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13 abril 2011

josé miguel silva / eucaliptal

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Quem regressa a Portugal regressa ao medo
de falar sem alçapões de protecção
conventual, ao respeitinho pelos títulos
de borra, à timidez de protestar nas oficinas,
nos empregos, nos polés, nos hospitais.

Volta ao gozo bichaneiro da franqueza
pelas costas, ao bitate regougado
pela incúria, ao leve gás do palavrão
desopilante, pusilânime, vendado,
ao complacente desamor da liberdade.

Regressar a Portugal é regressar
ao desapego por direitos e deveres,
à indiferença pela história colectiva,
pelo que quer que sobrepuje o cá-se-vai
dum comodismo sem coragem nem prazer.

É regressar a horizontes de betão
e eucalipto, a frustrados atoleiros
de automóveis à deriva, ao fanico
de salários sobrevivos, mordaçantes,
ao cajado da lisonja e da preguiça.

Quem regressa a Portugal, regressa ao tempo,
sobretudo, da infância, que o lugar
já foi levado (não me canso de o dizer,
nem me conformo) pelo tufão da mais-valia
predial. Mas se o tempo da infância

cabe inteiro na memória, quem regressa
a Portugal, regressa a quê e para quê?






josé miguel silva
erros individuais
relógio d´água
2010

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13 dezembro 2010

josé miguel silva / piazza della signoria






Ora, pobres sempre houve, senhor.
E todos sabemos, foi assim ordenado,
que não há mal que não venha por bem.
Muito mesquinhos seríamos nós,
muito egoístas, se não nos alegrasse
que do nosso suor tenha nascido a arte
de gastar dinheiro, para que dentro
de cem ou mil anos também os nossos
descendentes possam ter o direito de
cagar sentados, ouvir música de câmara
ou sair do dentista com um sorriso
nos dentes. Se valeu a pena o sacrifício?
Isso nem se pergunta. Pessoalmente,
só lamento não ter podido dar mais
do que uma vida, mas era a única que tinha,
e morro, por isso, de consciência tranquila.




















josé miguel silva
erros individuais
relógio d´água
2010






21 outubro 2010

josé miguel silva / libertação







Foi o dia em que um polido agente da autoridade
nos veio buscar a casa para nos interrogar.
Alguém havia assaltado o posto médico
e o medo da vizinhança apontara para nós.
Não sabíamos de nada, mas o nosso luto
(morrera-nos o mundo há pouco tempo)
dizia o contrário. Éramos muito jovens,
tínhamos a boca ferida de insultos. A nossa vida,
coitada, lia muitos livros de aventuras políticas,
sentia-se capaz, dizia, de dar a volta ao mundo
numa barca de cortiça. Não lhe demos confiança.
Após o depoimento ainda passei pela biblioteca
e à noite festejámos a libertação da nossa inocência.
Nunca mais pedimos sal aos vizinhos.





josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem
relógio d'água
2003







27 julho 2010

josé miguel silva /ao amanhecer







As lágrimas não sabem
o que dizem, deixam-se cair
em turvos argumentos,
lembram-se de coisas.
Quase nos estragam as bebidas.

Ao fim de três whiskies,
abres uma porta
e tudo se aclara.
As memórias, os cadernos,
os aprestos do negrume,
ficaram para trás.

Agora já conheces
os fósforos que tens,
abriga-os da chuva de dezembro.
Quem sabe que cigarros
estarão à tua espera.






josé miguel silva
canal revista de literatura nr.6
verão de 1999
palha de abrantes








16 maio 2010

josé miguel silva / contra os optimistas














Chamam destino ao rifão do acaso
e chamam à fraude boa fortuna.
Crêem no Batman e na Virgem Maria.
Duvidam do frio, não da polícia
e nunca dão crédito àquilo que vêem.

Reservam a tempo um lugar na geral,
põem o pé entre duas ciladas
e ficam a rir-se nas fotografias.
Sujam a roupa tal como nós, mas
mandam-na sempre a lavandarias
que sabem tratar dos casos difíceis.

Nunca dão ponto sem antes o nó,
mas fazem um laço por cima do nó.
Compram revistas de aval científico
em cujos artigos se prova o seguinte:
é quase impossível determinar
se é falsa uma lágrima ou se é verdadeira.

Depois, jantam em grupo, falam dinheiro,
guiam a vida por grandes veredas e ouvem
sininhos, muitos sininhos de música sacra.







josé miguel silva
ulisses já não mora aqui
& etc
2002



02 dezembro 2009

josé miguel silva / já os pesadelos






What a perfect day to think about myself.
The The






Os sonhos dos homens assemelham-se entre si.
Já os pesadelos, cada um tem o seu.
Durante muitos anos eu fui hóspede do frio.
Enrolava cigarros para depois da chuva
e não tinha sonhos, somente pesadelos.

O mais recorrente era o do nevoeiro:
ninguém me via, era inútil mandar vir
uma caneca de cerveja, no café.
O meu dinheiro ninguém o aceitava,
ficava parado, fazia de mim um acumulador.

Como nunca saía de casa, não sabia falar
senão com mortos. Parecia-me magia
saber responder boa tarde como vai
à saudação dos vizinhos, pedir do vazio
ao homem do talho, perguntar as horas.

Tempos amargos esses, e hoje,
a mesma coisa, a mesma solidão.
Com a diferença de que sou mais forte agora,
vou à piscina duas vezes por semana,
escrevo poemas para não adormecer.







josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem
relógio d´água
2003


03 maio 2009

josé miguel silva / os melhores anos da minha vida






Os melhores anos da minha vida
passaram comigo ausente, passaram
numa corrente subterrânea.
Não me apercebi de nada, distraído
com a queda das folhas,
a densa mistura de pão e desordem.

Estava tudo em aberto, mas eu não sabia
senão de pequenas querelas,
e tímidos passos à toa, sempre à espera
de não ter futuro. Sentado, como um pobre,
sobre o poço de petróleo,
eu media com tesouras as semanas,
misturava-me com livros, ansiava
pelo dia em que deixasse de sangrar.

Os melhores anos da minha vida troquei-os
por isto.






josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem
relógio d'água
2003.