Mostrar mensagens com a etiqueta yorgos seferis. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta yorgos seferis. Mostrar todas as mensagens

13 setembro 2014

yorgos seferis / última estação



Poucas foram as noites de luar de que gostei.
O a-bé-cê dos astros que se soletra
Tal como o traz o penar do dia que se fina.
Dele se tirando novos sentidos e novas esperanças, mais claramente pode ler-se.
Agora que aqui estou desocupado a meditar, poucas luas me ficaram na memória;
As ilhas, a dorida cor da Virgem, o lento declinar
Do luar nas cidades do norte, que por vezes lança
Nas ruas agitadas, nos rios, nos membros dos homens
Um pesado torpor.
Nu entanto, ontem à noite, neste nosso último cais
Onde aguardamos que amanheça a hora do regresso
Como uma antiga dívida, uma moeda que ficasse durante anos
No cofre dum avarento, e por fim
Chegasse o momento de pagar e se ouvissem
Os cobres a tilintar na mesa.
Nesta aldeia tirrena, por detrás do mar de Salerno
Por detrás dos portos do regresso, no fim
Duma borrasca de Outono, a Lua furou as nuvens
E as casas na encosta da outra margem fizeram-se esmalte.
Silêncios que a lua ama.

Também isto é um rosário de pensamentos. Um modo
De começarmos a falar de coisas que se confessam
Dificilmente, quando já não se aguenta mais, a um amigo
Que se escapou às ocultas e traz
Novas das casas e dos companheiros,
E nos apressamos a abrir—lhe o coração,
Não vá o exílio alcançá-Io e mudá-Io.
Viemos das Arábias., do Egipto, da Palestina, da Síria;
O Estado de Comagena, que apagou como uma pequena lanterna
Muitas vezes volta ao nosso espírito,
E grandes cidades que viveram milhares de anos.
Delas só restando pastagens de búfalos,
Campos de cana-de-açúcar e de milho.
Viemos da areia do deserto, do mar de Proteu,
Almas maculadas de públicos pecados
Cada um com seu cargo, como o pássaro na gaiola.
O outono chuvoso nesta fossa
Inflama a ferida de cada um de nós
Ou, por outras palavras talvez, o destino fatal
Ou simplesmente os maus hábitos, a fraude e o embuste,
Ou ainda a cobiça do sangue dos outros.
Facilmente se tritura o homem na guerra
O homem é frágil, é um molhe de ervas.
Lábios e dedos que desejam branco peito.
Olhos semi-cerrados no esplendor do dia
E pernas que correriam, mesmos tão cansadas,
Ao mais pequeno assobio do lucro.

O homem é frágil e sedento como a erva,
Insaciável como a erva, e seus nervos são raízes que alastram,
Quando é tempo de colheita,
Prefere que as foices silvem em seara alheia,
Quando é tempo de colheita
Uns gritam para esconjurar o demónio,
Outros perdem-se nas riquezas, outros peroram;
Mas, esconjuros, riquezas e retórica,
Quando os vivos estão longe, de que servem?
Talvez o homem seja outra coisa?
Talvez não seja isto que transmite a vida?
Há um tampo para semear, há um tempo para colher.

De novo e sempre o mesmo, dir-me-ás, amigo.
Contudo, o pensamento do exilado, o pensamento do prisioneiro, o pensamento
Do homem que também se viu reduzido a mercadoria
Tenta mudar-lho, que não consegues.
Queria, se calhar, ser rei dos antropófagos
Desbaratar forças que ninguém procura
E passear por campos de agapantos
E ouvir os batuques debaixo dos bambus
Enquanto os cortesãos dançam com máscaras grotescas.
Mas a terra que massacram e queimam como um pinheiro e que vês,
Ou no vagão escuro, sem água, partidas as vidraças durante noites e noites,
Ou no barco incendiado que há-de naufragar como ensinam as estatísticas,
Tudo isso criou raízes na espírito e não muda,
Tudo isso floriu imagens parecidas às árvores
Que lançam na floresta virgem seus ramos
Que voltam a cravar-se na terra e a florir
E lançam ramos e voltam a florir e galgam léguas e léguas.
Uma floresta virgem de folhas mortas é o nosso espírito.

E se te falo por fábulas e parábolas
E porque assim são mais doces ao teu ouvido e porque do terror
Não se fala, que é coisa viva,
Que é coisa muda e avança sem parar,
Goteja todo o dia, goteja durante a noite
A dor das recordações.

Falemos de heróis, falemos de heróis: o Michális
Que fugiu com feridas abertas do hospital
Talvez estivesse a falar de heróis, na noite
Em que, arrastando os pés pela cidade velada,
Gritava e tocava a nossa dor: “Pela escuridão
É que vamos, pela escuridão avançamos…”
Os heróis avançam na escuridão.

Poucas são as noites de luar de que gosto.



yorgos seferis
tradução de manuel resende




22 junho 2014

yorgos seferis / um velho na margem do rio



E, no entanto, há que pesar como avançamos,
Não basta que sintas, nem que penses, nem que te movas,
Nem que arrisques o corpo na antiga ameia,
Quando o azeite a ferver e o chumbo líquido riscam a muralha.
E, no entanto, há que pesar para onde avançamos,
Não como quer a nossa dor, e as nossas crianças famintas,
E o abismo do convite dos nossos companheiros na outra margem;
Nem o que murmura a luz obscura do hospital improvisado,
Mas de outro modo; talvez queira eu dizer como
O longo rio que vem dos grandes lagos fechados de uma profunda África
E já foi Deus e depois se fez estrada e dom e juiz e delta;
Que nunca é o mesmo, como ensinam os antigos letrados,
Mas é sempre o mesmo corpo, o mesmo curso, o mesmo sítio,
E o mesmo norte.
Mais não quero que falar de modo chão, que me seja dada tal graça,
Pois a canção, tanto a carregámos de músicas que se vai afundando
E a nossa arte, tanto a decorámos, que os ouros lhe devoram a face
E é tempo de dizermos as nossas palavras poucas, pois a alma
Amanhã vai soltar o pano.
Se é humana a dor, não somos homens apenas para sofrer
E, por isso, tanto tenho meditado no grande rio;
Este sentido que avança por entre plantas e ervas
E bichos que pastam e matam a sede e homens que semeiam e ceifam
E grandes túmulos e até pequenas habitações dos mortos,
Esta corrente que abre o seu caminho não é diferente do sangue dos homens
E do olhar dos homens quando olham em frente sem medo no coração,
Sem o quotidiano temor das pequenas coisas nem até das grandes;
Quando olham em frente como o caminheiro que se afeiçoou a medir o caminho
                                                                                                          [pelas estrelas,
Não como nós no outro dia olhando o jardim fechado na casa árabe adormecida,
Por trás da cerca, o jardinzinho fresco, mudando de forma, crescendo e minguando;
Mudando enquanto olhávamos, também nós, a forma do nosso desejo e do nosso coração,
Ao orvalho do meio-dia, nós, a paciente massa de um mundo que nos expele e nos molda,
Presos na rendada renda de uma vida que estava certa e se fez pó e se afundou na areia,
Deixando atrás de si apenas o indistinto balançar de uma pequena palmeira que nos
                                                                                                          [deixou tontos.




giórgios seféris
(1900-1971)
tradução de manuel resende



27 fevereiro 2014

yorgos seferis / o anjo



I
O anjo
há três anos atentos o esperávamos
olhando muito perto
os pinheiros a rebentação e as estrelas.
Unindo o gume do arado ou a quilha do barco
procurávamos encontrar de novo a primeira semente
para que recomeçasse o drama antiquíssimo.

Voltámos quebrados a nossas casas
com membros lassos, com a boca decrépita
pelo sabor da ferrugem e da ressalga.
Quando despertámos viajámos para norte, alheios
afundados dentro de névoas das asas imaculadas
          dos cisnes que nos feriam.
Nas noites de inverno enlouquecia-nos o vento forte do le-
          vante
Nos verões perdíamo-nos dentro da agonia do dia que não
          conseguia expirar.

Trouxemos connosco
estes relevos de uma arte humilde.



yorgos seferis
romance
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993




19 abril 2013

yorgos seferis / o último dia




Estava o dia nublado. Ninguém se resolvia
soprava um vento ligeiro: «Não é o grego é o
siroco» disse alguém.
Alguns ciprestes esguios cravados na encosta e o
mar
cinzento com lagoas luminosas, mais além.
Os soldados apresentavam armas quando começou a chuviscar.
«Não é o grego é o siroco» a única resolução que
se ouviu.
Todavia sabíamos que na alba seguinte não nos restaria
mais nada, nem a mulher bebendo ao nosso lado o sono
nem a memória de que fomos homens alguma vez,
mais nada na alba seguinte.

«Este vento traz à mente a primavera» dizia a amiga
caminhando a meu lado olhando para longe «a primavera
que de repente caiu no inverno perto do mar fechado.
Tão inesperadamente. Passaram tantos anos. Como vamos
morrer?»

Uma marcha fúnebre vagueava por entre a chuva miudinha.
Como morre um homem? Estranho ninguém reflectiu
nisso.
E os que pensaram nisso era como memória de crónicas
velhas
da época dos cruzados ou da - em Salamina - batalha
naval.
Todavia a morte é algo que é feito; como morre
um homem?
Todavia alguém ganha a sua morte, a sua própria morte,
que não pertence a nenhum outro
e este jogo é a vida.
Baixava a luz sobre o dia nublado, ninguém se
resolvia.
Na alba seguinte não nos restaria nada; tudo entregue;
nem sequer as nossas mãos;
e as nossas mulheres trabalhando para outros nos fontanários e
os nossos filhos
nas pedreiras.
A minha amiga cantava caminhando a meu lado
uma canção amputada:
«Na primavera, no verão, escravos...»
Lembrávamo-nos de mestres anciãos que nos deixaram
órfãos.
Um casal passou a conversar:
«Fartei-me do crepúsculo, vamos para casa
vamos para casa acender a luz.»



yorgos seferis
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993



11 novembro 2012

yorgos seferis / fuga




Não foi outro o nosso amor
fugia tornava a voltar e trazia-nos
uma pálpebra descida muito longínqua
um sorriso
marmóreo, perdido
dentro da erva matutina
uma concha bizarra explicá-la
procurava insistentemente nossa alma.

O nosso amor não foi outro tenteava
quietamente entre as coisas em redor de nós
para explicar porque não queremos morrer
com tanta paixão.

E se nos agarrámos a quadris e se abraçámos
outras nucas com toda a nossa força
e se unimos o nosso hálito com o hálito
dessa pessoa
e se fechámos os nossos olhos, não foi outro
apenas este anseio mais profundo de nos agarrarmos
dentro da fuga.   



yorgos seferis
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993




13 fevereiro 2012

yorgos seferis / romance




III

                               Lembra-te dos banhos em que foste afogado




Acordei com esta cabeça de mármore nas mãos
que extenua os meus cotovelos e não sei onde
          pousá-la.
Ela tombava no sonho enquanto eu saía do sonho
a nossa vida uniu-se e será muito difícil separar-se
          de novo.

Vejo os olhos; nem abertos nem fechados
falo à boca que continuamente procura  falar
seguro as maçãs do rosto que ultrapassam a pele.
Já não tenho força;

as minhas mãos perdem-se e aproximam-se de mim
mutiladas.






yorgos seferis
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993




28 dezembro 2011

yorgos seferis / caligrama




Velas no Nilo,
pássaros sem canto com uma asa
procuram sem rumor a outra;
tocam com os dedos no céu ausente
o corpo de um efebo em mármore;
escrevem com invisível tinta no claro azul
um grito de desespero.


                                       Nilo, «Os Pombos»




yorgos seferis
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães
e nikos pratisinis
relógio d´água
1993




03 julho 2010

yorgos seferis / a água quente…











A água quente lembra-me todas as manhãs
que não tenho mais nada vivo ao pé de mim.












yorgos seferis
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães
e nikos pratisinis
relógio d´água
1993





04 julho 2008

narração






Este homem caminha a chorar
ninguém sabe dizer porquê
às vezes pensam que são os amores perdidos
como aqueles que tanto nos atormentam
à beira-mar no verão com os gramofones.

A outra gente cuida dos seus trabalhos
papéis intermináveis crianças que crescem, mulheres
com dificuldades em envelhecer
ele tem dois olhos como papoilas
como primaveris papoilas cortadas
e duas pequenas fontes na cavidade dos olhos.

Caminha pelas estradas nunca se deita
galgando pequenos quadrados no dorso da terra
máquina de um tormento infindo
o qual acabou por não ter importância.

Alguns outros ouviram-no falar
sozinho enquanto passava
de espelhos quebrados anos antes
de figuras quebradas dentro de espelhos
que já ninguém pode juntar.
Outros ouviram-nos dizer do sono
imagens de horror no limiar do sono
rostos insuportáveis de ternura.

Habituámo-nos a ele bem arranjado e tranquilo
acontece apenas que caminha a chorar continuamente
como os salgueiros à beira do rio que vês do comboio
quando acordas mal disposto numa alba cheia de nuvens.

Habituámo-nos a ele não representa nada
como todas as coisas às quais vocês se habituaram
e falo-vos dele porque não encontro
nada a que vocês não estejam habituados;
as minhas vénias.








yorgos seferis
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães
e nikos pratisinis
relógio d´água
1993




11 maio 2007

yorgos seferis





A água quente lembra-me todas as manhãs
que não tenho mais nada vivo ao pé de mim.








yorgos seferis
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães
e nikos pratisinis
relógio d´água
1993