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17 setembro 2012

mário cesariny / discurso sobre a reabilitação do real quotidiano





XIII

e é preciso correr é preciso ligar é preciso sorrir
      é preciso suor
é preciso ser livre é preciso ser fácil é preciso a roda
      o fogo de artifício
é preciso o demónio ainda corpulento
é preciso a rosa sob o cavalinho
é preciso o revólver de um só tiro na boca
é preciso o amor de repente de graça
é preciso a relva de bichos ignotos
e o lago é preciso digam que é preciso
é preciso comprar movimentar comércio
é preciso ter feira nas vértebras todas
é preciso o fato é preciso a vida
da mulher cadáver até de manhã
é preciso um risco na boca do pobre
para averiguar de como é que eles entram
é preciso a máquina a quatro mil vóltios
é preciso a ponte rolante no espaço
é preciso o porco é preciso a valsa
o estrídulo o roxo o palavrão de costas
é preciso uma vista para ver sem perfume
e outra menos vista para olhar em silêncio
é preciso o logro a infância depressa
o peso de um homem é demais aqui
é preciso a faca é preciso o touro
é preciso o miúdo despenhado no túnel
é preciso forças para a hemoptise
é preciso a mosca um por cento doméstica
é preciso o braço coberto de espuma
a luz o grito o grande olho gelado

E é preciso gente para a debandada
é preciso o raio a cabeça o trovão
a rua a memória a panóplia das árvores
é preciso a chuva para correres ainda
é preciso ainda que caias de borco
na cama no choro no rogo na treva
é precisa a treva para ficar um verme
roendo cidades de trapo sem pernas



  
mário cesariny
manual de prestidigitação
assírio & alvim
1981

14 fevereiro 2012

mário cesariny / corpo visível





A esta hora entre os blocos de prédios enevoados
     a bela mancha
diurna dos calceteiros na praça
e os dois amantes que hoje não dormiram vão partir nos
     braços da sua estrela
à beira do caminho ladeado de sebes de espinheiro
uma carta
uma letra muito fina      extremamente caligráfica
onde a aventura do homem que devolve as palavras que
     lhe são remetidas
deixou a sua marca
e o duque da terceira levanta o braço
comentando seguido pelas aves que acordam a duzentos e
     mais metros de altura
o que não é ainda a grande altura
sim sim
                 não são
                                 quem sabe


Dentro do grande túnel digo-te a vida
esta nuvem que vai para o centro da cidade leve e rosada
     como a proa de um barco
bateira que me trás os dados e a roleta onde no branco
     ou no preto devo jogar
jogando-me contigo
bem-me-quer
malmequer
ou muito     ou pouco
                                    ou nada
o que só com as mãos pode ser soletrado
só nos teus olhos nos teus olhos escrito


Dentro do grande túnel digo-te a vida
o moço que há uma hora não fazia senão fumar cigarros
o mesmo que julgou ter a noite perdida que maçada
sempre encontrou o seu par lá vão eles já no extremo do
     outro lado da praça
ilustrando uma tese velha da idade do sol um tanto im-
     pertinente e desde logo
minha
segundo a qual no amor toda a entoação da voz humana
     tende a reduzir o indivíduo receptor ao estado de
     serpente fascinada
sem que daí advenha a petrificação estrela cadente
ou qualquer outra espécie de perturbação durável
Eu digo que há tambores
mapa louco riscado sobre a areia
há o desenho de onda que atravessa o dorso da cigarra
há o gato tão limpo e ainda e sempre a lavar-se à soleira
     da porta – a tua porta
quando olhas para mim, a trave mais segura, dizes tu, da
     viagem ─
e no vitral de tudo o que eu mais adoro
─ a dez mil metros de profundidade lá onde a carpa
     avança sem deixar qualquer rasto
há o campo selvagem dos teus ombros
espreitando contra a luz      na orla do rio      a nuvem
     de corsários
que sou eu
vestido de andaluz para o baile em chamas ─  digo: o
     grande baile do século na ilha


O havermo-nos encontrado na horrível sala dos passos
     perdidos
é o que levarei mil anos a decifrar
o teu cabelo mapa onde tudo reflecte a ronda luminosa
     dos meus dedos
é o santo e a senha do percurso na sombra
o gesto com que voltas de repente a cabeça interrompendo
     o fio da meada sem que é engraçado hajam batido
     à porta entrado ou saído alguém
são os astros o sangue e os jardins de Brauner
e a tua mão posta em arco sobre a minha boca
é uma nova rosácea sobre o mar
Livres
digo livres
e isso é não só a grande rua sem fim por onde vamos
viemos
ao encontro um do outro
a esta casa dorso de todas as casas e no entanto a única
     perfeita silenciosa fresca
mas e também as chamas que acendemos na terra
da floresta humana
não só ao longo dos álamos gigantes e das clareiras mais
     espectaculares ─  aí a memória é fácil ─
mas na erosão física de cada folha no vento
tudo o que teve terá a sua vez connosco
a haver de nós a mesma dádiva recíproca
porque tu vês
de costas para a janela      tu que disseste:
                              “vai haver uma grande guerra”
                              “nenhum de nós eu sei escapará vivo”
vês tão bem como eu o pouco que isso vale, na muralha
     da china onde ainda estamos
nada é de molde a tapar por completo a figura de bronze
enterrada na areia
o écran que floresce
como tu      como eu      nos tubos que dissemos
fizemos
faremos      acordar
                                                e até quando?


Amor
            amor humano
amor que nos devolve tudo o que perdêssemos
amor da grande solidão povoada de pequenas figuras cin─
     tilantes
digo: a constelação de peixes rápidos
do teu corpo em sossego
seja ela a aurora halo multicor
seja o perpétuo real ceptro branco da noite
seja até porque não a luz crepuscular com o seu chapéu
     preto as suas hastes mudas


Começa a ouvir-se o canto da cigarra
sinal de que foi pisado o botão entre os limos
estão presentes ao acto todos os seres vivos e entre esses
     aqueles que nos foram queridos
na maré límpida que nos impede sabe o polvo dos mares
     até onde e se haverá regresso
em qualquer lado      a última janela fotográfica
as mãos do faroleiro
como a locomotiva no seu túnel
mas não há senão o teu rosto o teu rosto o teu rosto ainda
     e sempre o teu rosto
como é fácil      como é belo
A Vida inteira      Meu amor
                                                                 SOMOS NÓS


O cigarro do anúncio luminoso adoeceu deveras
     já não fuma o espaço
a uma certa velocidade calma
o atrito longo e agudo dos eléctricos moendo calhas
diz-nos que amanheceu
na sua torre de londres o relógio da estação do rossio adquire
     decidida importância
amanheceu      é óbvio      amanheceu
da nossa viagem ao país dos amantes já não resta senão
     esse penacho de fumo
que ameaça evoluir de acordo com a paisagem
uma fábrica      ou antes      na janela entreaberta
a mensagem do pássaro-extra-programa
que toca desafinado a fabulosa ária O Mundo Conhecido
e faz baixo cifrado com a diva local A Lágrima aos Leões
Agora somos pequenos e inúmeros e percorremos o espaço
     com gangrenas nas mãos
e intentamos chamadas telefónicas
e marcamos de novo e desligamos depressa
e tu pões uma écharpe sobre os ombros
e eu visto o meu casaco e saímos de vez
porque nós somos a multidão a que eu chamo
o homem e a mulher de todos os tempos áridos
e como sempre não há lugar para nós nesta cidade
esta ou outra qualquer que de perto ou de longe a esta se
     pareça


O regresso é sempre assinalado por esta negra actividade
     carfológica
verdadeiro sinal-emblema destes tempos
em que a evidência necessita de envólucro
para não morrer na estrada
junto às rodas do avanço a golpes de clarim reinvenção
     espantosa masculina da morte
ou nos carros do clube As Mãos no Sexo
junto ao qual      admira-te      vivemos
O problema não passa da sua fase primária:
um ─  o crocodilo
e dois ─  o clou do arame
se bem que esta velha raça de acrobatas anões
devesse dar por terminada há muito a sua nobre facécia
     sobre a cúpula em chamas
dividir o homem
pôr-lha à direita a luz a assistência aplaude pôr-lhe à
     esquerda a sombra a assistência treme
de tal modo que a meio da operação cabalística
em silêncio e miséria em medo e melancolia o homem
     atinja bravo bravo bravo a imobilidade do sepulcro
após o que rocegagem do arlequim de plumas
e iluminação de todos os fósseis mais antigos


Convenhamos meu amor convenhamos
em que estamos bem longe de ver pago todo o tributo de-
     vido à miséria deste tempo
e que enquanto um só homem um só que seja e ainda que
     seja o último existir DESFIGURADO
não haverá Figura Humana sobre a terra
─  Aa ensombração maligna de certas lágrimas quando a
     alegria é mais resplandecente
não deve ter outra origem
no centro do diamante o pequenino carvão venenoso é
     quanto basta para perder a vida
e no entanto nós meu amor partimos
livres e únicos no altar da estrela que só nós podemos
mas por este lado estamos presos à roda como a lapa não
     o está na sua rocha
e na cama-beliche desfeita da viagem floresce a sono solto
     uma flor especiosa
decor para a estrada pela esquerda alta da figura do
     Homem Sufocado
o homem que nos fala de apagador na mão doce chapéu
     cinzento rosto impermeável
impossível sair impossível passar ele quer ir connosco até
     aos confins da terra


Contra ele meu amor a invenção do teu sexo
único arco de todas as cores dos triunfos humanos
contra ele meu amor a invenção dos teus braços
maravilha longínqua obscura inexpugnável rodeada de
     água por todos os lados estéreis
contra ele meu amor a sombra que fazemos
no aqueduto grande do meu peito      O MAR




mário cesariny
lisboa
1950





assírio & alvim
fundação cupertino de miranda
2010




17 novembro 2011

mário cesariny / ortofrenia






Aclamações
dentro do edifício inexpugnável
aclamações
por já termos chapéu para a solidão
aclamações
por sabermos estar vivos na geleira
aclamações
por ardermos mansinho junto ao mar
aclamações
porque cessou enfim o ruído da noite a secreta alegria por escadas
               de caracol
aclamações
porque uma coisa é certa: ninguém nos ouve
aclamações
porque outra é indubitável: não se ouve ninguém





mário cesariny
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998




07 julho 2011

mário cesariny / passagem de emile henri

.
.
.
Era no tempo da palavra papel
da pluma bem comida lançando ideias de justiça aos chineses
da espingarda de ar podre ao ombro de cada um
 

Depois de ver com os seus próprios olhos como é que a ratazana
         toma o seu cházinho
Emile Henri
escritor da literatura da dinamite
lança a segunda bomba à porta do Café Términus
dado que: da má distribuição da riqueza e das coisas boas da Terra
TODOS SEM EXCEPÇÃO TÊM A MÁXIMA CULPA





mário cesariny
pena capital
assírio & alvim
1982
.
.
.

06 dezembro 2010

mário cesariny / julião os amadores






Já nada temos a fazer sobre a Terra esperemos de olhos
fechados a passagem do vento
dizia eu dizia eu
que é sobre a missa branca do teu peito que se erguem os
palácios rasos de água
no escuro no escuro
alguém nos levará tocando-nos com um dedo nós trémulos,
deitados, sem dizer palavra, morremos de ter-nos
conhecido tanto
e depois? e depois?
depois o halo de uma fita azul o martelo esquecido sobre a
pedra de um sonho
mas os salões? e a casa?
e o cão que nos seguia?


o teu rosto meu rosto
este homem alto
o Sol






mário cesariny
manual de prestidigitação
assírio & alvim
1981







24 novembro 2010

mário cesariny / a 10.000 metros de profundidade




II


A 10.000 metros de profundidade
o rosto deambulador
do soldado
que não quis morrer
grita o seu radioso segredo:

Abre as portas do teu coração
é tão fácil perder
o homem das águias
que nunca mudam

Ele
em verdade
está só
e nunca
foi ouvido








mário cesariny
pena capital
(estado segundo)
assírio & alvim
1982





12 abril 2010

mário cesariny / pastelaria








Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante!

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao
     precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é por ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria e, lá fora - ah, lá fora! - rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra.







mário cesariny
nobilíssima visão
assírio & alvim
1991






13 dezembro 2009

mário cesariny / barricada



Quando já não pudermos mais chorar e as palavras forem pequeninos suplícios e olhando para trás virmos apenas homens desmaiados, então alguém saltará para o passeio, com o rosto já belo, já espontâneo e livre, e uma canção nascida de nós ambos, do mais fundo de nós, a exaltar-nos!

Tu sabes se te quero e se fomos os dois abandonados, abandonados para uma bandeira, para um riso que sangre, para um salto no escuro, abandonados pelos lúgubres deuses, pelo filme que corre e desaparece, pela nota de vinte e um pedais, pela mobília de duas cadeiras e uma cama feita para morrer de nojo. Minha criança a quem já só falta cuspir e enviar corpo e bens para a barricada, meu igual, tu segues-me; tu sabes que o caminho é insuportavelmente puro e nosso, é um duende gritando no telhado as ervas misteriosas, é um rapaz crescendo ao longo dos teus braços, é um lugar para sempre solene, para sempre temido! E o Rossio é uma praça para fazer chorar. Salvé, ó arquitectos! Mas choremos tanto que será um dilúvio. Automóveis-dilúvio. Sobretudos-dilúvio. Soldadinhos-dilúvio. E quando essa água morna inundar tudo, então, ó arquitectos, trabalhai de novo, mas com igual requinte e igual vontade: vinde trazer-nos rosas e arame, homens e arame, rosas e arame.




mário cesariny
pena capital
assírio & alvim
1982




15 setembro 2008

mário cesariny / poema podendo servir de posfácio







ruas onde o perigo é evidente
braços verdes de práticas ocultas
cadáveres à tona da água
girassóis
e um corpo
um corpo para cortar as lâmpadas do dia
um corpo para descer uma paisagem de aves
para ir de manhã cedo e voltar muito tarde
rodeado de anões e de campos de lilases
um corpo para cobrir a tua ausência
como uma colcha
um talher
um perfume


isto ou o seu contrário, mas de certa maneira hiante
e com muita gente à volta a ver o que é
isto ou uma população de sessenta mil almas
devorando almofadas escarlates a caminho
do mar
e que chegam
ao crepúsculo
encostados aos submarinos
isto ou um torso desalojado de um verso
e cuja morte é o orgulho de todos
ó pálida cidade construída
como uma febre entre dois patamares!
vamos distribuir ao domicílio
terra para encher candelabros
leitos de fumo para amantes erectos
tabuinhas com palavras interditas
- uma mulher para este que está quase a perder
o gosto à vida - tome lá -
dois netos para essa velha aí no fim da fila -
não temos mais -
saquear o museu dar um diadema ao mundo e depois
obrigar a repor no mesmo sítio
e para ti e para mim, assentes num espaço útil,
veneno para entornar nos olhos do gigante

isto ou um rosto um rosto solitário como barco em
demanda d eventos calmo para a noite
se nós somos areia que se filtre
a um vento débil entre arbustos pintados
se um propósito deve atingir a sua margem como
as correntes da terra náufragos e tempestade
se o homem das pensões e das hospedarias levanta
a sua fronte de cratera molhada
se na rua o sol brilha como nunca
se por um minuto
vale a pena
esperar
isto ou a alegria igual à simples forma de um pulso
aceso entre a folhagem das mais altas lâmpadas
isto ou a alegria dita o avião de cartas
entrada pela janela saída pelo telhado


ah mas então a pirâmide existe?
ah mas então a pirâmide diz coisas?
então a pirâmide é o segredo de cada um com
o mundo?


sim meu amor a pirâmide existe
a pirâmide diz muitíssimas coisas
a pirâmide é a arte de bailar em silêncio


e em todo o caso



há praças onde esculpir um lírio
zonas subtis de propagação do azul
gestos sem dono barcos sob as flores
uma canção para ouvir-te chegar










mário cesariny
manual de prestidigitação
assírio & alvim
1981





22 outubro 2007

o norte da europa




I

O Pai Natal coberto de lantejoulas ia subindo a ladeira com um ar circunstancial. O cumprimento que me dirigiu, corrigido por um gesto de perfeita cortesia, era tão naturalmente rico de proteínas que se comia à mão, em fato de baile.

Os dias iam correndo pela mão daquela cujo nome se vai ocultar na Península da Gata, a norte do Carvoeiro.

«É assim que cumpres?», perguntou Júlia Bahamas. Respondi que não era ainda tempo de colher maçãs e que também as uvas estavam por amadurecer. E acrescentei, exclamativamente:

«Ó Estações!»

Mas aí já ninguém ouvia ninguém, o círculo apertava-se coberto de espuma.


II

Estava tudo tremido ao longo do mar e a gente sentia que o sol nos tocava com força. Levei nos braços alguma terra verde. Lá havia muito sal. No seio daquela estátua mutilada no ventre pela cruz vermelha do asco mais inocente.

Teve de vestir a bata branca, mesmo sabendo que o anestésico não chegava para o bolo que te pediram e que eu comi durante três dias a mergulhar num monte de areia triste, lá onde a vaga me comia. «Não implores», disse, e curvei a cabeça até lhe beijar os pés que outros haviam já beijado outrora, à saída dos teatros que dão para a Grande Perspectiva Nevsky. Distribuídos os gorros aos transeuntes, regressavam a casa, quando não voavam atrás da troika da Condessa Nemus, num grande ladrar de cães com manguitos atrás das orelhas e muitas bocas abertas a ver. Mas que grande porra, disse o velho, e ele sabia que era isso assim tal e qual e que não havia mais nada para dizer nunca mais. E porque tudo me era indiferente desatei os sapatos e corri de pés nus pela areia dentro a bater palmas e a uivar como um lobo.


III

Era principalmente música o que nos chamava pois ninguém tinha posto de radiofonia naquela zona que era a mesma mas repetida de tal forma que a noite nos surpreendeu com uma cor ligeiramente azulada nos tornozelos. Chamado o médico e retiradas as grades começámos a subir. A primeira nuvem, ligeiramente descaída na ponta, não nos deu o necessário informe, mas já a segunda, muito bem pintada, indicava o norte, o sul, o número do telefone, a certidão de idade e o Grande Beijo, praticado de pernas para o ar e em estado de nobreza absoluta.

Um círculo vicioso. Estavam lá as cores todas. E gritámos. E ainda corria alguém — vago — à frente dos nossos gritos-gemidos. Rosa — eu sei que havia uma cor-de-rosa. Como no tecto da casa passavam aves e arneses, no fim do verão, quando as chuvas começam. O mesmo fenómeno, afinal.





mário cesariny
primavera autónoma das estradas
assírio & alvim
1980





21 maio 2007

cesariny




autografia
um filme de miguel gonçalves mendes















(…)

M.C. – Não é não querer, é não saber. E saber que estamos num país em que não se pode dizer o que realmente interessa. É assim desde o D. Afonso Henriques.

Era uma altura em que a minha gente estava viva. Tanto de amigos verdadeiros como de gente para passar um bocado na cama, tudo isso funcionava, com a polícia a correr atrás, a chatear-me. Também havia maneira de chatear a polícia. E agora, nem polícias nem ladrões. É um deserto.




M.C. – A chamada consideração, não quero dizer glória, consideração literária, ou artística, para mim não tem significado. Nenhum!
Queres ver como é?
Também hás-de ter isso, quando começares a receber grandes prémios, de curta-metragem na Alemanha.
É assim, eu estou assim num pedestal, muito alto, a dizer versos: blá, blá, blá.
Depois está uma data de malta cá em baixo: eeehhhh.
Depois deixam-me ir para casa sozinho.
Isto é a glória literária à portuguesa.
Tá bom?

E não creio que isto que eu estou a dizer seja muito interessante, sabes!?




M.C. – Eu acho que sou um poeta bastante sofrível, numa época em que o tecto está muito baixo. Percebes o que eu quero dizer? Um grande poeta numa época em que não há Anteros, não há Camilos Pessanhas, não há Guerras Junqueiros, não há Pessoas, se quiseres. Compreendes? Há para aí uma data de gente a publicar uma data de livros de poesia, que aquilo há-de ir parar tudo, não sei… muito longe. Há-de ir parar muito longe.

Isto é horrível de dizer. Mas talvez porque os meus poemas, digamos, de amor, a esses poemas nunca falta um condimento muito forte de revolta. É talvez isso que os torna mais fortes e não o miau miau, «daquela triste e leda madrugada, toda cheia de mágoa e de piedade», é o miau miau do gato a quem apertam demais o rabo. Espero que os meus leitores se apercebam disso, não são poemas de amor: «Estavas linda Inês, posta em sossego», são também, não sei, uma espécie de grito. São do contra.


M.C. – Acabou! E não julgues que eu não tenho saudade desse tempo, em que andava pelos cafés ou pelas ruas.
Nunca escrevi um poema em casa, nunca, não me perguntes porquê. Pelas ruas, era como voar. Foi-se!

Não sei se pode aplicar aquela coisa de quando o verbo se faz carne. No princípio era o verbo, mas depois fez-se carne, e ossos, e pessoas. Talvez achasse mais poesia nisso.
Porque de certa maneira os poetas são todos um bocado onanistas. Em vez de estar a dar a queca, como era sua obrigação, estão: ái, ái, dha, dha.

(…)














a phala
de s. jerónimo a cesariny
1#2007
assírio & alvim
2007








20 maio 2006

um poema de: mário cesariny



do capítulo da devolução



Hoje venho dizer-te que morreste e que velo o teu corpo no meu
leito, um corpo estranho e surdo um corpo incompreensível

aquele desespero que deixou de ter forças para erguer os portais do
outro reino tristeza de menino a quem tiraram tudo, até
a tinta e as flores e o prazer de gritar

esse (foi visto) deve subsistir porque é a tua maneira de tomar banho
no cosmos, olhar o cosmos como os que ainda podem
interrogar as ondas e morrer

mas tu ainda não sabes a que ponto morreste; vais até à janela, aspiras
com cuidado o oxigénio que o espaço te oferece, apontas
rindo a meiga criatura que pela rua arrasta a sua condição
de animal fulminado

depois olhas para mim, olhas as tuas mãos, e elas ambas, tão claras,
tão seguras, são as mãos de um soldado a arder em febre,
aves a percorrer o seu novo deserto

mas tu sabes, tu vistes, e mais do que eu; a mão do homem é doce e
iluminada como a noite como um rasto de fumo sobre
os hospitais

tivemos uma história mas a história foi-se, em fileiras angélicas e
gratas, a fazer a manhã de outras paragens; outra sombra,
outros olhos semelhantes

noutro leito nas nuvens deito os teus cabelos, o teu cansaço e a
minha miséria, os teus braços e os meus, altos como
cidades, altos como flores

parou o automóvel, lá em baixo, e eu não tenho mais que descer as
escadas, fechar ainda a porta do teu quarto, atravessar de
um pulo a minha própria vida

agora posso sonhar até deixar de te ver

belo rio sem lágrimas




mário cesariny
pena capital
assírio & alvim
1982