29 dezembro 2024

paul bowles / cena III

 
 
 
Às vezes a febre regressa e eu posso ver as montanhas,
a manhã cheia de freiras que passam
e as terríveis seringas,
as árvores rapaces, as falsas cataratas brilhando com aranhas,
as vinhas do silêncio.
Vejo as mesmas montanhas surdas, com as suas bocas cobertas de neve,
e movo um pouco os meus dedos; ainda assim,
preciso de ajuda.
 
Às vezes a febre vagueia ao anoitecer pelos subúrbios.
Às vezes há apenas uma montanha, meso por cima das nossas cabeças.
Ao meio-dia começa a chover. Os cavalos escondem-se entre as rochas,
e o mar idiota lá está.
De vez em quando preciso de ajuda.
 
«Naquele dia dois mil homens morreram nessa praia infinita.»
 
                Para nós: tubarões, estanho, água estagnada.
                Oito doenças à noite
                enquanto o escorpião se agarra ao tecto.
                Para nós: arame farpado, bocas abertas, sangue seco,
                as cabeças peludas das tarântulas
                e o constante olho cego
                do tempo, congelado no ar.
 
                O vento cai em pedaços
                pelos caminhos da montanha.
                Temos de gritar sem tréguas –
                aquele que pára está perdido.
 
 
                                                  1938

 
 
paul bowles
poemas
trad. josé agostinho baptista
assírio & alvim
2008
 



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