos.

Não acreditávamos nos velhos provérbios…
Mas isto era ainda no tempo em que
desconhecíamos as sombras e os ardis
os tribunais funestos que o amor ampara
e os tributos amargos que depois exige o desamor.



silvia ugidos
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000



08 março 2017

ana hatherly / o gato amarelo



durante muito tempo
tentei compreender por
que razão o meu gato Leonardo
sempre tão afectuoso detestava
a mulher da limpeza. Mas
um dia fez-se luz no meu
espírito. Ela chamava-se
Conceição e ele era amarelo.


ana hatherly
estruturas poéticas
1967



07 março 2017

antónio reis / mudamos esta noite



E como tu
eu penso no fogão a lenha
e nos colchões

onde levar as plantas

e como disfarçar os móveis velhos

Mudamos esta noite
e não sabíamos que os mortos
ainda aqui viviam
e que os filhos dormem sempre
nos quartos onde nascem

Vai descendo tu

Eu só quero ouvir os meus passos
nas salas vazias



antónio reis
poemas quotidianos
1967



06 março 2017

erdal alova / a mais velha amiga




Tristeza
Minha velha amiga
Folhas mortas que o Outono vai queimando
Mulher que limpa a casa que vai deixar
Vem, entremos com fúria no Inverno.
Como hei-de olhar o roxo!
Neva e as coisas vão lembrar-se de si mesmas
Uma cidade acorda as chuvas de outrora
Uma tesoura corta as luzes
Rasga o céu dos órfãos
Criança excluída do jogo
Lança um disco para o futuro
O homem vê-se pela primeira vez no seu sangue
Ao pôr-do-sol, o céu de Novembro
Enfia a sua linha no tédio do vizinho
E por fim
O soldado que chora no autocarro
Ganha confiança em si próprio
Quando apareces, tristeza,
Como a mulher que em segredo
Faz um casaco de malha
Mostremos as rosas escondidas
Entremos com fúria no Inverno.


erdal alova
a linguagem de areia   
trad. fiama hasse pais brandão
quetzal
1997