21 agosto 2025

maria teresa horta / laranja

  
Rosa branda na espuma
do meio-dia
com janelas abertas nas laranjas
 
E um risco de sombra
sobre o sal
traçado devagar, como uma franja
 
Meu claustro de musgo
e de fermento
onde o ferro se perde de humidade
 
Onde o tempo se inventa
noutro tempo
feito de musgo, framboesa e carne
 
 
 
maria teresa horta
poesia reunida
educação sentimental
dom quixote
2009
 

20 agosto 2025

fernanda botelho / as coordenadas líricas

  
Desviou-se o paralelo um quase nada
e tudo escureceu:
era luz disfarçada em madrugada
a luz que me envolveu.
 
A geométrica forma de meus passos
procura um mar redondo.
Levo comigo, dentro dos meus braços,
oculto, todo o mundo.
 
Sozinha já não vou. Apenas fujo
às regras emboscadas.
Em cada esfera desenho o meu relógio
– as minhas coordenadas.
 
 
 
fernanda botelho
as coordenadas líricas  (1951)
antologia da novíssima poesia portuguesa
m. alberta menéres e e. m. de mello e castro
moraes editora
1971
 
 


19 agosto 2025

judith teixeira / a sesta



 

 

O sol em calmaria sofucante,
abrindo as grandes azas luminosas
adejou sobre a serra culminante
abrazando-lhe as faces pedregosas…
 
Subindo luminoso, mais brilhante
abrangeu as planícies argilosas
emudecendo a fonte sussurante –
sequioso, anda, a sorver as rosas!...
 
As abelhas, zumbindo nos silvados,
lembram pingos de fogo, condensados,
a refulgirem sob as suas azas…
 
E descansando á sombra dos sobreiros
o encalmado rancho dos ceifeiros
foge aos seus beijos rubros como brazas!
 
Agosto – 922
 
 
 
judith teixeira
castelo de sombras
1923
 




 

18 agosto 2025

salette tavares / dorme o meu peso de água...

  
 
Dorme o meu peso de água numa fonte
um brilho de pena que me dói
molhada, escorrida, plena
doçura de praia serena
um ainda que se foi.
 
Dorme o meu peso de pedra sob o sol
um perto de pavor em que me movo
rica, lúcida, límpida
certeza loira de trigo
na dúvida fatal que te persigo.
 
Dorme o meu peso de hera sob a chuva
um longe de aventura que me segue
escassa, pálida, breve
ternura que a tarde escreve
um sempre que nada dura.
 
 
 
salette tavares
espelho cego (1957)
antologia da novíssima poesia portuguesa
m. alberta menéres e e. m. de mello e castro
moraes editora
1971
 



 

17 agosto 2025

adília lopes / almoço do trolha

  
Pobríssimos
as cabeças cortadas
mas tão felizes
homem mulher e bebé
de um tijolo
do patrão
fizeram um assento
o Estado Novo impede-os
de tirar os sapatos
o Partido Comunista também
desce sobre eles
o Espírito Santo
do almoço
vão comer língua?
 
 
adilia lopes
clube da poetisa morta (1997)
caras  baratas
antologia
relógio d´água
2004




16 agosto 2025

natália correia / cântico do país emerso

  
I
 
ENQUANTO que no mar das Caraíbas
Os albatrozes os peixes-voadores
Os sargaços a bússola a espuma
E a nossa Senhora dos Navegadores
Se punham ao serviço de uma
Nação acabada de nascer,
 
Terra transportuguesa de longo curso
Onde os homens andam de tronco nu
E a barba produz ardor como a urtiga
Onde o instinto lê no voo das aves
Como uma sibila e o medo é abandonado
No país das sombras do urubu:;
 
Terra onde as decisões têm a rapidez
Do leopardo e a fome desenha no ar
Uma hipérbole arquejante; terra onde
A fraternidade é rude como a flor do cardo
E os homens usam a alma como um instrumento cortante;
 
Terra onde por enquanto não há
Encontro às seis horas no bar
Nem estilo de vida nova-iorquino
Nem razões para um homem se casar
Nem o fim-de-semana arrabaldino
Onde não há vivendas para alugar
Com cadeiras de verga sobre a relva;
 
Selva atónita ainda pela desfloração
O violento estupro dos machados
As panteras tensas da iniciação
O batuque dos seus sentidos alterados
Os tigres encolhidos da contracção uterina
Os gamos assustados dos seus peitos
As gazelas da sujeição à força masculina
E o elefante sossegado dos instintos satisfeitos…
 
Terra saudada ainda pelas
Estrelas-do-mar e outras estrelas
Meninas dos olhos dos marujos
Extasiados do avesso sempre
Que um português se fez ao mar
Não para descobrir a Índia
(Isso era o começo de um mundo
Com ondas por fecundar) mas
Para fazer um filho às vagas
Fêmeas de gosto salgado e de ancas
Largas. Mulheres que aderem à pele
Como a salsugem. As únicas
Que verdadeiramente se estorcem e rugem;
 
 
 
natália correia
cântico do país emerso
antologia poética
dom quixote
2018





15 agosto 2025

fiama hasse pais brandão / sistema solar



 
 
Cada voz tem o seu contraponto
num ruído natural. Cada silêncio,
no silente espaço que rodeia, por vezes,
cada coisa. À beira do berço as bocas
percutem sobre a criança. Depois, no sono,
abrem-se como qualquer flor. Sobre
os cílios da adolescente tecem frases.
 
                               *
 
À beira do berço as bocas
percutem sobre a criança. Depois no sono
adensam-se como qualquer árvore. Sobre
os cílios da adolescente tecem frases.
Cada silêncio corporiza-se no espaço.
As coisas têm eixos e rodam
com ruídos diferentes do seu nome.
E o Sol tramonta entre vestígios,
Além dos montes e vales e o mar.
 
                               *
 
E o Sol tramonta sobre as nossas casas
e os montes e vales e o nosso mar.
quando um verso marca o lugar das coisas
elas aí ficam para sempre. O Sol
que perpassa em cumes e em cristas
nasce nas arestas serranas do nascente
e vai até ao mar em sete versos.
 
 
 
fiama hasse pais brandão
cenas vivas
relógio d'água
2000




 

14 agosto 2025

natércia freire / hoje, mãe, chega o verão

  
 
                        «Hoje, Mãe, à meia-noite e trinta e cinco,
                        Chega o Verão. Eu vou esperá-lo na varanda.»
 
                        Luís Manuel – 8 anos

 

 
Sobre as copas das árvores da mata
É que o vias chegar
Deus generoso, antigo
A navegar
Desdobrando os navios coloridos
Dessas manhãs sulinas
A mergulhar nas águas submarinas
Verdes, verdes de jóias e sargaços.
 
E sob a tarde em brasa
E cantos roucos
De pássaros com sede
Fogem-te azuis os olhos de criança
Para as viagens que se chamam Espanha.
E Julho, Verão, Baviera, são cometas
E carrocéis em límpidas clareiras.
 
Ouves bronzes de anúncios musicais
No Verão que te pertence e que te abraça
No Verão que tu abraças como Irmão
No Verão dos frutos, teus Irmãos também.
 
Nos somos passageiros, sob tendas
De nómadas, cegando à claridade…
 
Mas para ti, as lendas
É que são a Verdade.
 
 
 
natércia freire
foi apenas ontem (1977-1987)
antologia poética
assírio & alvim
2001
 

13 agosto 2025

tereza balté / a folha não é livre

  
 
A folha não é livre tem um caule
uma raiz suposta a que se prende
à terra à atmosfera confluente
que lhe traz alimento imponderável
 
no interior do quarto a folha verde
cativa empalidece transparente
ao pouco sol que a janela consente
volta para a luz a face mais atreita
 
aceita humilde a réstia que aproveita
afila o caule subtiliza a sede
subsiste planta verde por uns meses
 
até ao tempo da ternura extrema
em que não é mais flor fica semente
e em silêncio encontram-na liberta
 
 
tereza balté
horizontes portáteis
editorial inova
1977


12 agosto 2025

eduarda chiote / inteireza

  
De obsessivo sol, surgia, na praia,
a inteireza severa
de um rochedo
se oferecendo à voracidade do magma
e ao que nele, de mais fundo,
almejava
sangrar.
 
O mênstruo das águas
coroava-o,
e era por essa cor tingida de pulmões
que algo de muito agudo,
um bicho, de um ocre indistinto
da sua natureza,
deslizava. Respirando-lhe, nos interstícios,
um silêncio
possesso de morte.
 
Em inesgotável nudez, a pele de um homem
escalava-o
e tão de dentro para fora, tão inteira e exacta,
que o gesto
lhe apagava a sugestão
de eternidade.
 
 
 
eduarda chiote
a celebração do pó
asa
2001
 



11 agosto 2025

sophia de mello breyner andresen / inicial

  
 
O mar azul e branco e as luzidias
Pedras – O arfado espaço
Onde o que está lavado se relava
Para o rito do espanto e do começo
Onde sou a mim mesma devolvida
Em sal espuma e concha regressada
À praia inicial da minha vida.
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
dual
caminho
2004
 

10 agosto 2025

irene lisboa / penso que se não vive do que passou

  
 
PENSO que se não vive do que passou. Amámos criaturas que hoje nos repelem. Como refazer um tempo liquidado, irrevertível, em que as idades e os caracteres eram outros? Não. Cada tempo se bastou e a si próprio se consumiu; os seus resíduos não têm aparência, vitalidade nem calor. Resignemo-nos ao presente, constante, absorvente, tenha que carácter tiver.
 
 
irene lisboa
1949 a 1957
solidão II
portugália editora
1966




 

09 agosto 2025

florbela espanca / eu

  
Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada… a dolorida…
 
Sombra de névoa ténue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...
 
Sou aquela que passa e ninguém vê…
Sou a que chamam triste sem o ser…
Sou a que chora sem saber porquê…
 
Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!
 
 
florbela espanca
sonetos
livraria bertrand
1981