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26 março 2021

herberto helder / as imagens

 
 
[…]
 
Num país estrangeiro, ao norte, cercados pela noite onde a neve palpita friamente.
 
O ruído chega ao quarto como um vapor ligeiro, indistintamente iluminado.
 
Falando baixo, enquanto a neve desliza pela janela e um comboio passa, brutal.
 
Isto ao mesmo tempo que a noite, a neve e o rumor.
 
E a conversa interrompe-se, tendo ficado pelo meio uma qualquer palavra, com sentido, essa também, porque todas as palavras eram animadas de uma inspiração capital.
 
Era tudo terrivelmente importante.
 
Tudo é importante, enquanto a noite cria o seu labirinto e o quarto se desloca para o coração do labirinto.
 
Estamos inclinados um para o outro, por dentro, e eu sinto uma vertigem leve, como se soubesse que o chão poderia não ser completamente seguro, e o abismo sempre prometido se fosse revelar.
 
O amado e terrível abismo.
 
[…]
 
 
herberto helder
apresentação do rosto
as imagens
porto editora
2020





04 janeiro 2021

herberto helder / lugar

 
 
VI
 
Às vezes penso: o lugar é tremendo.
É sobre os mortos, além da linguagem.
Lugar que se transforma rodando contra a boca.
Em certos dias, habitado por crianças
de uma infelicidade obscura, sobre
o verão. Por duros e belos
peixes entre as mãos perfurando
o sono de Deus.
E eu trago uma criança com um ombro
mergulhado no sangue, e o outro
ombro metido no sono triste.
Que pensa sempre, dentro de suas águas,
e é ameaçada por uma intraduzível beleza.
Muitas crianças caminham para o silêncio
de uma semana ambígua, quando
o verão anda de um lado para outro
e se desarruma por dentro.
O verão começa pelas partes mortas.
Ao longe, nas fronteiras da ilusão.
Crianças básicas fazem de mim uma rosa
iracunda, e atiram-na
contra a boca de Deus.
Para diante, através das águas estivais.
 
Não queiram viver em mim, quando entram
como espelhos as vozes virgens.
Ou morrer, se as colinas se aproximam
tão perto do rosto, e estremecendo
com muitas vozes.
Tão respirando, as colinas que se toldam
como povos embriagados.
Eu digo: não desejem amar-me, morrer
de mim. Porque destruo com a boca
o beijo transformado.
Morro em todas as pessoas que a delicadeza consome.
Digam-me devagar quais os vocábulos alarmantes.
 
Uma história de crianças com folhas
dispersas é sempre
uma história de morte. Embora a doçura
levede sua alma cega, crianças, eis como digo:
são uma musa devoradora.
Estão ligadas a toda a grande idade,
à terrífica fantasia do tempo.
Porque falam no esgotamento e, enquanto dormem,
sonham com seu ombro fendendo o sangue,
entrando no poder de Deus.
Tenho uma criança profunda em todos os lugares.
 
Desabitai-me a beleza que bati na pedra,
abaixado e louco.
E que a mulher se desabite da solidão que tive,
enquanto falei ao alto, inspirado
pelo assassínio do amor.
Desabitem-me da minha fome e da neve
onde fui brilhante brilhante.
Brilhante como o trigo escorrido nos dedos.
Como os pés sugeridos em volta da cinza.
 
A tristeza do verão é um modo de saber.
Ou ser puro. Ou estar afastado.
É preciso abandonar-se no meio da tarefa,
enquanto o crime é o autor, embebido.
Conheço crianças esgotantes pelo sono
onde acordam.
É preciso que Deus se liberte dos meus dons.
Que se não perca em minha fabulosa
ironia.
 
Também vi crianças empurradas nos meses.
Pela leveza da luz, empurradas
crianças supremas. Vi-as da mais subtil
matéria, com cerejas, com mãos.
Porque Deus é tão leve como a água atravessada.
Água que iracundos peixes rompem em todos os lugares.
Porque um poema alude ao mistério.
E eu ia pelo ar
de um canto de devotamento, eu
amava e amava.
E então levanto de mim próprio, contra
a inspiradora confusão,
as mãos de crianças preciosas caídas em sangue.
Mãos que Deus exerce no sono.
 
Deixai às crianças minhas zonas primitivas.
Minha terna loucura.
Deixai-as virar a alma para o lado,
de cara contra uma fria onda.
Em mim é que nascem e vivem com nomes
castos, e esquecem.
E de repente se lembram, e se esquecem
de tudo.
Porque são delicadíssimas.
E verdadeiras.
 
Abandonai-me no mês de Deus aberto,
com as crianças sorrindo com grãos de sal.
Esse Deus sobre as patas ao lado
de catedrais difusas.
Onde encosto meu rosto cor de neve lilás,
da cor assaltada das lágrimas.
Cor de quando tudo pára.
É a minha voz que se ouve para diante da noite,
voz tremente e limpa.
Voz acocorada depois numa obra obscura,
mais morosa do que a ambiguidade.
Voz bebida em si própria.
 
Meu sangue percorre os mortos
que me beijam no escuro com sua boca
de barro fechado.
O sangue passa por toda a doçura.
Os mortos tremem, luzem com o dom
em mim voltado para a sua solidão.
E criam, em cadeia, a mãe
descida em silêncio, mais remota
por detrás dos dons.
 
Um galho de sangue bate contra seus ouvidos.
Mãe afogada em poeiras interiores.
E chegada, então ao cimo da escada.
Olhando pelos meus dons dentro, olhando
o meu dom.
Olhando toda a minha força, ela
ao cimo de uma escada terrível, olhando
dentro de uma doçura mortal
a solidão dos meus dons. Olhando
inteiramente.
 
Deixai-me em todos os lugares, em cada
mês que principia.
Violinos e campânulas são imagens rarefeitas.
Peixes, casulos, pepitas misturadas.
Sobre o nocturno tema de Deus, despeço-me de todos.
Não me sabem as crianças, e eu sei
todas as crianças num poema prédio em chamas.
Nos meus dons.
 
E então penso: o lugar é terrível.
 
 


herberto helder
poesia toda
lugar
assírio & alvim
1996





02 setembro 2020

herberto helder / lugar



V
Explico uma cidade quando as luzes evoluem.
Quando é assaltada pelos gestos devotados.
Explico um espaço solene e unido
por virtude do fogo infantil.
Com a boca sobre um casulo
de som, uma criança
é sempre livre e encerrada.
Explico uma cidade através
de brilhos interiores. De pedras raras
viradas na palma da mão.

Cidades são janelas em brasa com cortinas
puras, e pracetas com chuva entre aspas.
Rostos de mulheres em jarras.
Ou girando sobre gonzos.
E por dentro de tudo a morte ou a loucura.
Estátuas encarnadas cheias
de peixes. E o silêncio
dobrado para a frente, na força da luz.

Cidades existem entre as mães que contemplam
as flores e folhas
do sono. A criança roxa
e prolongada para dentro, como no fundo
de uma estampada idade do ouro.
Cidades são aposentos fixos
quer na cabeça, entre brasas, quer
no gosto, na audição.
Barulho de passos, profundidade,
devotamento misterioso.
É o girassol do talento materno,
amando o movimento por cima brilhante.
e atirado, pela fascinação
da noite, para o gelo virgem da terra.

Ao longo de sons sempre passaram
mulheres apaixonadas,
separando os pés sobre frígidas gotas.
Mulheres partindo, chegando, voltando
o corpo na luz suspensa
e inteligente. Mulheres cheias de uma
atenta suspeita.
Vergadas para o fundo de uma existência
dura e pura.

Cidades que se envolvem de ecos e em cuja
solidão extraordinária
as mulheres batem seus dedos puros.
Sua sinistra fantasia.
Tiradas dos limbos segundo um ardente
princípio de ilusão.
Amadas tragicamente por Deus e entrando
na corrupção de Deus.

São quentes e frias, colocadas sobre moventes
comoções antigas.
Metidas pelo espanto dentro, enterradas
até ao livre espírito e ao terror.
Fábulas de comércio.
Imagens delicadas de uma suave indústria.
Cidades dotadas de uma inteira falta de intenção.
Abertas a ligeiras canções tenebrosas e,
sobre as graves canções, fechadas
como pedras frias.

Na noite impressa nos dois lados e,
pelo mais escuro lado antigo,
a revelação. Cada cidade é uma vingança
anterior onde a beleza passa
vestida de mulher.
Beleza lembrada e relembrada em seu
circuito ardente.
Escoada, esquecida.
E logo ressurrecta.
Tão próxima.
Cidades vazias de cócoras contra a noite,
ao lado de uma enorme ressurreição. Lírica
antropofagia.

E os arquitectos deslocam-se, unindo
nos dedos a pedra encurvada.
Ouvindo o som contra o som.
Imaginando logo uma paixão espantosa
no sono.
E agarrando-se às vozes, como as vozes brilhantes
se agarram à língua para fora.
Arquitectos fechados sobre as mãos com instrumentos
que se voltam no ar. Principiando
a queimar-se.
Isolando concepções geladas
que entram na terrível purificação universal.

E então levanta-se o exemplo dos violinos,
voando à altura das janelas.
Dos malmequeres aglomerados.
De galáxia em galáxia de encontro às cabeças.
E eis o que se ama: o sino
das mulheres e dos homens distantes.
Arco ligado que leva a música
pelos dedos à pedra.
Eis que se ama as cordas, as chaves,
a caixa soante dos mortos.





herberto helder
poesia toda
lugar
assírio & alvim
1996





22 julho 2020

herberto helder / os ritmos


[…]

Por acidente: fui ter ao inferno.
Eu passava à hora mais movimentada, na parte baixa da
cidade.
Era a minha cidade, a cidade onde vivo, de que tão bem
conheço as ruas e as casas, os labirintos, os nomes, a secreta mate-
mática dos fluxos e refluxos, as temperaturas.
Não é preciso ser estrangeiro – tomar comboios ou aviões,
atravessar as águas.
O inferno é o último segredo do nosso conhecimento quo-
tidiano.

[…]


herberto helder
apresentação do rosto
os ritmos
porto editora
2020






21 junho 2020

herberto helder / lugar



IV
Há cidades cor de pérola onde as mulheres
existem velozmente. Onde
às vezes param e são morosas
por dentro. Há cidades absolutas
trabalhadas interiormente pelo pensamento
das mulheres.
Lugares límpidos e depois nocturnos,
vistos ao alto como um fogo antigo,
ou como um fogo juvenil.
Vistos fixamente abaixados nas águas
celestes.
Há lugares de um esplendor virgem,
com mulheres puras cujas mãos
estremecem. Mulheres que imaginam
num supremo silêncio, elevando-se
sobre as pancadas da minha arte interior.

Há cidades esquecidas pelas semanas fora.
Emoções onde vivo sem orelhas
nem dedos. Onde consumo
uma amizade bárbara, um amor
levitante. Zona
que se refere aos meus dons desconhecidos.
Há fervorosas e leves cidades sob os arcos
pensadores. Para que algumas mulheres
sejam cândidas. Para que alguém
bata em mim no alto da noite e me diga
o terror de semanas desaparecidas.
Eu durmo no ar dessas cidades femininas
cujos espinhos e sangues me inspiram
o fundo da vida.
Nelas queimo o mês que me pertence.
Olho minha loucura, escada
sobre escada.

Mulheres que eu amo com um des-
Espero fulminante, a quem beijo os pés
supostos entre pensamento e movimento.
Cujo nome belo e sufocante digo com terror,
com alegria. Em quem toco levemente
levemente a boca brutal.
Há mulheres que colocam cidades doces
e formidáveis no espaço, dentro
de ténues pérolas.
Que racham a luz de alto a baixo
e criam uma insondável ilusão.

Dentro da minha idade, desde
a treva, de crime em crime — espero
a felicidade de loucas delicadas
mulheres.
Uma cidade voltada para dentro
do génio, aberta como uma boca
em cima do som.
Com estrelas secas.
Parada.

Subo as mulheres aos degraus.
Seus pedregulhos perante Deus.
É a vida futura tocando o sangue
de um amargo delírio.
Olho de cima a beleza genial
das suas cabeças
ardentes: — E as altas cidades desenvolvem-se
no meu pensamento quente.




herberto helder
poesia toda
lugar
assírio & alvim
1996




12 abril 2020

herberto helder / lenha, legna





Lenha – e a extracção de pequenos astros,
áscuas. De poro a poro,
os electrões das corolas. Somente no mais escuro
não há nada. No escuro, a carne é um buraco
invisual, e o que arde é o pão
no estômago, e nos brônquios
cortadamente
o ar. E o carbono devora sono a sono a inocência
das imagens. O que toca o órgão mais profundo
do sopro não é música
nem chama: apenas um dedo de mármore entre
as têmporas como
uma bala. E enquanto pontas de fogo marcam
a boca, morremos afogados,
no espelho, no rosto. E se a loucura um instante
levanta as pálpebras.
A grande válvula do corpo.
A escuridão, a terra.

Abril, 1980




Legna – e l´estrazione di piccoli astri,
scintile da poro a poro,
gli elettoni delle corolle. Solamente nel più buio
non c´è nulla. Nel buio, la carne è un buco
cieco, e quel che arde è il pane
nello stomaco, e nei bronchi
tagliatamente
l´aria. E il carbónio divora sonno a sonno l´innocenza
delle immagini. Quel che tocca l´organo più profondo
del soffio non è musica
né fiamma: soltanto un dito di marmo tra
le temple come
una pallottola. E mentre punte di fuoco segnano
la bocca, moriamo affogati,
nello specchio, nel viso. E se la follia per un istante
alza le palpebre.
La grande valvola del corpo.
L´oscurità, la terra.


Aprile, 1980



herberto helder
flash
a cura di carlo vittorio cattaneo
empira
roma
1987






25 fevereiro 2020

herberto helder / lugar



III
As mulheres têm uma assombrada roseira
fria espalhada no ventre.
Uma quente roseira às vezes, uma planta
de treva.
Ela sobe dos pés e atravessa
a carne quebrada.
Nasce dos pés, ou da vulva, ou do ânus —
e mistura-se nas águas,
no sonho da cabeça.
As mulheres pensam como uma impensada roseira
que pensa rosas.
Pensam de espinho para espinho,
param de nó em nó.
As mulheres dão folhas, recebem
um orvalho inocente.
Depois sua boca abre-se.
Verão, outono, a onda dolorosa e ardente
das semanas,
passam por cima. As mulheres cantam
na sua alegria terrena.

Que coisa verdadeira cantam?
Elas cantam.
São broncas e doces, mudam
de cor, anunciam a felicidade no meio da noite,
os dias brilhantes de desgraça.
Com lágrimas, sangue, antigas subtilezas
e uma suavidade amarga —
as mulheres tornam impura e magnífica
nossa límpida, estéril
vida masculina.
Porque as mulheres não pensam: abrem
rosas tenebrosas,
alagam a inteligência do poema
com o fogo podre de um sangue menstrual.
São altas essas roseiras de mulheres,
inclinadas como sinos, como violinos, dentro
do som.
Dentro da sua seiva de cinza brilhante.

O pão de aveia, as maçãs no cesto,
o vinho frio,
ou a candeia sobre o silêncio.
Ou a minha tarefa sobre o tempo.
Ou o meu espírito sobre Deus.
Digo: minha vida é para as mulheres vazias,
as mulheres dos campos, os seres
fundamentais
que cantam de encontro aos sinistros
muros de Deus.
As mulheres de ofício cantante que a Deus mostram
a boca e o ânus
e a mão vermelha lavrada sobre o sexo.

Espero que o amor enleve a minha melancolia.
E flores sazonadas estalem e apodreçam
docemente no ar.
E a suavidade e a loucura parem em mim,
e depois a europa tenha cidades antigas
que ardam na treva sua inocência lenta
e sangrenta.
Espero tirar de mim o mais veloz
apaixonamento e a inteligência mais pura.
— Porque as mulheres pensarão folhas e folhas
no campo.
Pensarão na noite molhada,
no dia luzente cheio de raios.

Vejo que a morte se inspira na carne
que a luz martela de leve.
Nessas mulheres debruçadas sobre a frescura
veemente da ilusão,
nelas — envoltas pela sua roseira em brasa —
vejo os meses que respiram.
Os meses fortes e pacientes.
Vejo os meses absorvidos pelos meses mais jovens.
Vejo meu pensamento morrendo na escarpada
treva das mulheres.

E digo: elas cantam a minha vida.
Essas mulheres estranguladas por uma beleza
incomparável.
Cantam a alegria de tudo, minha
alegria
por dentro da grande dor masculina.
Essas mulheres tornam feliz e extensa
a morte da terra.
Elas cantam a eternidade.
Cantam o sangue de uma europa exaltada.



herberto helder
poesia toda
lugar
assírio & alvim
1996








19 dezembro 2019

herberto helder / há dias...



Há dias em que basta olhar de frente as gárgulas
para vê-las golfar sangue. É quando
a pedra está a prumo, quando a estaca
solar se crava atrás das casas e amadurece
como uma árvore.
Mas também ouvi a água bater directa
nas trevas. Por um abraço do sangue eu estava
condenado
ao extravio mortal. Era um dom que me fundia
à substância primária
do terror.
E à riqueza e energia. E à tremenda
doçura humana. Vejo algerozes escoando a massa
das cúpulas, a forma, supremas rosas de pedra
rotativa.




herberto helder
flash
empira
roma
1987