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22 maio 2013

josé de almada negreiros / a taça de chá



O Luar desmaiava mais ainda uma máscara caída nas esteiras
bordadas. E os bambus ao vento e os crisântemos nos jardins
e as garças no tanque, gemiam com ele e adivinharam-se o fim.
Em roda tombavam-se adormecidos os ídolos coloridos e os
dragões alados. E a gueixa, porcelana transparente como a
casca de um ovo da Íbis, enrodilhou-se num labirinto que nem
os dragões dos deuses em dias de lágrimas. E os seu olhos ras-
gados, pérolas de Nanquim a desmaiar-se em água confundiam-se
cintilantes no luzidio das porcelanas.

Ele, num gesto último, fechou-lhe os lábios co´as pontas dos dedos,
e disse a finar-se: - chorar não é remédio; só te peço que não me
atraiçoes enquanto o meu corpo for quente. Deixou a cabeça
nas esteiras e ficou. E ela, num grito de graça, ergueu alto os braços
a pedir o Céu para Ele, e a saltitar foi pelos jardins a sacudir as mãos,
que todos os que passavam olhavam para Ela.

Pela manhã vinham os vizinhos em bicos dos pés espreitar por entre os
bambus, e todos viram acocorada a gueixa abanando o morto com um
leque de marfim.

A estampa do pires é igual.



josé de almada negreiros



29 setembro 2012

josé de almada negreiros / rosa dos ventos


  


Não foi por acaso que o meu sangue que veio do sul
se cruzou com o meu sangue que veio do norte
não foi por acaso que o meu sangue que veio do oriente
encontrou o meu sangue que estava no ocidente
não foi por acaso nada do que hoje sou
desde há muitos séculos se sabia
que eu havia de ser aquele onde se juntariam todos os
                                                    [ sangues da terra
e por isso me estimaram através da História
ansiosos por este meu resultado que até hoje foi sempre
                                                                     [ futuro.

E aqui me tendes hoje
incapaz de não amar a todos
um por um
que todos são meus e me pertencem
e por isso mesmo não lhes perdoo faltas de amor!
Mas porque maldição me não entendem
se eu os entendo a todos?
Eu sei, eu sei porquê:
Falta-lhes a eles terem, como eu, a correr-lhes pelas veias
                                            [todos os sangues da terra.
mas, ó maldição que pesa sobre mim,
cada um dos sangues da terra não me inclui entre os seus!
Não pertenço a nenhum sangue de raça
sou da raça de todos os sangues,
o meu amor não tem condições que excluam criaturas
não é amor natural
é amor buscado por boas mãos
desde o primeiro dia das boas mãos
através de tempos desiguais e de estilos que se contradizem
com os olhos no futuro melhor
e a esperança convicta de que se ainda hoje não são todos
                                                                      [como eu
é questão apenas de a humanidade viver outra vez
tanto como viveu até hoje
ou de mais ainda,
é questão de mais tempo,
ainda mais tempo,
é o tempo que há-de fazer
o que apenas se pode atrasar.

Entretanto deixai que se convençam
aquelas experiências que ainda não se tinham feito
e ainda tão longe do realismo da redondeza da terra!
Entretanto deixai que os números se espantem
de que a totalidade seja sempre ainda mais pr'além!
Deixai os números instruir-se da verdadeira capacidade
                                                               [do infinito
deixai que a ciência prossiga em sua loucura galopante
explicando todas as suas falhas com desculpas geniais
enquanto não esgota a sua especialidade,
a especialidade de nos meter a todos nela,
o que é um estilo
um estilo mais
e não o último
porque nenhum estilo é o último senão a liberdade!

Deixai que milhões se juntem para formar uma força
enquanto outros isolados se reconheçam o bastante para
                                                          [ ter a liberdade,
deixai-os a ambos que nada os deterá,
eles são duas metamorfoses minhas
das quais ainda conservo uma vaga memória.

Tal qual eles agora, eu já estive num e noutros antigamente,
quando na História
nos altos e baixos da minha ascendência
tomei também cada metamorfose minha
por minha definitiva realidade.
Deixai primeiro que o sangue deles
leve tanto tempo a dar a volta ao mundo
como o que levou o meu sangue
ou a História do Homem.

Deixai que a natureza consinta ainda em parcialidades
que o tempo consente temporariamente.
Deixai que o ardente desejo de totalidade, não possa ainda
                      [funcionar senão pelo meio ou pelas pontas.
Deixai que cada especialidade acabe de vez com a sua
                                                         [impertinência
Deixai que os sangues mais intactos morram por isolamento
ou espalhem morte e terror com o verdadeiro medo,
                                            [a certeza de acabar.
Deixai que a Democracia e a Aristocracia
se cansem de não caber isoladas em parte nenhuma
já que não cabem juntas no nosso entendimento.
Deixai que Uma e Outra esgotem todos os quadriláteros
onde a Democracia não cabe
e, por conseguinte, a Aristocracia não sai.

Deixai sumir-se até ao fim a confusão de Nobreza e
                                  [Fidalguia com Aristocracia.
Deixai que a Democracia repare que é um corpo sem
                                                               [ cabeça
e que a Aristocracia uma cabeça sem corpo.
E é o corpo que há-de buscar a cabeça
ou a cabeça que há-de buscar o corpo?
Esperai que venha esta resposta.

Entretanto deixai que a liberdade também esteja à espera
                                                            [desta resposta.
Deixai que se expliquem por si coisas terrenas que nada
          [mais ultrapassem do que o nosso entendimento
condenado a acreditar nos sentidos
mais do que em todo o trajecto desde o princípio do
                                                  [mundo até hoje.






josé de almada negreiros
poesia
estampa
1971


10 junho 2011

josé de almada negreiros / a cena do ódio

.
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(…)

Eu creio na transmigração das almas
por isto de Eu viver aqui em Portugal.
Mas eu não me lembro o mal que fiz
durante o Meu avatar de burguês.
Oh! Se eu soubesse que o Inferno
não era como os padres mo diziam:
uma fornalha de nunca se morrer...
mas sim um Jardim da Europa
à beira-mar plantado...
Eu teria tido certamente mais juízo,
teria sido até o mártir São Sebastião!
E inda há quem faça propaganda disto:
a pátria onde Camões morreu de fome
e onde todos enchem a barriga de Camões!
Se ao menos isto tudo se passasse
numa Terra de mulheres bonitas!
Mas as mulheres portuguesas
são a minha impotência!
 
(…)




josé de almada negreiros
excerto de “a cena do ódio”
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27 janeiro 2011

josé de almada negreiros / mãe!






Mãe!

Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei!
Traze tinta encarnada para escrever estas coisas!
Tinta cor de sangue, sangue verdadeiro, encarnado!

Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!

Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens!
Eu vou viajar. Tenho sede! Eu prometo saber viajar.

Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um.
Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me ao teu lado.
Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei,
tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.

Mãe! ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado!
Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa.
Eu também quero ter um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.

Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!

Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!






josé de almada negreiros
a invenção do dia claro