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25 agosto 2013

pier paolo pasolini / as cinzas de gramsci


I

Não é de Maio este ar impuro
que torna o jardim sombrio e estrangeiro
ainda mais obscuro, ou o ofusca

com réstias de luz alucinadas… este céu
de baba sobre as mansardas amarelas
que em semicírculos velam como véus

os meandros do Tibre, os montes
turquesa do Lácio… É uma paz mortal,
resignada como os nossos destinos,

a que derrama sobre estes velhos muros
o outonal Maio. Há nele o cinzento do mundo
o fim do decénio em que nos parece

que as ruínas engoliram o profundo
e ingénuo esforço para recriar a vida:
o silêncio, húmido e infecundo…

Tu, jovem, naquele Maio em que errar
era ainda viver, naquele Maio italiano
que à vida ao menos acrescenta ardor,

muito menos descuidado e impuramente são
do que os nossos pais ─ não pai, mas humilde
irmão ─ já com a tua magra mão

delineavas o ideal que ilumina
(mas não para nós, que tu estás morto, e nós
Estamos mortos, contigo, no húmido

jardim) este silêncio. Não vês que só
podes repousar em terra
estranha, ainda desterrado? Um tédio

patrício reina à tua volta. E só te chega
um rumor abafado de bigorna
nas oficinas do Testaccio, adormecido

ao anoitecer: por entre míseros telhados,
nus montões de lata, ferro-velho, onde, vicioso,
um operário cantando dá por terminado

o seu dia, e em redor deixa de chover.

  


pier paolo pasolini
le ceneri di gramsci
poemas
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005



12 março 2013

pier paolo pasolini / pedro II


  
quarta-feira, 6 de março (fim do dia)

Não sei que amargura, que fraterna tristeza
nos olhos dos amigos: que terrível luz
de vingança, na luz dos inimigos.
Um deles tem mesmo a pupila
amarelada de ódio, o ódio de quem confunde
as bênçãos e as maldições da vida com as suas,
como um pimento venenoso que o faz delirar.
(omissis) cantará a sua romanza, macabra Callas
Clérigofascista, e (omissis) a minha condenação.
Pedro II, Pastor Poeta! Porque só um poeta
Poderá saber que tem de morrer!
Amanhã, Nostradamus registará
um dos cem milhões de actos que preparam
a tua coroação, o teu martírio.



pier paolo pasolini
poemas
de «poesia in forma di rosa»
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005



11 fevereiro 2013

pier paolo pasolini / fragmento de carta para o jovem codignola





Querido rapaz, sim, claro, vamos encontrarmo-nos,
mas não esperes nada desse encontro.
Quanto muito, mais uma decepção, mais um
vazio: daqueles que fazem bem
à dignidade narcisista, como uma dor.
Aos quarenta anos sou como era aos dezassete.
Frustrados, o homem de quarenta anos e o rapaz de dezassete
podem, decerto, encontrar-se, balbuciando
ideias convergentes, sobre questões
separadas por dois decénios, uma vida inteira,
mas que aparentemente são as mesmas.
Até que uma palavra, saída das gargantas hesitantes,
paralisada de pranto e vontade de estar só -
lhes revele a disparidade sem remédio.
E, ao mesmo tempo, terei de fazer de poeta
pai, e refugiar-me na ironia
- que te embaraçará: porque o homem de quarenta anos
é mais alegre e mais jovem do que o rapaz de dezassete,
sendo já senhor da sua vida.
Para além desta aparência, deste disfarce,
nada mais tenho a dizer-te.
Sou avarento, o pouco que possuo
está bem fechado neste meu coração diabólico.
E os dois palmos de pele entre a face e o queixo,
por baixo da boca torcida de tanto sorrir
de timidez, e o olhar que perdeu
a sua doçura, como um figo que azedou,
parecer-te-iam o retrato
fiel dessa maturidade que te faz sofrer,
uma maturidade não fraterna. De que pode servir-te
alguém da tua idade - mas entristecido
na magreza que lhe devora a carne?
O que ele deu, está dado, o resto
é árida piedade.




pier paolo pasolini
poemas
de «poesia in forma di rosa»
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005



06 março 2012

pier paolo pasolini / uma educação sentimental…





Não é Amor. Mas em que medida é minha
a culpa se não converto em Amor
os meus afectos? Muita culpa, de acordo,
se pudesse viver dia após dia
de uma louca pureza, de uma piedade cega.
Escanda1izar com a minha mansidão.
Mas a violência em que me atordoo,
dos sentidos, do intelecto, era desde há anos
o único caminho. À minha volta,
nas origens, só havia a Língua das fraudes
instituídas, das ilusões devidas,
que as primeiras angústias
de um menino, as paixões pré-humanas,
já impuras, não exprimia. E quando,
adolescente, conheci neste país
algo que não era a alegria
de uma vida de criança — num país
provinciano, mas para mim absoluto, heróico —
foi a anarquia. Na nova e já mesquinha
burguesia de uma província sem pureza,
a primeira aparição da Europa
foi para mim aprendizagem do uso mais
puro da expressão, que a escassez
da fé de uma classe moribunda
iria ressarcir com a loucura e os tópoi
da elegância: que seria a indecente clareza
de uma língua que revela
a vontade inconsciente de não ser,
e a consciente vontade de subsistir
no privilégio e na liberdade
que por Graça são pertença do estilo.



pier paolo pasolini
poemas
de «la ricchezza» (1955-59)
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005






16 agosto 2011

pier paolo pasolini / a glícinia


.
.
.
(…)
Prepotente, feroz
renasces, e de repente, numa noite, cobres
uma parede acabada de erguer, o muro
principesco de um ocre
gerado pelo novo sol que vai queimando…
E bastas tu, com o teu perfume, obscuro,
frágil, rastejante, para me tornares puro
de história como um verme, um monge;
e não o quero, revolto-me – árido
na minha nova raiva,
que escora o descascado estuque
do meu novo edifício.
Alguma coisa fez aumentar
o abismo entre corpo e história, enfraqueceu-me,
secou-me, reabriu as minhas feridas…
(…)







pier paolo pasolini
poemas
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005
.
.
.
  

01 maio 2010

pier paolo pasolini / « la realtà »








21 de Junho de 1962




Trabalho o dia todo como um monge
e à noite vagueio, como um gato
à cata de amor… Vou sugerir
à Cúria que me santifique.
Com efeito, respondo à mistificação
com a mansidão. Olho com olhos
de imagem os que vão linchar-me.
Observo o meu massacre com a coragem
serena de um sábio. Pareço
sentir ódio, mas escrevo
versos cheios de amor atento.
Estudo a perfídia como um fenómeno
fatal, como se dela não fosse objecto.
Tenho pena dos jovens fascistas,
e aos velhos, que são para mim formas
do mais horrível mal, oponho
apenas a violência da razão.
Passivo como um pássaro que, voando,
tudo vê, e, no seu voo para o céu,
leva no coração a consciência
que não perdoa.








pier paolo pasolini
poemas
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005








03 novembro 2008

pier paolo pasolini / as cinzas de gramsci







IV



O escândalo de me contradizer, de estar
contigo e contra ti; contigo no coração,
à luz do dia, contra ti na noite das entranhas;

traidor da condição paterrna
- em pensamento, numa sombra de acção –
a ela me liguei no ardor

dos instintos, da paixão estética;
fascinado por uma vida proletária
muito anterior a ti, a minha religião

é a sua alegria, não a sua luta
de milénios: a sua natureza, não a sua
consciência; só a força originária

do homem, que na acção se perdeu,
lhe dá a embriaguez da nostalgia
e um halo poético e mais nada

sei dizer, a não ser o que seria
justo, mas não sincero, amor abstracto,
e não dolorida simpatia…

Pobre como os pobres, agarro-me
como eles a esperanças humilhantes,
como eles, para viver me bato

dia a dia. Mas na minha desoladora
condição de deserdado,
possuo a mais exaltante

das poses burguesas, o bem mais absoluto.
Todavia, se possuo a história,
também a história me possui e me ilumina:


mas de que serve a luz?










pier paolo pasolini

poemas
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005








26 março 2006

um poema de: pier paolo pasolini


A UM PAPA


Poucos dias antes de morreres, a morte
pousou os olhos em alguém da tua idade:
aos vinte anos, tu estudavas, ele era pedreiro,
tu, nobre, rico, ele, um rapazote plebeu:
mas os mesmos dias douraram sobre vós
a velha Roma, voltando a dar-lhe a sua juventude.
Vi os seus despojos, pobre Zucchetto.
Andava de noite, bêbado, à volta dos Mercados,
e um eléctrico que vinha de San Paolo atropelou-o
e arrastou-o por uns metros de carris no meio dos plátanos:
durante umas horas ficou ali, sob o rodado:
poucas pessoas se juntaram em redor, olhando-o,
em silêncio: já era tarde, havia pouca gente.
Um dos homens que existem para que tu existas,
um velho polícia, desbocado como todos os patifes,
gritava aos que se aproximavam mais: «Larguem-lhe os colhões!»
Depois veio uma ambulância buscá-lo:
as pessoas desapareceram, só ficaram uns grupos aqui e acolá,
e, mais à frente, a dona de um cabaré,
que o conhecia, disse a um recém-chegado
que Zucchetto tinha ficado debaixo de um eléctrico, que estava morto.
Poucos dias depois, morrias tu: Zucchetto era um
dos do teu grande rebanho romano e humano,
um pobre bêbado, sem família nem leito,
que andava de noite, vivendo ao deus-dará.
Tu ignoravas: como ignoravas
outros milhares e milhares de cristos como ele.
Talvez seja cruel ao perguntar por que razão
a gente como Zucchetto é indigna do teu amor.
Há lugares infames, onde mães e filhos
vivem na poeira antiga, na lama de outras eras.
Não muito longe de onde tu viveste,
à vista da bela cúpula de San Pietro,
fica um desses lugares, o Gelsomino...
Um monte cortado ao meio por uma pedreira, e no sopé,
entre um charco e uma fieira de prédios novos,
um montão de tugúrios miseráveis, não casas mas pocilgas.
Bastava um gesto teu, uma palavra,
para esses teus filhos terem uma casa:
nunca fizeste um gesto, nunca disseste uma palavra.
Ninguém te pedia que perdoasses Marx! Uma vaga
imensa que irrompe sobre milénios de vida
te separava dele, da sua religião:
mas não se fala, na tua religião, de piedade?
Milhares de homens sob o teu pontificado,
diante dos teus olhos, viveram em estábulos e pocilgas.
Tu sabias que pecar não é fazer o mal:
não fazer o bem, isso sim, é que é pecar.
Quanto bem podias tu ter feito! E não fizeste:
não houve quem mais pecasse do que tu.




poemas
pier paolo pasolini
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005