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25 novembro 2012

josé tolentino mendonça / quatro tiros no coração





Certas manhãs chegava
esmagado pela luz
longo, frívolo, ofensivo
qualquer gesto aludia
a uma espécie de tremor
a tristeza daqueles que não pertencem
a lugar algum

vivia tudo num instante
a solidão, os rancores
as alegrias dos outros
o silêncio do Outono

nunca o amor tocara o seu corpo
com a intensidade do medo
tornou-se parte de um rito
nem perto, nem longe
da palavra justa

ele só pedia
«não me digam nada»




josé tolentino mendonça
baldios
assírio & alvim
1999



10 junho 2012

josé tolentino mendonça / uma coisa a menos para adorar





Já vi matar um homem
é terrível a desolação que um corpo deixa
sobre a terra
uma coisa a menos para adorar
quando tudo se apaga
as paisagens descobrem-se perdidas
irreconciliáveis

entendes por isso o meu pânico
nessas noites em que volto sem razão nenhuma
a correr pelo pontão de madeira
onde um homem foi morto

arranco como os atletas ao som de um disparo seco
mas sou apenas alguém que de noite
grita pela casa

há quem diga
a vida é um pau de fósforo
escasso demais
para o milagre do fogo

hoje estive tão triste
que ardi centenas de fósforos
pela tarde fora
enquanto pensava no homem que vi matar
e de quem não soube nunca nada
nem o nome

  


josé tolentino mendonça
baldios
assírio & alvim
1999

12 março 2012

josé tolentino mendonça / moradas provisórias





Passava aí as férias
debruçado sobre o mar
pensava se haveria no mundo
caminhos que nos conduzam

não chegava a conclusão
ou nem dava por ela
hesitante nessas moradas
de regras tão imprecisas

existe um momento
pouco importa qual
em que se reúnem ao acaso
diante de nós
todas as condições de uma vida
desesperada




josé tolentino mendonça
baldios
assírio & alvim
1999




19 novembro 2011

josé tolentino mendonça / os versos






Os versos assemelham-se a um corpo
quando cai
ao tentar de escuridão a escuridão
a sua sorte

nenhum poder ordena
em papel de prata essa dança inquieta





josé tolentino mendonça
baldios
assírio & alvim
1999



03 julho 2011

josé tolentino mendonça / hotel inglês

 
.
.
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Aprendo muito quando o verão acaba
para lá das coisas habituais
o sinal ardente, primitivo:
uma espécie de abandono sem socorro
diferente da rendição
 
apercebo-me do frio pela primeira vez
no vento, na água
alugamos bicicletas para chegar à costa
à procura do que resta
uma estação
onde as imagens não naufraguem
a cada instante

também eu me recuso a dizer apenas
o que pode ser dito
 




josé tolentino mendonça
a que distância deixaste o coração
assírio & alvim
1998
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.
.
 

20 janeiro 2010

josé tolentino mendonça / side of the road







Ateei o fogo
quebrei as portas de bronze
desfiz sinais nas pedras lisas
enlouqueci os adivinhos

minha língua tornou-se tão
estranha
que não se pode entender

as multidões vitoriosas
levantam em teu nome grinaldas
tamboris e danças
despojos de várias
cores

tomo o caminho por onde vieste
tropeçando como os que não
têm olhos






josé tolentino mendonça
a estrada branca
assírio & alvim
2005







02 março 2009

josé tolentino mendonça / me and my brother








Percorria os lugares daquela fotografia
a muralha de silvas, a quinta reencontrada
os finais de ano
e aquilo que depois não está
onde antes existiu

Tinha esquecido para que serve
a infância
não é uma terra protectora
ao contrário do que dizem
com os seus céus que vemos cair
os fragmentos selvagens
em que mais tarde pensamos
vezes sem conta
o pudor já então reconhecível
que nos faz trair a vida
um pouco como tudo isto










josé tolentino mendonça
a noite abre meus olhos
(poesia reunida)
assírio & alvim
2006








26 fevereiro 2007

a casa onde às vezes regresso




a casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reúno baldes, estes vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos


durmo no mar, durmo ao lado de meu pai
uma viagem se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo


tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração.








josé tolentino mendonça
“a que distância deixaste o coração”
assírio & alvim
1998