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03 abril 2012

armando silva carvalho / lamento do divino amante ao seu membro triste



  

Entrou no que se chama os domínios de Deus
Sem ser seu hóspede,
Sem ser sequer o grão de pó que se infiltra na mente
Em exaltação desértica.

Sem a penugem que dizem ser dos anjos
A aflorar-lhe
A lâmina dos seus lábios de insecto.

Ouvira os recitais compassivos das mulheres domésticas,
A prédica acabrunhada dos teólogos,
Não se negara nunca à beleza dos girassóis indefesos
Nos seus campos de indústria e mística.

Entrou nos recintos de Deus
Um pouco desabrigado mas de unhas limpas
E de peito aberto ao que viesse.
De Deus, porque assim lhe disseram os amigos,
Pois não eram só as sobras do silêncio,
O chão tão devoluto, o trabalho arrumado a um canto.

Era a sua cabeça em cima duma tábua
A sua vida ao lado,
Um pequeno embrulho indefinido
A marcar presença nesses labirintos avessos
Aos francos, directos, respiradouros
Da morte.

Algumas destas coisas que falamos podem ser eternas,
Dizem-lhe os autores,
A própria flor aberta pela mão do soi
Enaltece-lhe a vista.

Agora, parado, nesses aposentos de estátuas,
Ideias e falas sumptuosas, de crises roedoras como animais iníquos
Que se alimentam do medo,
O amoroso pasma, sente o peso dos tempos,
E reza o que lhe resta de sexo, espesso,
Com a solitária mão, mecânica,
Fechada.





armando da silva carvalho
relâmpago nr. 27
outubro
2010




09 fevereiro 2012

armando silva carvalho / poema do êxtase






Irmãos, não porque padeça de loucura precoce,
Mas sempre vos direi que haveis de procurar
alguns profetas.
Nos buracos do metro, nas locas das sentinas
e também no olhar, quantas vezes trémulo,
dessas crianças que riem no meio
dos charcos de óleo.
O pouco que dirão vos servirá.
O muito, por pouco e escasso, deixai
para outros dias.
Porque outros dias virão, esses, sim,
definitivos.
Não saberão aqueles os pesos da matéria.
Dedilham as guitarras esses povos de Deus
e de que servirá o fogo, o rei, o leão, a águia,
o número sete e as pedras do Sepulcro
àqueles que vão sonâmbulos, imagem sobre imagem,
pelo dédalo das ruas a caminho da Gruta?
Irmãos eclesiastas, deixai de ir a vós
as bibliotecas, as falas das paredes.
Deixai para os artistas a hora de saída
das marquesas, esse minuto infinito
de levar à têmpora as armas fatais.
 Essa delicada estufa em que fermenta
 a mais rasteira planta: a das paixões.
Paredes são retratos. São sa1as para serem vistas.
O precioso Vieira ergueu extensas paredes
vítreas. Cortejava o ouvido medroso
e fidalgo, julgando deste jeito,
trazer-lhes a alma à arreata,
que trazia oculta sobre as vestes.
Politico Vieira. De Deus Nosso Senhor
e Rei. E de outros nomes.
 Profetas loucos, roucos ou sem fala.
Como Chet Baker, Elisa a rapadeira.
Procurai neles o inverso da ciência,
o inferno do céu.
Procurai quem destrua estas paredes
que gritam tanta engenharia.
Buscai quem as atravesse mudo como um anjo
com fogo nos vestidos
e nas mãos todo o licor cioso
do silêncio.
Chorai, matai e sem uma pa1avra
Fazei com que Deus cresça.



armando da silva carvalho
poema do êxtase
poezz
almedina
2004


17 dezembro 2011

armando silva carvalho / cavalos persas, papagaios, panteras





Cavalos persas, papagaios, panteras
e um elefante branco que borrifava as gentes
- tal era a embaixada de D. Manuel
a Leão o Décimo
em frente da qual o paquiderme
ajoelhou três vezes.
Assim se transportou Portugal a Roma.
Um circo a abarrotar por entre os deuses
(Miguel Ângelo) que transpiravam
a melancolia da solidão e da grandeza.
Num tempo em que se incrementava
a poesia didáctica de formosos temas
que iam do xadrez à criação dos bichos-da-seda
ou até à sífilis do célebre Frascator.
Aliás o Papa, de pestilenta fístula,
perito ele em xadrez,
poderia ter ouvido dizer a um da sua família,
Lourenço de Médicis: devemos desconfiar
da parte dianteira dos bois,
da parte de trás das mulas
e das duas partes dos frades.
Comia-se no ouro. Ou se roubava gado.
Como fez Giovanna Catanei - a Vanozza,
primeira amante de Alexandre VI.
Em Roma, como agora,
os poetas não passam de macacos
que se acolhem sob o sol papal.
Como esse Aretino que seria um nome
nos cristais e nos rios,
na testa dos bastardos e dos avarentos,
na vagina sábia das Impérias
e no peito dos cardeais que folgam.
«Com uma pena de papel faço troça de tudo
e até mesmo de mim parece Deus ter medo.»

  



armando silva carvalho
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001





04 julho 2010

armando silva carvalho / a chave inglesa







Era um corpo inteiramente
português.
Transido de ternura
o óleo das suas mãos
protegia-me
o coração.

Não sei que mecanismo
despertava em si
quando chorava,
fazia crescer a relva,
meus dentes indecisos
como crias
corriam e devoravam.

Escreveu-me duas cartas
em cima de um tractor
e nelas descrevia
em frases simples
o modo tortuoso
que me fez traidor.







armando silva carvalho
as escadas não têm degraus nr. 3
livros cotovia
1990