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12 novembro 2021

antónio franco alexandre / duende

 
 
2.
Olha-me agora, que me tens vencido
e sou nas tuas mãos pobre veludo,
de pele morta e rôta mal vestido
e, de sábio que sou, já tartamudo.
Fala-me agora, que não tenho boca
e sou na tua pele mero ouvido,
diz-me palavras soltas sem sentido
ou pede-me por graça o consentido.
Olha-me só para que veja como
tão claro e fundo olhar me tem mantido
na solidão sem nome deste pranto;
ou escreve em mim com hálito de lume
para que seja eu a enrodilhada chama
que se esquece de si e sonha o fumo.
 
 
antónio franco alexandre
duende
assírio & alvim
2002

 




15 outubro 2021

antónio franco alexandre / (envoi)




 

João, em viagem sê discreto.
Esquece as mil e três, as onze mil.
De duas mãos já sentes o excesso;
de escafandro cortês é como ficas
bem, ao cortar o retrato.
 
Não é verdade que este mundo seja
o pior, o melhor; melhor, se é teu.
Se é teu o arremesso, a flecha voa
certeira, à desprendida presa.
 
Verás os montes altos, os eternos,
e o mais pequeno, onde nasce o dia.
Precioso brinquedo, a terra gira
com a precisa alma do relógio;
leva contigo tudo, não me poupes;
onde não sou é que começo, eu.
 
 
 
antónio franco alexandre
poemas
carrocel
assírio & alvim
2021

 


 




14 junho 2021

antónio franco alexandre / syrinx, ficção pastoral

 
 
III
 
Quem diria, vou viver
além do século gasto,
só é pena o calendário
me trocar a identidade
(Venho contigo ao jardim
com dedos vazios de rimas
quem diria, eu que vou ser
presidente dos cantores)
Tenho na boca o aço
do pesadelo real
fiquei preso à voz do eco
é banal! Ao telefone
só, de plástico, etc.,
procura, sigilosa, desejável foto
(enfim, por fax, a cores).
Quem diria, preso à voz
não sei de quem, que me ouvia.
 
 
antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999

 




28 dezembro 2020

antónio franco alexandre / dos jogos de inverno

 
 
2
 
subitamente estou afastado de todas as águas, rei de uma imensa ilha
forçosamente devastada, filas de escravos, camiões, barreiras
de onde balouçam delgados rostos brancos,
e um pouco adiante, entre carris, areia,
chamas de fogo escuro soltam-se da terra: mas
 
não é de crer sejam as portas dos infernos. escrevo
no luminoso écran onde os corpos se banham
silenciosos, com o firmamento
azul sobre o silêncio deles e
é quando as mãos se soltam quando o fogo, a luz
 
em lâminas separa o seco pó, era um jardim ao fim da tarde! depois
é o costume: cisternas, alçapões, planaltos,
a rua de cavalos, latas de leite, estrume,
e é quando o fogo fica esquecido e as boca escuras ardem
para sempre jamais
e o vento estranhamente tépido está pousado nas colinas
como uma coluna até ao céu
 
e é quando todas as palavras são uma baba muito límpida
que as bocas da terra deitam para fora da terra
sem escadas para descer com o chão muito liso
e só a bruma rasgada a gritar (dizem poetas)
poe este cheiro a coisa nenhuma dobrada
tão cheia de cuidados na manjedoura a louça
translúcida do ar
 
 
 
antónio franco alexandre
dos jogos de inverno
poemas
assírio & alvim
1996

 



13 outubro 2020

antónio franco alexandre / recuso ver que face

 
 
recuso ver que face
na tua face a tempo pousa
o agrimensor
da sombra
 
ouvir que voz repete
a tua voz dormida
junto ao pão
os instrumentos
 
talhados sobre
a boca
 
na água viva o sopro
alvoraçado
 
 
 
antónio franco alexandre
a pequena face
assírio & alvim
1983



 

03 setembro 2020

antónio franco alexandre / dos jogos de inverno


1

por esse caminho vais dar a um ribeiro
oculto nas pedras, e daí são dois passos pró inferno!
fiquei surpreso com a informação, assim de cara nua
à saída de casa, pousando a mala azul já encharcada,

como se houvesse destinos nesta terra! encolho os ombros,
as borboletas mudam de cor, gigantescas, violeta castanho,
tudo é real e diferente de si, mesmo as anémonas
e o cheiro de morte que deitam por dentro. os planetas,

acredito, emitem pequenos sinais, mas tenuamente
deitam-se no ovo oco do céu,
e a grande chuva entra-me pelo corpo e fica
dentro a chover, coisa inútil, intensa.

foi assim que aprendi que os homens morrem aos pedaços,
e muito antes de eu nascer já esta torpe história seguia
«o seu rumo», aqui e além facilitado pela chacina militar,
e ninguém pedirá a minha opinião, que não é nenhuma.

o poema traz consigo um fresco calor escuro,
é um pouco cão, miserável e mudo.
os fios eléctricos atravessam a rua, lado a lado; o cigarro lançado
ao ar, explode contra as folhas.

dorme comigo, ribeiro seco.
deita-me na lisa pedra que te encerra. tudo começa
no cais de água nenhuma; um pouco cão, mais nada:
a arte do soneto e alguma rima.



antónio franco alexandre
dos jogos de inverno
poemas
assírio & alvim
1996






26 maio 2020

antónio franco alexandre / encontro-te perdido não tens corpo



encontro-te perdido não tens corpo
que sombra alguma guarde
não sei que luz destrói a linha de água
o ombro dividido

são secos ossos, terra
sem paisagem,
as tábuas dos navios e
o frio veneno

junto do cais a água de óleo mãe
o farrapo amanhã não te despeças


antónio franco alexandre
poemas
a pequena face
assírio & alvim
1996






27 novembro 2019

antónio franco alexandre / ocupam-te as nuvens, bem vejo




ocupam-te as nuvens, bem vejo
como te cega a dimensão da água,
como ordenas os quartos e os rios
a mesa da brancura e os limites

na rua continuam perguntando
que nome melhor rima com a boca
bem sei que te distraem os cargueiros
a dobra da janela nos cabelos

um sopro é a avenida o horizonte
rasgado pelo meio


antónio franco alexandre
a pequena face
assírio & alvim
1983







20 agosto 2019

antónio franco alexandre / oásis




[…]

atravessar o mundo! Banhar as mãos num oceano índico, todo
de pedra recamado! bafejar a fortuna
a digressão por litorais, ravinas

de rigoroso corte! – abre-se, dizia,
a ditosa masmorra do ouvido. Esqueço,
por um instante, as mãos sobre o volante,

no caminho de espanha, magro sancho. Blanca niña, blanca niña
blanca niña blanca flor
e sobre a larga terra tudo dormira

[…]



antónio franco alexandre
oásis
assírio & alvim
1992






04 agosto 2019

antónio franco alexandre / corto viaggio sentimentale, capriccio italiano



2

no intervalo tu
lês Gramsci sobre Machiavelli
por pura inactualidade
“pur senza rinunziarci completamente”.
O rosto azul, os ombros luminosos,
as pupilas e mãos de ervas daninhas,
já não desejo a imagem do teu corpo,
já não preciso de perfil.



antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999






19 fevereiro 2019

antónio franco alexandre / demoro-me no espaço




demoro-me no espaço
que as portas abrem, antes
de misturar as árvores e os

dias, as duras
maçãs redondas,
o percurso da água junto

ao teu nome incompleto,
o resto
indolor das casas

das corolas ardendo
na névoa, e
as desabridas,

as sílabas sem terra e
horizonte, as vivas.



antónio franco alexandre
a pequena face
assírio & alvim
1983






19 novembro 2018

antónio franco alexandre / oásis




[…]

para que regresses para que a terra inche de maçãs
para que a égua e o lobo caminhem entre as dunas e o sopro da espuma
recebe-me ó

confuso amado que perdeste o amante
em alguma viela litoral («às portas, bem as vejo, do inferno»)
e dia a dia tomas o lugar deixado

recebe-me, boca luminosa por dentro cheia de folhas quando
adormeço a tua cabeça descansa nos meus dedos
não pelas palavras que abandono não pelo verso («a lira

nos ramos altos estremecidos pelo vento»)
para nada lembrarmos para nada esquecermos
para que a voz se deite no lençol e olhando

veja a pequena terra em que nasci
o sossego das grandes chuvas desabando no pátio e o respirar da casa
o rosto de minha mãe

recebe-nos, coração do outro lado da porta onde toda a noite escutas
os passos do colibri e da cobra inocente
ainda levando à boca com dextras mãos um pedaço de pão

não deixes que seja dura a nossa memória apaga-nos
sem fotografia dos vetustos livros
por mim quero esta manhã de fresco sol entre as árvores douradas de amarelo

[…]




antónio franco alexandre
oásis
assírio & alvim
1992








01 outubro 2018

antónio franco alexandre / no resto dos seus olhos




no resto dos seus olhos
pousarei o lençol lembrando
o ângulo das chuvas, e os brandos
meteoros.

passeio-me
de tranças, com um fio
azul por entre as franjas
flexíveis da memória.

encontro esse motivo nos seus dedos
na sua carne de curtume branco.

deixe que viva nos seus olhos, rosto.



antónio franco alexandre
ana jotta
sumário
livro de artistas
europpalia 91
1991








26 julho 2018

antónio franco alexandre / corto viaggio sentimentale, capriccio italiano




26

não me importa o amor que tenhas
e o amor não se dá nem tem nada para dar
as tuas mãos nas minhas são o tempo que volta
a mover sombras de nanquim, e nos teus lábios
é o sabor a tinta que me atrai.
Ebbro d’ inchiostro é mais bonito, quando
ao calor de agosto as bocas se desatam
e as línguas mordem a brancura do linho.



antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999









21 março 2018

antónio franco alexandre / ao humano desprezo bem queria




Ao humano desprezo bem queria
responder com um rasgo de heroísmo
ou de bem calculada fantasia;
encaminhar algum pedestre implume
perdido nos meandros do destino,
vencer um monstro em singular combate,
ou descobrir as máquinas da luz.
Dava-me já, porém, por satisfeito
se a minha arte fosse acompanhada
por discreto rumor de élitros e asas,
e eu mesmo, amoris causa, recebido
na academia eterna dos insectos.
Nem eu nasci da sua impura raça,
nem sei de nenhum rito que me faça
ser digno do seu sumo sacerdócio;
menos feliz do que o mosquito e a traça,
não sou, por mera herança, dos eleitos;
e por muito que estude e em livros leia
a história toda dos seus reis e magos,
ao fim do dia volto, magoado, à teia
sem ver o meu labor recompensado.
Assim hei-de ficar até ao fim dos dias,
objecto de temor e fria troça,
sujeito à condição que não alcanço.



antónio franco alexandre
aracne
assírio & alvim
2004









22 dezembro 2017

antónio franco alexandre / corto viaggio sentimentale, capriccio italiano



1

não havendo limite ao que podemos
imaginar, as bocas facilmente se tocam
e duas diferentes línguas se
respondem, con dolce violenza.
Que mais desejarias ter
numa outra vida: o meu talento,
o le mie gambe?



antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999







11 setembro 2017

antónio franco alexandre / fico aguardando telegramas, os azuis



fico aguardando telegramas, os azuis
recados.
os poderes da manhã já pouco duram.
à superfície o som move na boca

um pouco sopro.
não julgues que me importam as roldanas
do tempo no teu corpo

são certos os abismos de cartão
e falsa a neve que nos cobre os passos.
de graça a terra nos dispõe na foto
e a idade inventa nomes que a dissipem

descobre-me impacientes os recados
o envelope da urgência o intervalo



antónio franco alexandre
poemas
a pequena face
assírio & alvim
1996






22 agosto 2017

antónio franco alexandre / a rectidão da água; o crescimento



a rectidão da água; o crescimento
das avenidas, ao anoitecer, sob a nua
vibração dos faróis;

o laço, mesmo, das portas só
entreabertas, onde a luz
silenciosa se demora;

são memórias, decerto, de um anterior
esquecimento, uma inocente
fadiga das coisas,

como os corpos calados, abandonados
na véspera da guerra, o teu
jeito para

o desalinho branco das palavras,
altas as
asas de nuvens no clarão do céu

em vão rigor abrindo
o destinado enigma: assim
desconhecer-te cada dia mais

ausente de recados e colheitas,
em assustado bosque, em sombra
clareira,

ao risco dos rios frívolos descendo
seixos polidos, desinscritos,
imóveis movendo

a luz do dia;
a margem recortada, aonde vivem
ausentes e seguros, os luminosos

animais do inverno;
assim são na verdade os muros claros;
assim respira o tempo, a terra intensa.


antónio franco alexandre
poemas
a pequena face
assírio & alvim
1996







02 junho 2017

antónio franco alexandre / duende




3.

Fica dentro de mim, como se fosse
eterno o movimento do teu corpo,
e na carne rasgada ainda pudesse
a noite escura iluminar-te o rosto.
No teu suor é que adivinho o rastro
das palavras de amor que não disseste,
e no teu dorso nu escrevo o verso
em pura solidão acontecido.
Transformo-me nas coisas que tocaste,
crescem-me seios com que te alimente
o coração demente e mal fingido;
depois serei a forma que deixaste
gravada a lume com sabor a cio
na carícia de um gesto fingido.



antónio franco alexandre
duende
assírio & alvim
2002





06 fevereiro 2017

antónio franco alexandre / os animais que escrevem




Os animais que escrevem, é sempre interessante, fez notar
o sensível destino dos nossos chacinados
companheiros. removemos a terra
de norte a sul, à procura de maravilhosas tocas,
o mar entrava pelo quarto do segundo andar,
dormíamos dentro um do um, acordados
pela manhã tracejada de néon,
no céu e terra do soalho.

cabe-me agora a descrição cuidada
do mundo incomodado em que vivemos: secretários
sentados à secretária, ídolos
das nove às onze,
civilidades de médio centro urbano, parque incluído,
a leve bomba que cai na cabeça dos outros,
e o grande buraco nocturno do mar
a sorver loas.

é um país, não há que errar, talhado
para a aventura de queimar
papéis ou gente,
tão desigual aos outros.
os primeiros autocarros passam,
a manhã levanta devagar a cabeça,
os pássaros, não esqueçamos os pássaros,
pousam, de viagem.


antónio franco alexandre
poemas
assírio & alvim
1996