16 agosto 2025

natália correia / cântico do país emerso

  
I
 
ENQUANTO que no mar das Caraíbas
Os albatrozes os peixes-voadores
Os sargaços a bússola a espuma
E a nossa Senhora dos Navegadores
Se punham ao serviço de uma
Nação acabada de nascer,
 
Terra transportuguesa de longo curso
Onde os homens andam de tronco nu
E a barba produz ardor como a urtiga
Onde o instinto lê no voo das aves
Como uma sibila e o medo é abandonado
No país das sombras do urubu:;
 
Terra onde as decisões têm a rapidez
Do leopardo e a fome desenha no ar
Uma hipérbole arquejante; terra onde
A fraternidade é rude como a flor do cardo
E os homens usam a alma como um instrumento cortante;
 
Terra onde por enquanto não há
Encontro às seis horas no bar
Nem estilo de vida nova-iorquino
Nem razões para um homem se casar
Nem o fim-de-semana arrabaldino
Onde não há vivendas para alugar
Com cadeiras de verga sobre a relva;
 
Selva atónita ainda pela desfloração
O violento estupro dos machados
As panteras tensas da iniciação
O batuque dos seus sentidos alterados
Os tigres encolhidos da contracção uterina
Os gamos assustados dos seus peitos
As gazelas da sujeição à força masculina
E o elefante sossegado dos instintos satisfeitos…
 
Terra saudada ainda pelas
Estrelas-do-mar e outras estrelas
Meninas dos olhos dos marujos
Extasiados do avesso sempre
Que um português se fez ao mar
Não para descobrir a Índia
(Isso era o começo de um mundo
Com ondas por fecundar) mas
Para fazer um filho às vagas
Fêmeas de gosto salgado e de ancas
Largas. Mulheres que aderem à pele
Como a salsugem. As únicas
Que verdadeiramente se estorcem e rugem;
 
 
 
natália correia
cântico do país emerso
antologia poética
dom quixote
2018





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