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30 novembro 2024

sebastião alba / ninguém meu amor

 
 
 
Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obriga-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos
 
 
 
sebastião alba
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001
 



07 fevereiro 2024

sebastião alba / como se o mar

 




 

Quero a morte sem um defeito.
Sem planos brancos.
Sem que pequeninas luzes se apaguem
dentro dos ruídos.
Também a não quero providencial,
com um anjo vingador e secretíssimo
enfim pousado.
Nenhuma mitologia. Nenhuma
fruição poética. Assim: Como se o mar
me aspirasse os ouvidos… etc.
Mas súbita e civil,
com repartições abertas,
comércio, a luz graduada
nas altas paredes
dum bom dia sonoro.
 
 
 
sebastião alba
o ritmo do presságio
edições 70
1981
 




03 fevereiro 2022

sebastião alba / os escribas

 
 
 
Que augúrio se lhes venda no cabelo?
Que vento neles, venenoso, seca a mais arbórea
esperança de agasalho?
O que, luminescente, acode
à superfície do papel, não o revelam:
de cócoras, foram
por demais jovens para as solenes advertências,
e invisíveis como sombras sem orla.
Dum golpe, a noite
invade as ruínas da luz.
 
 
 
sebastião alba
a noite dividida
assírio & alvim
1996




 

10 julho 2021

sebastião alba / em cada mão

 
 
EM CADA MÃO, A PEDRA COM QUE INSULTO
o meu sorriso a demolir, no espelho
dos lavabos do bar. Oiço o tumulto
na sala. Aos 39, estou um velho,
 
dizem. Ora bem, concedo – seus filhos
da puta Largo as pedras, já cadentes
consomem-se e não chegam aos ladrilhos.
Agora, isco o sorriso e dou-lhes luta
 
ao balcão. Estes bêbados vigiam,
voantes, aquilinos sobre a minha
vida, a imagem que mais lhes dá no goto,
 
mas se enreda em quem sou. E desconfiam…
Então, erguendo o copo, assomo à imagem,
com a fralda de fora e um pé boto.
 
 
 
sebastião alba
a noite dividida
assírio & alvim
1996
 





13 setembro 2019

sebastião alba / a esperança enlaçava a âncora




A ESPERANÇA ENLAÇAVA A ÂNCORA
por sobre o banco de Antero…
foi-se a idade da bala no céu da boca
(pois que outro céu havia?)
e a da morte acerca de cujos lances,
na guerra, os tabus são omissos:
como ir-se babando pelo chão
atrás dum olho seu.
Esperarei até que as unhas se encaracolem,
sem um corredor entre os cimos das árvores
nem outra evasão em que vogue,
que a Ursa Maior me fareje
da sua constelação, e se aproxime.



sebastião alba
a noite dividida
assírio & alvim
1996





20 janeiro 2019

sebastião alba / domingo




É um céu azul
de nenhuma espessura
arqueado sem detalhe
ou outra palavra

Entre as colinas e as praias
nunca miniaturas de palmeiras
mobilaram assim
os olhos das mulheres.



sebastião alba
o ritmo do presságio
edições 70
1981







27 janeiro 2018

sebastião alba / o navegador




Plena, a cidade
Navega o dia. Ao lado,
o mar em que verte…
Passa lentamente,
sob as sombras
de alguns meridianos.
Só um vidro faísca:
Há séculos emite
sinais indecifráveis.


sebastião alba
o ritmo do presságio
edições 70
1981






05 fevereiro 2016

sebastião alba / génese



Foi assim
Todo o mar que eu via
se precipitou logo no meu coração
Que é de sal

E os peixes cristalizaram
com os olhos mortos
para as suas manhãs refractadas

Escutando bem
ouve-se como ao pé duma estátua
música parada



sebastião alba
o ritmo do presságio
edições 70
1981




20 maio 2015

sebastião alba / no meu país



No meu país
dardejado de sol e da caca dos gaios
só há estâncias
(de veraneio) na poesia.
Nossos lábios
a um metro e sessenta e tal
do chão amarelecido
dos símbolos
abrem para fora
por dois gomos de frio.
Nossos lábios outonais, digo,
outonais doze meses.
No entanto
à flor da possível
geografia
um frémito cinde
as estações do ano.

  
sebastião alba
o ritmo do presságio
edições 70
1981




24 janeiro 2014

sebastião alba / mais do que do outro




Mais do que do outro o meu reino é deste mundo 
mundo de desencontros marcados «slogans» que violam 
os espaços aéreos de países castos 
e se dissipam além dos limites naturais 
um laivo incendiando as espirais do rasto 
Mais do que do outro o meu reino é deste mundo 
mas de uma província de incerta geologia 
com uma história sem crónicas ou reis absolutos 
a única a que a constituição se refere numa clave de sol 
onde os cidadãos de todos os burgos 
pulam à rua das mãos estendidas de deus 
dessa nenhuma anexação polui a virgindade civil.


sebastião alba 




17 setembro 2013

sebastião alba / num álbum



Estar só
é meditar numa ausência
erguer os olhos do que, escrevendo, o constata
por uma ordem emanada já se sabe donde

ir só reivindica
sonega a caneta
dobra os papéis escritos
e conduz docemente
a uma longa suspeição de música.



sebastião alba
o ritmo do presságio
edições 70
1981


17 abril 2013

sebastião alba / palavras de ponta e mola




Palavras de ponta e mola
que anavalham
as roçagantes capas
de velhos mestres
de grácil esgrima
oleadas lâminas
nos umbrais dos becos
rasgando rápidas
a embuçada desumanidade
de quem passa
sórdidas, surtas
a reflectir o âmago
das sombras
Navalhas que alvejam
fantasmas de forasteiros
em busca de más mulheres
com terços taciturnos
Ruelas em roda
Pedras da periferia
Sevilhanas palavras
de ponta e mola.



sebastião alba
o ritmo do presságio
edições 70
1981



25 fevereiro 2013

sebastião alba / a bomba


  
Cessado o canto olhar-nos-emos todos
das pálpebras de pó que um vento poupa
fragmentados dos gestos e dos modos
que ousámos ter quando tivemos roupa.



sebastião alba
o ritmo do presságio
edições 70
1981



20 janeiro 2012

sebastião alba / esplanada




Como o copo que se eleva lentamente,
glacial, numa tarde de remorso,
os teus beijos duma grande difusão clara,
e o fumo dum cigarro à procura
dum ponto no mar.




sebastião alba
o ritmo do presságio
edições 70
1981