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30 abril 2015

lawrence ferlinghetti / não dormi com a beleza toda a vida



Não dormi com a beleza toda a vida
fazendo inconfidências a mim próprio
dos seus encantos planturosos

Não, não dormi com a beleza toda a vida
mas com ela menti
fazendo confidências a mim próprio
de como ela nunca morre
mas jaz à parte
no meio dos aborígenes
da arte
e paira por cima dos campos de batalha
do amor

Está acima de tudo isso
muito acima
Está sentada no mais selecto dos assentos
da Igreja
lá em cima onde os administradores da arte marcam encontros
para escolherem o que há-de ficar para a eternidade
Eles, sim, dormiram com a beleza
durante toda a vida
Eles, sim, alimentaram-se da ambrósia
e beberam o vinho do Paraíso
e por isso sabem exactamente como é que
uma coisa bela é uma alegria
para sempre e para sempre
e como é que ela nunca nunca
pode inteiramente desvanecer-se
num nada que leve à bancarrota

Oh não, nunca dormi
em Regaços de Beleza como esses
receando levantar-me de noite
com medo de perder nesses segundos
qualquer belo movimento que ela esboçasse
E contudo dormi com a beleza
à minha estranha maneira
e fiz uma ou duas cenas terríveis
com a beleza na minha cama
de onde transbordou um poema ou dois
de onde transbordou um poema ou dois
para este mundo tão parecido com o de Bosch



lawrence ferlinghetti
a coney island of the mind
trad. josé palla e carmo
cadernos de poesia
dom quixote
1972





03 março 2015

lawrence ferlinghetti / sim



     sim
            e ficámos por ali
                   lá em cima em Central Park
atirando moedas para dentro das fontes
                             e um arlequim
   surgiu nu entre
          as criadas dos meninos
e surpreendeu-as com o dedo no nariz
      quando na verdade elas deviam era estar a
dançar





lawrence ferlinghetti
pictures of the gone world
trad. josé palla e carmo
cadernos de poesia
dom Quixote
1972





28 outubro 2011

lawrence ferlinghetti / como eu costumava dizer






    Como eu costumava dizer
             o amor é mais difícil de nascer nos mais
                                                                [idosos
porque já percorreram
        os mesmos velhos trilhos muitas vezes
e depois quando a manhosa agulha se apresenta
                       não tomam o desvio
   e devoram a velha via errada enquanto
           o alegre "tandem" segue em voo
       e o maquinista da locomotiva a vapor não
                                                        [reconhece
          as novas buzinas eléctricas
e os velhos correm sob o impulso ferrugento
                                         cujo fim se encontra
       na erva morta onde
as latas ferrugentas e as molas de colchão e as
                              [lâminas de barbear usadas
                                         jazem
             e a via acaba abruptamente
                                     ali mesmo
embora as chulipas de madeira continuem por uns
                                                                   [metros
                        e os velhos
dizem para si próprios
                                        Bem
                                                Deve ser este sítio
                             onde temos de nos deitar
E deitam-se mesmo

                 enquanto a bela carruagem iluminada
                                         [prossegue lá ao longe
                 no alto
                        no cimo da colina
                            com as janelas cheias de céu azul
                                                           [e namorados
   com flores
                             e longos cabelos ondulantes
                                    e todos a rirem-se
                          e a dizerem adeus e
                a perguntarem-se a si próprios o que
                                              [aquele cemitério
                  onde a via acaba
                                        é





lawrence ferlinghetti
pictures of the gone world
trad. josé palla e carmo
cadernos de poesia
dom Quixote
1972




25 fevereiro 2011

lawrence ferlinghetti / o mundo é um lugar maravilhoso







O mundo é um lugar maravilhoso
para se nascer
se as pessoas não se preocuparem demasiadamente
com o facto de a felicidade nem
sempre ser
muito divertida

se as pessoas não se ralarem muito com um
bocado do inferno
uma vez por outra

no preciso momento em que tudo está bem
porque mesmo no céu
não se canta
constantemente

O mundo é um lugar maravilhoso
para se nascer
se as pessoas não se ralarem com a morte de
outras pessoas
constantemente
ou talvez apenas a morrerem à fome
de vez em quando
o que não será mau de todo
se não for a nós que isso acontece

Oh o mundo é um lugar maravilhoso
para se nascer
se as pessoas não se ralarem muito
com alguns espíritos mortos
nos postos mais elevados
ou uma bomba ou duas
uma vez por outra
nos vossos rostos virados para
cima

ou outras inconveniências
como aquelas a que a nossa Sociedade
de Marca Registada
está sujeita
com os seus homens de grande
distinção
e os seus homens de grande extinção
e os seus sacerdotes
e outros serviços de patrulha

e as suas várias segregações
e comissões de investigação do congresso
e outras prisões de ventre
das quais a nossa carne tonta
é herdeira

Sim o mundo é o melhor lugar de todos
para fazermos uma porção de coisas como
consagrar-nos à alegria
consagrar-nos ao amor
e consagrar-nos à tristeza
e cantarmos canções graves
e termos inspirações
e nos passearmos
olhando para tudo
e cheirando as flores
e troçando das estátuas
e até pensando
e até beijando pessoas e
fazendo crianças e usando calças
e acenando com os chapéus e
dançando
e indo nadar para os rios
em piqueniques
no meio do verão
e de um modo geralmente geral
«gozando à bruta»


Sim
mas depois no meio de tudo isso
aparece o sorridente
cangalheiro








lawrence ferlinghetti
pictures of the gone world
trad. josé palla e carmo
cadernos de poesia
dom Quixote
1972





02 junho 2008

terrível





Terrível
um cavalo à noite
de pé atrelado sozinho
na rua silenciosa
e relinchando

como se alguém nu montado nele
o tivesse cingido com pernas ardentes
e cantado
uma sílaba
doce estridente esfomeada única









lawrence ferlinghetti
pictures of the gone world
trad. josé palla e carmo
cadernos de poesia
dom Quixote
1972


23 março 2007

e os árabes faziam perguntas terríveis



E os árabes faziam perguntas terríveis
e o Papa não sabia o que dizer e as pessoas
corriam de um lado para o outro em sapatos de
[madeira
perguntando para que lado estava virado o rosto
[de Midas e toda a gente dizia



Não em vez de Sim


Enquanto nos Jardins do Luxemburgo
nas fontes dos Médicis estavam
para sempre imóveis os
peixes dourados vermelhos grandes e os peixes
[dourados brancos grandes
e as crianças correndo à roda do lago
apontando com o dedo e esganiçando-se:


Des poissons rouges!

Des poissons rouges!


Mas foram-se embora
e uma folha desprendeu-se da árvore
e a caiu no lago
e ficou à tona de água como um olho a piscar círculos
e depois o lago ficou muito

tranquilo

e só lá ficou um cão
sem fazer nada
na borda do lago
a olhar para baixo
para os peixes em transe
e sem ladrar
nem dar ao ridículo rabo nem
nada


de modo que
então por um momento
no crepúsculo do final de Novembro
o silêncio pendeu como uma ideia perdida
e uma estátua virou



a cabeça









lawrence ferlinghetti
pictures of the gone world
trad. josé palla e carmo
cadernos de poesia
dom quixote
1972







22 março 2005

um poema de: Lawrence Ferlinghetti



Café Notre Dame


Uma espécie de trauma sexual
prende um casal abismado
Ele está segurando as duas mãos dela
nas suas
Ela está beijando as mãos dele
Estão olhando-se
nos olhos
de muito perto
Ela tem um casaco de peles
feito duma centena de coelhos correndo
Ele
tem um casaco clássico sombrio
e calças cinza-de-pardo
Agora estão a examinar as palmas
das mãos um do outro
como se fossem mapas de Paris
ou do mundo
como se estivessem à procura do Metro
que os levasse juntos
através dos caminhos subterrâneos
através das «estações do desejo»
até ao terminal do amor
até às portas da cidade-luz
É um caso sem saída
e estão perdidos
nas linhas cruzadas
das suas palmas enlaçadas
suas linhas de cabeça e linhas de coração
suas linhas de sorte e linhas de vida
ilegíveis e misturadas
no mons veneris
da sua paixão




Lawrence Ferlinghetti
In “A boca da verdade”, Antologia Portuguesa
Trad. André e Isabelle Lima
1986