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15 junho 2024

hans-ulrich treichel / estação abandonada

 
 
O caminho pedregoso,
onde os autocarros azuis
moem os eixos, desde que o comboio
já não passa.
 
O braço negro de uma bomba
que deita uma sombra de forca.
 
Cardos de um cinza prateado
crescem como flores mágicas entre os
carris; o depósito de água
engole pó.
 
Que despedidas
poderia haver aqui,
que abraços.
 
 
 
hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994
 



23 janeiro 2024

hans-ulrich treichel / debaixo da oliveira



 
Que calor está aqui, tanto calor,
e parados os rios cinzentos
debaixo das pontes.
 
Se não houvesse oliveira,
esta exígua faixa escura,
não poderíamos ficar.
 
Teríamos de correr atrás dos ventos, seguir
a sombra das nuvens como os pássaros
em tempos de caça.
 
 
 
hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994
 




 

21 julho 2022

hans-ulrich treichel / ao atravessar a paisagem

 
Ao atravessar
a paisagem, penso: aqui, atrás
desta janela, a sombra
do homem, a minha sombra, aqui
nesta porta, a mulher, a minha mulher.
 
E ali a árvore,
o muro, a cova, plantada, levantado,
cavada por mim.
 
O bode ao pé da estaca,
preso, abatido por mim, o menino
de bicicleta, diante da cancela
fechada, o meu menino, a cancela
fechada por mim.
 
Ao atravessar
a paisagem, penso: aqui os
carris cintilantes, o
leito da via, o horizonte de fumo, deslocados,
ensaibrado, atravessado por mim.
 
 
 
hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994




17 maio 2022

hans-ulrich treichel / conversa debaixo das árvores

 
 
O haver ainda árvores
andorinhas
poderia ser um consolo
ainda que elas já não saibam
o que é florescer, voar
e que nós continuemos
na sombra imóvel
a encostar palavras a palavras
como se nada nos faltasse
 
 
 
hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994




 

31 março 2020

hans-ulrich treichel / o desmentido de sísifo


Sou saudável.
Barbeio-me todos os dias.
Visto uma camisa engomada.
Disto não abdico.
Só o pó me dá que fazer.
Tudo o resto é falso:
O monte onde vivo
não é tão alto como pensam.
Nem monte chega a ser.
E a pedra em breve
já só era o resto de uma pedra.
Há uns anos deixei-a
escorregar pelo cano abaixo.
Desde então aqui estou
a fazer declarações públicas.
Tudo o resto é falso.



hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994






09 maio 2016

hans-ulrich treichel / recordação do pai



Batia com a esquerda,
por vezes cego de raiva.
A direita estilhaçada até ao ombro
num campo de batalha russo.

Quando chovia
a luva preta cheirava a cabedal
e doía-lhe o braço perdido.

Se estava de feição dava-nos dinheiro
e deixava-nos enfiar-lhe o elástico branco
pela manga da camisa.

Mais ainda que a força da sua esquerda
e os rompantes da sua ira
temíamos
a sua ternura sem jeito.

Talvez até o amássemos,
sentindo-lhe escondido o medo da solidão.
Mas acabávamos sempre a fugir-lhe.

Melhor me lembro
desse braço postiço
com a mão de couro preto
do que lembro o seu rosto.

Ainda estou a vê-la
imóvel na toalha branca,
ao lado do prato,
com a carne já cortada:

Incapaz de violência,
e de uma dependência inexprimível.




hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994




16 junho 2014

hans-ulrich treichel / dias de brasa



Mas que calor!
Esfregamo-nos até doer
nos lençóis salgados
Eterna a hora
em que acordamos

Para através dos
olhos escaldantes
olharmos a luz
amarela suja, a ofuscante
ausência de árvores



hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994



18 abril 2014

hans-ulrich treichel / minotauro I



Quando eu ara novo errava
errava pelos longos corredores sem sombra
do meu palácio e uivava como o vento
nas florestas. Agora estou aqui, neste
chão arenoso, à espera: há-de vir alguém,
de machado à cintura, para me rachar a cabeça.
Mas eu só ouço a minha respiração arrastada e
às vezes um restolhar entre as pedras.
Cansado da espera e cego, como hei-de
encontrá-lo, a esse único hóspede?



hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994



14 janeiro 2014

hans-ulrich treichel / brecht no banho



Lá está o peito
chato, algo cavado,
gira a espuma em finos
flocos cinzentos, um dedo
preto do pé, um leve assobio, uma
tosse, o charuto:
Brecht no banho.

Em cuecas, é certo,
e no entanto lava-se, com
manha, mesmo aqui.



hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994



06 outubro 2013

hans-ulrich treichel / a fidelidade das palavras



A fidelidade das palavras
já não sonho com ela, vão
e vêem, fogem, troçam,
que terias, se não fôssemos nós,
na tua boca branca de calcário, na tua
língua seca, elas zumbem, sibilam,
até eu lhes dizer, a essas traidoras,
sonoras, ciciadas, mudas, que seríeis
vós se eu não insistisse
em seguir-vos o rasto leviano?

  

hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994



24 janeiro 2013

hans-ulrich treichel / recaída




De vez em quando uma recaída
na fumarada dos blues,
nos uivos do saxofone
de não sei quem.
De quando em quando um dos livros
que estão em cima do guarda-
-fato. Há dias Camus
caíu-me aos pés. Meu Deus,
que belos tempos, quando tudo
era ainda sem sentido e não
me doíam as cruzes.

  


hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994


21 maio 2012

hans-ulrich treichel / como joyce em trieste






Desço de carro pela margem do Arno,
com o livro de alemão sobre os joelhos, como
Joyce em Trieste, atravesso distraído
zonas de peões, vejo os meus ombros
em todas as montras, e é tudo, nem
danças nas praças, nem raparigas
com vestidos de seda, nos arbustos, Ulisses,
com ar de parvo, sorri embaraçado,
de que me servem as palavras?, tusso,
agradeço, isto não vale um chocolate,
e entro num café para morrer.




hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994



30 dezembro 2011

hans-ulrich treichel / regras da casa





Nunca omitir os infortúnios
e contar cada história até
ao fim. Tapar com panos
os espelhos; facas debaixo
da mesa. Consolar a coruja e
trinchar o morcego.
Nunca perder a raiva, aconteça
o que acontecer. Deixar entrar
quem quer que seja.





hans-ulrich treichel
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poetas em mateus
quetzal editores
1994




27 setembro 2009

hans-ulrich treichel / verão








De súbito, na rua, está
outra vez um calor inconcebível,
o matraquear das sandálias de pau, as raparigas
abrem as blusas, não me atrevo
a sair da minha pele hirta
de suor e suspiro pelo Inverno,
que tem o seu lado bom, escuridão eterna,
humidade salgada, botas pesadas como pedras,
e o desejo das blusas abertas,
sandálias de pau e luz.








hans-ulrich treichel
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quetzal editores
1994





20 março 2009

hans-ulrich treichel / esforço







O suor corre
em bica como se eu
cortasse troncos de árvore
e afinal eu só escrevo
um pequeno poema
muito frio







hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994




07 julho 2008

progressos na investigação do caos





Esteja à vontade,
trate-me só por eu
ou omita-me de todo.
Afinal ninguém sabe ao certo
onde começa o próximo.
Poderá dispersar-se,
mas permaneça deitado.
Feche os olhos
e não ouça nada.
Quando nada sentir,
tem de sentir o que sente.
Ou será que também é daqueles
que sangram a cada tiro?
O meu conselho é gorduras vegetais
e inteligência animal.
No entanto, tudo com medida
e sempre de cabeça inclinada.
O resto é bastante simples.






hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
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poetas em mateus
quetzal editores
1994





04 setembro 2007

debaixo da oliveira




Que calor está aqui, tanto calor,
e parados os rios cinzentos
debaixo das pontes.

Se não houvesse oliveira,
esta exígua faixa escura,
não poderíamos ficar

Teríamos de correr atrás dos ventos, seguir
a sombra das nuvens como os pássaros
em tempos de caça.








hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em Mateus
quetzal editores
1994






17 maio 2007

como se fosse a minha vida





De noite não escrevo cartas,
qualquer que seja a luz, para onde quer que seja.
E já não me assusta o elevador
vertiginoso, desde que o sono
me habituou à queda.

Na luz do fim da tarde agora brilha
para sempre a minha varanda amarela.
Campos salgados, colinas esburacadas,
já não me assustais.

Como se fosse a minha vida,
fecho as janelas, vou comendo
pão, poupo energia.










hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em Mateus
quetzal editores
1994










19 março 2007

ponto da situação





Um céu tão sujo,
desde há dias sem milagres, só barulho
nas ruas, automóveis imponentes,
em quem hei-de acreditar senão
no meu dentista, um ser
humano tem de ler os jornais,
dou uma dentada e pasmo, há anos
já o vento rugia a pedir clemência
e as chaminés tremem
ainda e sempre de felicidade.







hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em Mateus
quetzal editores
1994