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31 maio 2014

cesare pavese / os mares do sul



                                                    (para Monti)

Caminhamos uma tarde pela encosta dum monte,
em silêncio. Na sombra do lento crepúsculo,
o meu primo é um gigante vestido de branco,
de andar pausado, rosto bronzeado,
taciturno. Calar é a nossa força.
Um antepassado nosso deve ter-se sentido muito só
— um grande homem entre imbecis ou um louco coitado —
para ensinar aos seus tanto silêncio.

Esta tarde, o meu primo falou. Perguntou-me
se queria ir com ele: do alto vê-se,
em noites serenas, o reflexo do farol
ao longe, de Turim. "Tu que vives em Turim..."
disse-me "... tu é que tens razão. A vida é para se viver
longe da terra: um homem aproveita, goza
e depois, quando volta, como eu aos quarenta,
encontra-se tudo novo. As Langas não fogem daqui".
Disse-me isto tudo e não fala italiano,
mas serve-se, pausado, do dialecto que, como as pedras
deste mesmo monte, é tão áspero
que vinte anos de línguas e oceanos diversos
lho não arranharam. E sobe a encosta
com o olhar contido que vi, menino,
em camponeses um pouco cansados.

Vinte anos correu mundo, sem parança.
Abalou era eu ainda um menino ao colo das mulheres
e deram-no como morto. Depois ouvi falarem dele
as mulheres, às vezes, como uma fábula;
mas os homens, mais sérios, esqueceram-no.
Num Inverno, para o meu pai já falecido chegou um postal
de grande selo esverdeado com navios num porto
e desejos duma boa vindima. O espanto foi grande,
mas o menino crescido explicou avidamente
que o postal vinha duma ilha chamada Tasmânia,
rodeada por um mar muito azul, feroz de tubarões,
no Pacífico, a sul da Austrália. E acrescentou que o primo
de certeza pescava pérolas. E arrancou o selo.
Deram todos a sua opinião, mas todos concluíram
que, se ainda não morrera, havia de morrer.
Depois esqueceram-no e passou muito tempo.

Oh, quanto tempo passou desde que brinquei
aos piratas malaios. E desde a última vez
em que fui nadar para um sítio perigoso
e persegui um companheiro por uma árvore acima,
quebrando-lhe os belos ramos, e rachei a cabeça
a um rival e me deram uma tareia,
quanta vida passou. Outros dias, outros jogos,
outros abalos do sangue frente a rivais
mais esquivos: os pensamentos e os sonhos.
A cidade ensinou-me infinitos medos:
uma multidão, uma rua fizeram-me tremer,
às vezes um pensamento, espreitado num rosto.
Sinto ainda nos olhos a luz escarninha
dos milhares de candeeiros sobre o tropel dos passos.

Acabada a guerra, o meu primo voltou,
gigantesco, entre uns poucos. E tinha dinheiro.
Os parentes diziam em voz baixa: "Daqui a um ano, e já é muito,
está tudo comido e abala outra vez.
Os desesperados morrem assim".
O meu primo tem um ar decidido. Comprou um rés-do-chão
na aldeia e fez prosperar aí uma garagem de cimento
com a bomba da gasolina à frente, flamejante,
e um cartaz-reclame na curva da ponte, bem à vista.
Depois meteu um mecânico para receber o dinheiro
e deu a volta às Langas, de cigarro na boca.
Entretanto, tinha-se casado na aldeia. Escolheu uma rapariga
esguia e loura como as estrangeiras
que sem dúvida encontrara um dia por esse mundo.
Mas continuou a sair sozinho. Vestido de branco,
de mãos atrás das costas e rosto bronzeado,
batia as feiras de manhã e com ar manhoso
negociava cavalos. Explicou-me depois,
quando tudo se gorou, que a sua intenção
fora limpar o vale de bestas de carga
e obrigar a gente a comprar-lhe os motores.
"Mas a besta maior de todas" dizia "fui eu,
quando tive a ideia. Devia saber
que aqui bois e pessoas é tudo a mesma raça".

Caminhamos há mais de meia hora. O cume está próximo,
à nossa volta o vento ruge e assobia cada vez mais forte.
O meu primo para de repente e volta-se: "Este ano
vou pôr no cartaz: — O Santo Estêvão
foi sempre o primeiro nas festas
do vale de Belbo — e que o digam
os de Canelli". E depois retoma a subida.
Um perfume de terra e vento envolve-nos na escuridão,
ao longe algumas luzes: quintas, automóveis
que mal se ouvem; e eu penso na força
que me devolveu este homem, arrancando-o ao mar,
às terras longínquas, a este longo silêncio.
O meu primo não fala das viagens que fez.
Diz simplesmente que esteve em tal ou tal sítio
e pensa nos seus motores.

Só um sonho
lhe ficou no sangue: cruzou os mares, uma vez,
como fogueiro dum pesqueiro holandês, o Cetáceo,
e viu os pesados arpões voarem ao sol,
viu fugirem baleias no meio duma espuma de sangue
e perseguirem-nas e as caudas erguerem-se, e a luta das baleeiras.
Às vezes fala-me disto.

Mas quando lhe digo
que ele é um dos afortunados que viram a aurora
nas mais belas ilhas da terra,
sorri ao lembrar-se e responde que quando o sol
nascia, já o dia era velho para eles.


cesare pavese
diVersos n° 1
trad.carlos leite
edições sempre em pé
1996



05 novembro 2013

cesare pavese / paisagem VI



Este é o dia em que as brumas do rio saem
para a bela cidade no meio de prados e colinas
e a esfumam como uma recordação. Os vapores confundem
os verdes, mas as mulheres das cores vivas ainda
caminham por ela. Vão na branca penumbra
sorridentes: na rua tudo pode acontecer.
Pode acontecer que o ar embebede.

A manhã
ter-se-á aberto num dilatado silêncio
atenuando as vozes. Até o pedinte,
que não tem cidade nem casa, o terá respirado,
como aspira o copo de aguardente ao desjejum.
Vale a pena ter fome ou ter sido traído
pela boca mais doce, só para sair com aquele céu
e voltar a encontrar no hálito as mais diáfanas recordações.

Cada rua, cada simples esquina
na bruma conserva um antigo tremor:
quem o sente não pode abandonar-se. Não pode abandonar
a sua embriaguês tranquila, feita de coisas
duma vida cheia, descobertas ao acaso
duma casa ou duma árvores, dum súbito pensamento.
Também os grandes cavalos que passarão
entre as brumas de madrugada falarão daquele tempo.

Ou talvez um rapaz fugido de casa
volte precisamente hoje em que a bruma
se eleva sobre o rio e esqueça toda a vida,
a miséria, a fome e as lealdades traídas,
para parar a uma esquina bebendo a manhã.
Vale a pena voltar, mesmo que seja diferente.



cesare pavese
trabalhar cansa
trad.carlos leite
cotovia
1997




19 agosto 2009

cesare pavese / desenraizados







Chega de mar. Já vimos mar que chegue.
Ao entardecer, quando deslavada a água se estende
e esfuma no nada, o meu amigo olha-a fixamente
e eu fixo o meu amigo e nenhum de nós fala.
Chegada a noite, acabamos por nos fechar nos fundos duma taberna,
perdidos no meio do fumo, e bebemos. O meu amigo tem sonhos
(o bramir do mar torna os sonhos um tanto monótonos)
em que a água é apenas o espelho, entre uma ilha e outra,
que reflecte colinas salpicadas de flores selvagens e cascatas.
Quando bebe, dá-lhe para isso. De olhos postos no copo,
vê-se a erguer colinas verdejantes sobre a planura do mar.
As colinas, a mim agradam-me; e deixo-o falar do mar
porque a água é tão clara que se vêem mesmo as pedras do fundo.

Eu, o que vejo é só colinas, e enchem-me o céu e a terra
com as linhas nítidas dos seus perfis, distantes ou próximas.
Mas as minhas são agrestes, estriadas de vinhedos
que crescem penosamente num solo calcinado. O meu amigo aceita-as
e quer vesti-las de flores e frutos selvagens
para nelas descobrir, entre risos, raparigas mais nuas que os frutos.
Não é preciso: aos meus sonhos mais agrestes não falta um sorriso.
Se amanhã, cedinho, nos metermos ao caminho,
poderemos encontrar nessas colinas, no meio das vinhas,
uma rapariga de pele morena, tisnada pelo sol,
e, talvez, metendo conversa, comer-lhe algumas uvas.






cesare pavese
trabalhar cansa
trad.carlos leite
cotovia
1997







29 fevereiro 2008

o ócio torna lentas as horas…






10 de Dezembro

O ócio torna lentas as horas e velozes os anos. A actividade torna rápidas as horas e lentos os anos. A infância é a actividade máxima, porque ocupada em descobrir o mundo na sua diversidade.

Os anos tornam-se longos na recordação se, ao repensá-los, encontrarmos numerosos factos a desenvolver pela fantasia. Por isso, a infância parece longuíssima. Provavelmente, cada época da vida é multiplicada pelas sucessivas reflexões das que se lhe seguem: a mais curta é a velhice, porque nunca será repensada.

Cada coisa que nos aconteceu é uma riqueza inesgotável: todo o regresso a ela a aumenta e acresce, dota de relações e aprofunda. A infância não é apenas a infância vivida, mas a ideia que fazemos dela na juventude, na maturidade, etc. Por isso, parece a época mais importante, visto ser a mais enriquecida por considerações sucessivas.

Os anos são uma unidade da recordação; as horas e os dias, uma unidade de experiência.









cesare paveseo ofício de viver - diário (1935-1950)trad. alfredo amorim
relógio d´água
2004


28 março 2006

estações

3)


"28 de Outubro (1935)

A poesia começa quando um idiota diz, a respeito do mar: «Parece azeite.» Não é, de facto, uma descrição exacta de um mar bonançoso, mas o prazer de ter descoberto a semelhança, a exactidão de um liame misterioso, a necessidade de se gritar aos quatro ventos que de tal nos apercebemos.
No entanto, é igualmente idiota determo-nos aqui. Começada assim a poesia, é preciso terminá-la e compor uma narrativa rica de nexos e que equivalha a um juízo de valor.
Esta seria a poesia-tipo, a ideia. Mas, habitualmente, as obras são feitas de sentimentos — a exacta descrição da bonança — que, de vez em quando, espumejam em descobertas de relações. Pode ser que a poesia-tipo seja irreal e que — tal como nós vivemos também de micróbios — o que até agora foi feito seja constituído por simples pedaços miméticos (sentimento), por pensamentos (lógica) e por nexos mal esboçados (poesia). Uma combinação mais absoluta seria talvez irrespirável e idiota. "



Cesare Pavese
O ofício de Viver
Diário (1935-1950)
Trad. Alfredo Amorim
Relógio d’ água
2004