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12 novembro 2016

al berto / panos estendidos



[5]

Panos estendidos sobre os animais mortos
névoa
escondendo a paisagem onde caminha o corpo
que esqueceste no limiar da manhã

senta-te na cama - toca nos animais
solta-os e vais ver que a paisagem gravou
sombras nos olhos -fecha-os
para que tudo arda com a intensidade de um astro

dá as mãos e o coração
às feras do crepúsculo - quando o termómetro
marcar 39 e meio e nas pálpebras se abrirem
charcos de trevas... mas

por agora
fica sossegado -bebe o leite quente
aconchega as mantas - dorme
com o fio da gadanha enrolado ao pescoço



al berto
o último coração do sonho
editora quasi
2000





23 outubro 2016

al berto / filhos de rimbaud



IV

Um rasgão de luz sobre a pele, dormes na seiva doce das manhãs.
Mas sabes que só há repouso para o sofrimento
quando se entra no primeiro dia dos dias sem ninguém.

A dor, a perna amputada - a mapa da abissínia.

O sol enterra-se nas areias.

Viajo, sem me mexer desta enxerga branca.
Tento encontrar espaço para a lucidez do meu silêncio.
No lugar do poema coalha o ouro das geadas, e os animais
são formas etéreas que se me colam ao rosto.

O que morrer, quase não faz falta...

Dantes ouvia o mar... bastava encostar a cabeça ao peito um do outro.
Mas um homem em cujo coração esteja concentrada
toda a fúria de viver, será um homem feliz?

Não sei se posso querer alguma eternidade... não sei...
... o que vejo já não se pode cantar.

Que horas serão dentro do meu corpo?
Que mineral vermelho jorraria se golpeasse uma veia... não sei...
... o que vejo já não se pode cantar.

Lembro-me duma cabeça rebelde flutuando junto à janela.
Mas a casa está repleta de gemidos, vai amanhecer,
não me lembro de mais nada.

Recomeço a fuga, a última, e nela hei-de morrer de olhos abertos,
atento ao mínimo rumor, ao mais pequeno gesto -
atento à metamorfose do corpo que sempre recusou o aborrecimento.
O que vejo já não se pode cantar.
Caminho com os braços levantados, e com a ponta dos dedos
acendo o firmamento da alma.

Espero que o vento passe... escuro, lento -
então, entrarei nele, cintilante, leve... e desapareço.


al berto
filhos de rimbaud
revista ler
abril de 1997





24 julho 2016

al berto / filhos de rimbaud


III

Os dias estão cheios de cartas e recomendações,
de amigos que partem para sempre, ou adoecem, de recados e de intrigas,
de contas intermináveis, de ouro, de corpos, de fortuna e de infortúnios.
De morte, e de cães feridos a uivar à porta da desolação.

Uma espécie de miséria e de orgulho, escorrem no fundo de mim.
E talvez seja a mistura venenosa da miséria com o orgulho que me há-de perder...
Não tenho mais nada a dizer. Os poemas morreram.

Fugir tornou-se uma obsessão,
ou então é a melhor maneira de encarar o desespero.
Bebi águas inquinadas. Vi o corpo suspenso no rebordo dos poços,
o coração batendo descontrolado.
Mas a morte, quando se aproxima, é uma coisa simples...
vem comer à mão a cinza melodiosa dos dias.

Por isso sei que, ao amanhecer, posso perguntar:
Quantos africa murcharam na boca do amor?
Quantas feras despedaçadas foram comidas ao entardecer?
Quantos homens conseguiram apaziguar o relâmpago da paixão?
Quantos desejos ficaram abandonados na escuridão intacta dos quartos?
A qual dos demónios me vender?
Que besta suja será preciso adorar?
Em que sangue contaminado mergulharei a língua?
Que fogo estranho é este? - que devora a beleza interior das coisas...
Que mentira me poderá salvar?

Uma golada de veneno e eis que se acende o talento.
O rumor precioso das sílabas. O choro e o riso.
O brilho gelado das imagens.
(Então), Ergo o cachimbo e fumo um tempo futuro,
ajeito o cinturão onde guardo o ouro - e vou pelo engano das palavras...
Descubro a febre, a ânsia do eterno viajante.

Abro as mãos, solto as borboletas e os pássaros,
que dizem ser a alma dos mortos... um espelho onde não me reconheço...
mas o pior é que nunca acreditei no que me disseram, e parti o espelho.
O azar nunca mais me largou, e também não posso dizer
que os negócios me tenham corrido bem...
Foi maldição, dizem.

Paciência. Mas não há maldição sem desejo - e eu não paro de desejar,
sôfrego... capaz de arriscar a vida e a razão. Ou de matar.


al berto
filhos de rimbaud
revista ler
abril de 1997


23 abril 2016

al berto / regresso às histórias simples


5

eis-me acordado
com o pouco  que me sobejou da juventude nas mãos
estas fotografias onde cruzei os dias
sem me deter
e por detrás de cada máscara desperta
a morte de quem partiu e se mantém vivo

a luz secou na orla desértica da cidade
escrevo para sobreviver
como quem necessita partilhar um segredo

este corpo em que me escondi
gastou-se

quantas noites permanecerão intactas
no fundo do mar? o rosto ainda jovem
foi o tesouro de seivas que me entonteceu

pelo corpo condeno-me à vida
de susto em susto à inutilidade da escrita

mas eis-me acordado
muito tempo depois de mim
esperando por alguma fulguração do corpo
esquecido
à porta do meu próprio inferno


al berto
regresso às histórias simples
o medo
assírio & alvim
1997



04 fevereiro 2016

al berto / lisboa



lisboa
por tràs dos muros da cidade
no seu coração profundo de alicerces
de argilas e de sísmicos arroios - cresce uma voz
que sobe e fende a brandura das casas

da escrita dos enumeráveis povos quase
nada resta - deitas-te exausto na lâmina da lua
sem saberes que o tejo te corrói e te suprime
de todas as idades da europa


mais além - para os lados do corpo - permanece
a tosse dos cacilheiros os olhos revirados
dos mendigos - o tecto onde um navio
nos separa de um vácuo alimentado a soro


plátanos brancos recortam-se luminescentes no olhar
de quem nos olha contra um céu desesperado - jardim
de iris açucenas palmeiras cobertas de rocio e
a ponte que nos leva aos campos do sul - lisboa



lugar derradeiro do riso
que já não te pode salvar do cemitério dos prazeres



e morres
carregado de tristezas e de mistérios - morres
algures
sentado numa praceta de bairro - o olhar fixo
no inferno marítimo das aves

  
al berto







18 outubro 2015

al berto / retrato de fugitivo por paulo nozolino


caminha pela solidão nocturna dos quartos de hotel
e de fotografia em fotografia chega exausto
ao minucioso poema a preto e branco
mas já não o surpreende a violenta visão do mundo
este lento destroço que um líquido sussurro de prata
revela a partir de iluminada fracção de segundo

e bebe
e ama
e foge de si mesmo
com a leica pronta a ferir como uma bala ecoando
no fundo da memória um néon uma pedra
uma arquitectura de luz e sombra ou um deserto
onde se debruça para retocar os dias com um lápis
na certeza que sobreviverá a estes perfeitos acidentes
e estes restos de corpos a pouco e pouco turvos
pelo tempo pelo sono ou pela melancolia

mas regressa sempre à transumância das cidades
quando a alba do flash prende o furtivo gesto
sobre o papel fotográfico morre o misterioso fugitivo
depois
vem o medo
que se desprende do olhar imobilizado e do rosto
nasce uma vida de infinito caos



al berto
transumâncias
o medo
assírio & alvim
1997



11 setembro 2015

al berto / o domador de luas



estamos encostados a uma roulotte bebemos sangria
conversamos enquanto queimamos a noite
junto ao mar
o vento fresco surpreende-nos com as mãos nervosas
em redor dos copos embaciados a ternura dum olhar
não chega para iludir a embriaguez dos amores imperfeitos

sei que possuis ainda alguma juventude nesse sorriso
eu já só embebedo os lábios viciados pelas palavras
pouco tenho a dizer-te
toco-te no ombro faço promessas e tu ris
enquanto descobrimos no silêncio cúmplice do vinho
treme uma teia de luminoso sal onde a noite cai
sobreviveremos ao desgaste do amor

bebemos mais
para que haja só desejos e não amor entre nós e
o rapaz que tem a mania de espetar uma faca loura
no ombro do mar
La vie est une gare, je vais bientôt partir,
je ne dirai pas où.
calei-me
sabendo que me conduzirias até casa pelo caminho da praia
cambaleantes
e enquanto eu não conseguir abrir de novo os olhos
não partirás tenho a certeza
com a tua jaula cheia de luas mansas
apaziguadas



al berto
o medo
assírio & alvim
1997




08 agosto 2015

al berto / amor dos fogos



...vêm sôfregos os peixes da madrugada
beber o marítimo veneno das grandes travessias
trazem nas escamas a primavera sombria do mar
largam minúsculos cristais de areia junto à boca
e partem quando desperto no tecido húmido dos sonhos

... vem deitar-te comigo no feno dos romances
para que a manhã não solte o ciúme
e de novo nos obrigue a fugir...
... vem estender-te onde os dedos são aves sobre o peito
esquece os maus momentos a falta de notícias a preguiça
ergue-te e regressa
para olharmos a geada dos astros deslizar nas vidraças
e os pássaros debicam o outono no sumo das amoras...
... iremos pelos campos
à procura do silente lume das cassiopeias...

  

al berto



12 julho 2015

al berto / noutros tempos



noutros tempos
quando acreditávamos na existência da lua
foi-nos possível escrever poemas e
envenenámo-nos boca a boca com vidro moído
pelas salivas - noutros tempos
os dias corriam com a água e limpavam
os líquenes das imundas máscaras



al berto
horto de incêndio
assírio & alvim
1997




15 junho 2015

al berto / o esconderijo do homem triste



Não sei o que me aconteceu para ficar tão triste.
Lembro-me de ter percorrido meio mundo à procura de imagens.
Tinham- me dito: é no movimento incessante de quem viaja que encontrarás
a imobilidade que desejas.

Mas eu não sabia para onde ir. Deambulei anos a fio, e nunca encontrei as imagens
que queria. Gastei as parcas forças que tinha neste trabalho,
até que um dia me perdi junto ao mar.

Resolvi construir, ali mesmo, uma casa.

Tencionava não sair mais daquele lugar onde me perdera. Imobilizar- me,
viver e envelhecer dentro de quatro paredes nuas erguidas pelas minhas mãos.
Morrer frente ao mar, sozinho, como num romance que lera havia anos.
Esperar que a casa se esboroasse e me servisse, por fim, de túmulo.

Assim não aconteceu. Algum tempo depois, a casa transformou-se subitamente
em prisão. E talvez tenha sido isso que me pôs, assim, triste para sempre.
Custava-me a crer que aquilo que eu próprio construíra acabasse de me atraiçoar.

Assustei-me e fugi nessa mesma noite. Ignoro o que se passou com a casa.
Não sei se ainda existe... o que sei é que a meio daquela fuga desesperada
ocorreu-me o que me levaria, enfim, a encontrar o esconderijo para a minha
imobilidade.

É desse lugar iluminado que, hoje, vos falo.


Fui ter com um fotógrafo meu amigo e pedi-lhe para me retratar.
Ele acendeu um foco de luz. Sentei-me no centro dele.
A máquina disparou sem cessar.

Gesticulei, abri os braços, mexi-me muito - como se soubesse
que nunca mais o voltaria a fazer.

Quando o meu amigo mergulhou o papel fotográfico no revelador,
eu também mergulhei. Mas devo ter desmaiado uns segundos, talvez minutos,
porque ao retomar consciência senti as pernas e os braços dormentes
 - e todo o meu corpo estava mole.

Um véu de luz toldou-me a visão. Ceguei por instantes, mas não foi
uma sensação desagradável. Depois, o corpo começou a ondear,
a impregnar-se no papel e a coincidir com o retrato que o meu amigo fizera de mim.

Segundos mais tarde uma pinça metálica tirava-me do revelador. Senti, então,
a frescura da água - e toda a superfície da folha de papel, o meu novo corpo,
brilhou. Em seguida deixei-me entorpecer na temperatura tépida,
voluptuosa, do fixador.

Tinha encontrado o esconderijo.


E aqui estou, diante de quem me visita e olha. Apesar de não ter deixado de ser
um homem triste, adquiri a vantagem de estar sentado, e de já não precisar
de fugir ou desejar seja o que for.

Mas o pior momento do dia é aquele em que nos separamos. Não consigo dormir.
Fico noite fora com a minha solidão - e quem esteve a ver-me parte
com o susto de continuar a existir.

Nenhum de nós é capaz de murmurar: fica comigo e toca-me. E a noite cai,
de certeza, mais escura para quem parte.

Eu sou apenas a imagem do que fui. Não sinto nada.


Certa vez, um homem e uma mulher pararam diante de mim. Olharam-me muito tempo.

Aproximaram-se, afastaram-se, voltaram a aproximar-se do vidro que me protege. O nariz da mulher quase me tocou nos joelhos.

De repente, a mulher inclinou a cabeça, sobressaltou-se e disse:

- Zé, perdi o vidro do relógio.

O homem baixou-se e procurou-o. Quando o encontrou, deu-lho. Mas ela argumentou:

- A culpa foi tua. Eu não queria vir aqui.

O homem, muito sério, respondeu-lhe.

- Francamente, Fátima, não te toquei no pulso. Não mexi no tempo. Nunca mexo no tempo...

Outras vezes, quando não está ninguém olhar para mim, ponho-me a cismar:

A luz é o meu túmulo.

Em tempos, os meus gestos tiveram o rigor da abelha que rouba o pólen à flor.
Com esses gestos quis construir um espaço para o silêncio. Uma morada
onde fosse possível ignorar o mundo, ou esquecê- lo.

De vez em quando, aceito ainda o mistério das palavras que me cercam
e não coincidem, em nada, com a realidade. Eu só quis celebrar a vida.
Encontrar o esconderijo onde fosse possível um derradeiro acto de paixão.
O esconderijo onde pudesse, de novo, tocar teu rosto
e recusar a aridez da calúnia.

Mas a luz é o meu túmulo.

A pouco e pouco incendiaram-se os negros profundos, o círculo luminoso
aprisionou-me, e as mãos gesticularam sem sentido. O interior das paisagens
guardou a tua ausência. E numa última visão a madrugada
irrompeu do mar adormecido.

As mãos abriram-se novamente,
quando o dia começou a devorar a nudez do corpo.

Comovido, perdi a voz.

Não podia chamar-te, lembro-me, por isso desatei a escrever o teu nome
nas paredes da cidade. Tempo perdido. Já não podias ouvir-me nem ler-me.
Foi quando desejei, com ardor, este esconderijo.

Aqui, pelo menos, respiro ar condicionado, e um foco de luz
simula a eternidade dos dias.

Não há emoções, nem palavras ditas em voz alta. Não acontece nada,
nem se ouve respiração alguma.


Quem me visita diz coisas fantásticas a meu respeito. Nunca confirmo
nem desminto. Limito-me a ouvir e calo-me. Porque há coisas que devem correr com o tempo e, mais tarde ou mais cedo, nele se apagam.

É claro que também há coisas guardadas na minha memória de papel.
Mas essas, já não tenho a certeza de que alguém as tenha dito
ou eu as tenha, de facto, ouvido.

Por vezes ponho-me a sorrir, mas ninguém consegue ver que sorrio,
porque o retrato que me esconde - como eu - está morto e desfocado.

E a luz é o nosso túmulo.



al berto
o esconderijo do homem triste
"ver", círculo de leitores
lisboa, verão 1992, n.º 19






01 março 2015

al berto / através da oblíqua chuva de cal



[2]

Através da oblíqua chuva de cal a cabeça
rasga a escuridão do quarto - nódulo luminoso
em cima da mesa de água - desfaz-se a visão

e o dia vem poroso húmido
repleto de pequenas pedras acesas por dentro
réstias de sono - bruma calcária tolhendo
a fala

escorre dos frascos pendurados num tripé
gota a gota
por tubos finos e transparentes o líquido
de fogo

e o destino parece um gatafunho
feito num pesadelo de infância - cresces
naquele emaranhado de riscos e
pela janela avistas o cedro em chamas - depois
fechas os olhos com força
invade-te o cansaço - pões-te a odiar
a piedade dos outros por ti


al berto
o último coração do sonho
quasi
2000




01 julho 2014

al berto / os amigos



no regresso encontrei aqueles
que haviam estendido o sedento corpo
sobre infindáveis areias

tinham os gestos lentos das feras amansadas
e o mar iluminava-lhes as máscaras
esculpidas pelo dedo errante da noite

prendiam sóis nos cabelos entrançados
lentamente
moldavam o rosto lívido como um osso
mas estavam vivos quando lhes toquei
depois
a solidão transformou-os de novo em dor
e nenhum quis pernoitar na respiração
do lume

ofereci-lhe mel e ensinei-os a escutar
a flor que murcha no estremecer da luz
levei-os comigo
até onde o perfume insensato de um poema
os transmudou em remota e resignada ausência



al berto
o medo
assírio & alvim
1997



02 maio 2014

al berto / truque do meu amigo da rua



ao acaso encontrei-te encostado a uma esquina
olhar vazio varrendo a multidão, parei
sorri e tu vieste, fomos andando
os ombros tocavam-se, em direcção a casa
pediste-me para tomar um duche, eu deitei-me
ouvi o barulho da água resvalando pelo teu corpo sujo da cidade e de engates
sujo pelos dias e noites e mais dias que não tive
esperei-te deitado, outro cigarro
e ainda espero
gosto dos corpos que riem, frescos
rasgam-se à ternura nocturna dos dedos, e ao desejo
húmido da boca, que sempre percorre e descobre

tacteio-te de alto a baixo
reconhecendo-te num gemido que também me pertence, no escuro
contaste-me uma improvável aventura de tarzan, ouvia-te
e no silêncio do quarto fulguravam aves que só eu via
sorri ao enumerar os restos que a manhã encontraria pelo chão
manchas de esperma, ténis esburacados, calças sujíssimas, blusão cheio de autocolantes, peúgas encortiçadas pelo suor
as cuecas rotas, sujas de merda
e tuas mãos, recordo-me
sobretudo de tuas mãos imensas sobre o peito
teu corpo nu, à beira da cama, no sossegado sono

  
al berto
alguns truques de ilusionismo
1979/ 80



21 dezembro 2013

al berto / a escrita é a minha primeira morada de silêncio



a escrita é a minha primeira morada de silêncio
a segunda irrompe do corpo movendo-se por trás das palavras
extensas praias vazias onde o mar nunca chegou
deserto onde os dedos murmuram o último crime
escrever-te continuamente... areia e mais areia
construindo no sangue altíssimas paredes de nada


esta paixão pelos objectos que guardastes
esta pele-memória exalando não sei que desastre
a língua de limos


espalhávamos sementes de cicuta pelo nevoeiro dos sonhos
as manhãs chegavam como um gemido estelar
e eu persegui teu rasto de esperma à beira-mar


outros corpos de salsugem atravessam o silêncio
desta morada erguida na precária saliva do crepúsculo

  

al berto



01 dezembro 2013

al berto / sida



"aqueles que têm nome e nos telefonam
um dia emagrecem - partem
deixam-nos dobrados ao abandono
no interior duma dor inútil muda
e voraz

arquivámos o amor no abismo do tempo
e para lá da pele negra do desgosto
pressentimos vivo
o passageiro ardente das areias - o viajante
que irradia um cheiro a violetas nocturnas

acendemos então uma labareda nos dedos
acordamos trémulos confusos - a mão queimada
junto ao coração

e mais nada se move na centrifugação
dos segundos - tudo nos falta

nem a vida nem o que dela resta nos consola
e a ausência fulgura na aurora das manhãs
e com o rosto ainda sujo de sono ouvimos
o rumor do corpo a encher-se de mágoa

assim guardamos as nuvens breves os gestos
os invernos o repouso a sonolência
o vento
arrastando para longe as imagens difusas
daqueles que amámos mas não voltaram
a telefonar"


al berto
horto de  incêndio
assírio & alvim
1997




30 setembro 2013

al berto / filhos de rimbaud



II


Não consigo dormir, nunca mais. Ando de um lado para o outro.
Canso o corpo, enquanto a língua segrega uma saliva exterminadora.
Lá fora, dentro da noite, os chacais... as hienas cercam a casa.
Mas o pior é este chacal que me esfarrapa as vísceras,
esta hiena que me devora o sonho.

Pela janela vejo a linha crepuscular da duna.
Um novo corpo liberta-se do meu e caminha fora de mim
-vejo-o afastar-se em direcção aos nevoeiros das cidades.
Sei, neste instante, que nenhum abraço chega para atenuar a dor da separação.
Afastados - tudo o que nos resta é começar a imitar a vida um do outro.
O que dissemos perdeu o sabor e o sentido.

Harrar, Aden, Lisboa, este silêncio... capaz de ordenar e desordenar o mundo...
o canto sublime das miragens.
Mas vai chegar o inverno, e a tristeza dos dias começa a zumbir à roda da cabeça.
Abri a janela. Avisto uma nesga de céu limpo.
Lembro-me de quando trocava um sorriso por um verso,
ou por um insulto. Imitávamos assim a felicidade...

(Mas) O sol fulmina a memória. Limpa-a da crueldade do passado.
(E) A vida, aqui, reduz-se a efémeros passos, surdas gargalhadas,
ideias que se evaporam lentamente.
Enfim, o mundo não é assim tão grande...
E a vida, afinal, é como as orquídeas - reproduz-se com dificuldade.

Mas estou cansado. Os olhos fecham-se-me com o peso das paixões desfeitas.
Imagens, imagens que se colam ao interior das pálpebras -
imagens de neve e de miséria, de cidades, de fome e de violência, de sangue,
de aquedutos, de esperma, de barcos, de comboios, de gritos...
talvez uma voz... o desejo de um sol impiedoso, sobretudo enquanto dormia.
E embarquei num cargueiro, desertei em Java, pensei mesmo construir uma casa
Mas não foi possível.

Ainda vejo aquelas árvores cobertas de ossos luminosos,
e a duna incendiada, o deserto onde posso continuar a reconstruir o universo.
Escavo no coração um poço de sal, para dar de beber ao viajante que fui.
Deixo o vento arrastar consigo a infindável caravana de ilusões.
E digo: que tudo se afogue na gordura das manhãs, que tudo silencie...
e uma língua de fogo atinja os livros que não escreverei.



al berto
filhos de rimbaud
revista ler
abril de 1997