Mostrar mensagens com a etiqueta alberto caeiro. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta alberto caeiro. Mostrar todas as mensagens

24 setembro 2017

alberto caeiro / last poem


(ditado pelo poeta no dia da sua morte)


É talvez o último dia da minha vida.
Saudei o sol, levantando a mão direita,
Mas não o saudei, para lhe dizer adeus.
Fiz sinal de gostar de o ver ainda, mais nada.

1920?


alberto caeiro
poemas inconjuntos
poemas completos de alberto caeiro
fernando pessoa
presença
1994




27 agosto 2017

alberto caeiro / li hoje quase duas páginas



XXVIII

Li hoje quase duas páginas
Do livro dum poeta místico,
E ri como quem tem chorado muito.

Os poetas místicos são filósofos doentes,
E os filósofos são homens doidos.

Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem
E dizem que as pedras têm alma
E que os rios têm êxtases ao luar.

Mas as flores, se sentissem, não eram flores,
Eram gente;
E se as pedras tivessem alma, eram coisas vivas, não eram pedras;
E se os rios tivessem êxtases ao luar,
Os rios seriam homens doentes.

É preciso não saber o que são flores e pedras e rios
Para falar dos sentimentos deles.
Falar da alma das pedras, das flores, dos rios,
É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos.
Graças a Deus que as pedras são só pedras,
E que os rios não são senão rios,
E que as flores são apenas flores.

Por mim, escrevo a prosa dos meus versos
E fico contente,
Porque sei que compreendo a Natureza por fora;
E não a compreendo por dentro
Porque a Natureza não tem dentro;
Senão não era a Natureza.

s.d.


alberto caeiro
o guardador de rebanhos




06 agosto 2017

alberto caeiro / nunca busquei viver a minha vida




Nunca busquei viver a minha vida
A minha vida viveu-se sem que eu quisesse ou não quisesse.
Só quis ver como se não tivesse alma
Só quis ver como se fosse eterno.

s.d.


alberto caeiro
pessoa por conhecer - textos para um novo mapa
teresa rita lopes
estampa
1990




04 junho 2017

alberto caeiro / pobres das flores nos canteiros dos jardins regulares


XXXIII

Pobres das flores nos canteiros dos jardins regulares.
Parecem ter medo da polícia...
Mas tão boas que florescem do mesmo modo
E têm o mesmo sorriso antigo
Que tiveram para o primeiro olhar do primeiro homem
Que as viu aparecidas e lhes tocou levemente
Para ver se elas falavam...
s.d.


alberto caeiro
o guardador de rebanhos





26 fevereiro 2017

alberto caeiro / e há poetas que são artistas


XXXVI

E há poetas que são artistas
E trabalham nos seus versos
Como um carpinteiro nas tábuas!...

Que triste não saber florir!
Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um muro
E ver se está bem, e tirar se não está!...
Quando a única casa artística é a Terra toda
Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma.

Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem respira.
E olho para as flores e sorrio...
Não sei se elas me compreendem
Nem se eu as compreendo a elas,
Mas sei que a verdade está nelas e em mim
E na nossa comum divindade
De nos deixarmos ir e viver pela Terra
E levar ao colo pelas Estações contentes
E deixar que o vento cante para adormecermos
E não termos sonhos no nosso sono.

s.d.


alberto caeiro
o guardador de rebanhos




22 janeiro 2017

alberto caeiro / talvez quem vê bem não sirva para sentir



Talvez quem vê bem não sirva para sentir
E não agrada por estar muito antes das maneiras.
É preciso ter modos para todas as coisas,
E cada coisa tem o seu modo, e o amor também.
Quem tem o modo de ver os campos pelas ervas
Não deve ter a cegueira que faz fazer sentir.
Amei, e não fui amado, o que só vi no fim,
Porque não se é amado como se nasce mas como acontece.
Ela continua tão bonita de cabelo e boca como dantes,
E eu continuo como era dantes, sozinho no campo.
Como se tivesse estado de cabeça baixa,
Penso isto, e fico de cabeça alta
E o dourado sol seca a vontade de lágrimas que não posso deixar de ter.
Como o campo é vasto e o amor interior...!
Olho, e esqueço, como seca onde foi água e nas árvores desfolha.
Eu não sei falar porque estou a sentir.
Estou a escutar a minha voz como se fosse de outra pessoa,
E a minha voz fala dela como se ela é que falasse.
Tem o cabelo de um louro amarelo de trigo ao sol claro,
E a boca quando fala diz coisas que não só as palavras.
Sorri, e os dentes são limpos como pedras do rio.

8-11-1929


alberto caeiro
o pastor amoroso
poemas completos de alberto caeiro
fernando pessoa
presença
1994



24 dezembro 2016

alberto caeiro / quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois


XVI

Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois
Que vem a chiar, manhaninha cedo, pela estrada,
E que para de onde veio volta depois
Quase à noitinha pela mesma estrada.

Eu não tinha que ter esperanças — tinha só que ter rodas...
A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco...
Quando eu já não servia, tiravam-me as rodas
E eu ficava virado e partido no fundo de um barranco.

Ou então faziam de mim qualquer coisa diferente
E eu não sabia nada do que de mim faziam...
Mas eu não sou um carro, sou diferente
Mas em que sou realmente diferente nunca me diriam.


alberto caeiro
o guardador de rebanhos




16 outubro 2016

alexander search / por isso, muito bem disse caeiro




Por isso, muito bem disse Caeiro

A Natureza é partes sem um todo.

O Universo, como conjunto, síntese e não soma das coisas, é uma ideia abstracta. Por isso não há Universo. Não é por não sabermos se não há; é por sabermos, por isso que ele é uma ideia abstracta, que não há.

O exemplo melhor das ideias abstractas e do para que servem são os números, a matemática. Nada mais útil, mas, em si, nada mais falso. Só um louco julga que o número 5, por exemplo, é uma coisa: mas o n.0 5 é útil, como os outros números, porque é um meio de compreender a realidade, não em si mesma, mas tem utilidade, em relação apenas a nós e à nossa imperfeição.

Se os nossos sentidos fossem perfeitos, não precisávamos de inteligência, as ideias abstractas de nada nos serviriam.

A imperfeição dos nossos sentidos faz com que não concordemos nunca em absoluto sobre um objecto ou um facto do exterior. Nas ideias abstractas concordamos em absoluto. Dois homens não vêem uma mesa da mesma maneira; mas ambos entendem a palavra «mesa» da mesma maneira. Só querendo visualizar uma mesa é que divergirão; isso, porém, não é a ideia abstracta da mesa.

s.d.


poemas completos de alberto caeiro
textos heterónimos
fernando pessoa
recolha, transcrição e notas de teresa sobral cunha
presença
1994



18 setembro 2016

alberto caeiro / agora que sinto amor



Agora que sinto amor
Tenho interesse no que cheira.
Nunca antes me interessou que uma flor tivesse cheiro.
Agora sinto o perfume das flores como se visse uma coisa nova.
Sei bem que elas cheiravam, como sei que existia.
São coisas que se sabem por fora.
Mas agora sei com a respiração da parte de trás da cabeça.
Hoje as flores sabem-me bem num paladar que se cheira.
Hoje às vezes acordo e cheiro antes de ver.



alberto caeiro
o pastor amoroso




01 janeiro 2016

alberto caeiro / se eu morrer novo



Se eu morrer novo,
Sem poder publicar livro nenhum,
Sem ver a cara que têm os meus versos em letra impressa,
Peço que, se se quiserem ralar por minha causa,
Que não se ralem.
Se assim aconteceu, assim está certo.

Mesmo que os meus versos nunca sejam impressos,
Eles lá terão a sua beleza, se forem belos.
Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir,
Porque as raízes podem estar debaixo da terra
Mas as flores florescem ao ar livre e à vista.
Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir.

Se eu morrer muito novo, oiçam isto:
Nunca fui senão uma criança que brincava.
Fui gentio como o sol e a água,
De uma religião universal que só os homens não têm.
Fui feliz porque não pedi cousa nenhuma,
Nem procurei achar nada,
Nem achei que houvesse mais explicação
Que a palavra explicação não ter sentido nenhum.

Não desejei senão estar ao sol ou à chuva —
Ao sol quando havia sol
E à chuva quando estava chovendo (E nunca a outra cousa),
Sentir calor e frio e vento,
E não ir mais longe.

Uma vez amei, julguei que me amariam,
Mas não fui amado.
Não fui amado pela única grande razão —
Porque não tinha que ser.

Consolei-me voltando ao sol e à chuva,
E sentando-me outra vez à porta de casa.
Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados
Como para os que o não são.
Sentir é estar distraído.


alberto caeiro
poemas inconjuntos




26 dezembro 2015

alberto caeiro / não me importo com as rimas


XIV

Não me importo com as rimas.  Raras vezes
Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.
Penso e escrevo como as flores têm cor
Mas com menos perfeição no meu modo de exprimir-me 
Porque me falta a simplicidade divina
De ser todo só o meu exterior 
Olho e comovo-me,
Comovo-me como a água corre quando o chão é inclinado, 
E a minha poesia é natural corno o levantar-se vento...


alberto caeiro
o guardador de rebanhos




22 novembro 2015

alberto caeiro / quem me dera



Quem me dera que eu fosse o pó da estrada
E que os pés dos pobres me estivessem pisando...

Quem me dera que eu fosse os rios que correm
E que as lavadeiras estivessem à minha beira...

Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio
E tivesse só o céu por cima e a água por baixo...

Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro
E que ele me batesse e me estimasse...

Antes isso que ser o que atravessa a vida
Olhando para trás de si e tendo pena...

alberto caeiro



12 outubro 2015

alberto caeiro / leve



Leve, leve, muito leve, 
Um vento muito leve passa, 
E vai-se, sempre muito leve. 
E eu não sei o que penso 
Nem procuro sabê-lo.

  
alberto caeiro
o guardador de rebanhos





23 agosto 2015

alberto caeiro / ao entardecer



Ao entardecer, debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.
Que pena que tenho dele!  Ele era um camponês
Que andava preso em liberdade pela cidade.
Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas cousas,
É o de quem olha para árvores,
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos ...

Por isso ele tinha aquela grande tristeza
Que ele nunca disse bem que tinha,
Mas andava na cidade como quem anda no campo
E triste como esmagar flores em livros
E pôr plantas em jarros...



alberto caeiro
o guardador de rebanhos



09 agosto 2015

alberto caeiro / bendito seja o mesmo sol



Bendito seja o mesmo sol de outras terras
Que faz meus irmãos todos os homens
Porque todos os homens, um momento no dia, o olham como eu, 
E, nesse puro momento
Todo limpo e sensível
Regressam lacrimosamente
E com um suspiro que mal sentem
Ao homem verdadeiro e primitivo
Que via o Sol nascer e ainda o não adorava.
Porque isso é natural - mais natural
Que adorar o ouro e Deus
E a arte e a moral ...
  

alberto caeiro




28 junho 2015

alberto caeiro / aquela senhora tem um piano



Aquela senhora tem um piano
Que é agradável mas não é o correr dos rios 
Nem o murmúrio que as árvores fazem ...

Para que é preciso ter um piano?
o melhor é ter ouvidos
E amar a Natureza.
  


alberto caeiro





16 maio 2015

alberto caeiro / última estrela



Última estrela a desaparecer antes do dia,
Pouso no teu trémulo azular branco os meus olhos calmos,
E vejo-te independentemente de mim;
Alegre pelo critério (?) que tenho em Poder ver-te
Sem "estado de alma" nenhum, sonho ver-te.
A tua beleza para mim está em existires
A tua grandeza está em existires inteiramente fora de mim.




alberto caeiro



01 janeiro 2015

alberto caeiro / assim como



Assim como falham as palavras quando querem exprimir qualquer  pensamento, 
Assim falham os pensamentos quando querem exprimir qualquer realidade, 
Mas, como a realidade pensada não é a dita mas a pensada. 
Assim a mesma dita realidade existe, não o ser pensada. 
Assim tudo o que existe, simplesmente existe. 
O resto é uma espécie de sono que temos, infância da doença. 
Uma velhice que nos acompanha desde a infância da doença. 

  

alberto caeiro




14 dezembro 2014

alberto caeiro / o meu olhar

  
II

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo.  Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender ...

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)                  
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...


alberto caeiro
o guardador de rebanhos




23 novembro 2014

alberto caeiro / a neve



A NEVE PÔS uma toalha calada sobre tudo.
Não se sente senão o que se passa dentro de casa.
Embrulho-me num cobertor e não penso sequer em pensar.
Sinto um gozo de animal e vagamente penso,
E adormeço sem menos utilidade que todas as acções do mundo.



alberto caeiro