11 dezembro 2024

miguel oliva teles / nesta manhã

 
 
 
nesta manhã
o sol tímido e inclinado não chega
para desenvencilhar as mãos apertadas pelo frio
fiz apenas desenhos na estrada
recortando o perfil das árvores
e dando sombras às grades do jardim.
 
nesta manhã
chegam-me várias saudades
amores como esse sol
de uma fervura imensa
mas distante radiância.
 
e as mãos, guardo-as no peito
porque é nessas figuras cortadas
nas silhuetas de luz e escuro
e nas texturas que guarda o rocio
que vos conjuro
 
nas mãos ao peito
(quais luvas!)
há saudade
e há calor aprisionado.
 
 
 
miguel oliva teles
errando
editora urutau
2021




10 dezembro 2024

eugénio de andrade / um rio te espera

 



 

 

Estás só, e é de noite,
na cidade aberta ao vento leste.
Há muita coisa que não sabes
e é já tarde para perguntares.
Mas tu já tens palavras que te bastem,
as últimas,
pálidas, pesadas, oh abandonado!
 
Estás só
e ao teu encontro vem
a grande ponte sobre o rio.
Olhas a água onde passaram barcos,
escura, densa, rumorosa
de lírios ou pássaros nocturnos.
 
Por um momento esqueces
a cidade e o seu comércio de fantasmas,
a multidão atarefada
em construir pequenos ataúdes
para o desejo mais puro e mais sagrado,
a cidade onde cães devoram,
com extrema piedade,
crianças cintilantes
e despidas.
 
Olhas o rio
como se fora o leito
da tua infância:
lembras-te da madressilva
no muro do quintal,
dos medronhos que colhias
e deitavas fora,
dos amigos a quem mandavas
palavras inocentes
que regressavam a sangrar,
lembras-te da tua mãe
que te esperava
com os olhos molhados de alegria.
 
Olhas a água, a ponte,
os candeeiros,
e outra vez a água;
a água!,
água ou bosque,
sombra pura
nos grandes dias de verão.
 
Estás só.
Desolado e só.
E é de noite.
 
 
 
eugénio de andrade
até amanhã (1951-1956)
poemas
edit. inova
1971




09 dezembro 2024

vasco graça moura / o mês de dezembro

 
 
 
V

cada cidade tem uma gramática
e sombrias gaivotas; a juventude
tem um fulgor terrestre; ambas
a zona de fractura, o tempo, a orla
 
vulnerável; o acesso ao inverno
passa por elas. cada cidade
tem um teclado; contraponho:
a juventude vai-se deformando
 
mas ter amado e conhecido não lhe interessa
são canções de experiência, simulacros
de rosa doente. apenas o presente
lá onde o sol se cala para ambas
 
 
 
vasco graça moura
o mês de dezembro
poesia 1963/1995
quetzal editores
2007



 

08 dezembro 2024

camilo castelo branco / os amigos

 



 

Amigos cento e dez, e talvez mais,
Eu já contei. Vaidades que eu sentia!
Supus que sobre a terra não havia
Mais ditoso mortal entre os mortais.
 
Amigos cento e dez, tão serviçais,
Tão zelosos das leis da cortesia,
Que eu, já farto de os ver, me escapulia
Às suas curvaturas vertebrais.
 
Um dia adoeci profundamente.
Ceguei. Dos cento e dez houve um somente
Que não desfez os laços quase rotos.
 
– Que vamos nós (diziam) lá fazer?
Se ele está cego, não nos pode ver…
Que cento e nove impávidos marotos!
 
 
 
camilo castelo branco
os poemas da minha vida
mário soares
público
2005
 
 
 


07 dezembro 2024

manuel resende / porto-cidade sem nome

 
 
 
Esse abismo despejado sobre nós,
Que foi azul e se enche do ser nocturno dos homens,
Vibrado de luz no espesso nevoeiro nocturno –
Esse abismo é um deserto aéreo onde não se vive,
Porque é pura a distância à nossa volta,
Com a sua presença enorme, sem palavras.
É tão grande, tão completamente tudo,
Que aqui pareço ser livre e grande como ele.
Mas onde está tudo? E que tudo? Tudo mais não é do que
Um futuro que se aproxima,
Uma coisa que não se sabe e perigosa.
Que ser é este que imprime figuras no ar?
É o longe e o perto, o antigo e o presente, tempo esmagado
         contra
Um ar mudado em parede volumosa e sólida.
Nele não há pátria, nem vida, nem minutos que se sucedam.
A máquina da cidade parou de respirar.
Um homem que passeie neste desdobrável d eprédios
Perde sem saber o seu nome,
Entre os cães que dormem na rua.
E nem o rio que corre corre, congelado.
 
 
 
manuel resende
em qualquer lugar seguido por
o pranto de bartolomeu de las casas
poesia reunida
edições cotovia
2018
 



06 dezembro 2024

luís miguel nava / o tanque de bashô

 
 
 
          O tanque junto a que o crepúsculo mo traz é o de Bashô.
          A água maravilha-se.
 
 
          Inquinam-se as imagens, a pequena rotação do outono, o dia decom-
põe-se, o sangue explode contra a claridade.
 
          Um nó de leite a nudez cresce pela água



luís miguel nava
onde à nudez
poesia completa (1979-1994)
publicações dom quixote
2002




05 dezembro 2024

manuel gusmão / conheci um jovem

 
 
Conheci um jovem que me dói às vezes,
um pouco, no futuro. e não tenho amigas.
perco-me nelas, desentendo-me ao ponto
de já não estar ali e de correr depois
pela coberta dos navios, pelas pontes,
pelas praias onde a neve cai.
 
Tenho o doce do teu sangue alastrando
Em pasta, nuvens pesadas no céu da
Boca. Se eu não te morresse como estarias tu
Crescendo, meu querido amigo,
                    e u é?
 
E essa que me chamas é ainda já
a outra, a escura floresta
                                     e selvagem
 
e áspera e forte
que conheço de se tocarem as pétalas
                    na paixão?
 
 
 
manuel gusmão
dois sóis, a rosa
a arquitectura do mundo
a rosa falante ou o amoroso palimpsesto (1972, 1982)
caminho
1990




04 dezembro 2024

luiza neto jorge / recanto 2

 
 
 
Viver, entretanto, é ver, ir vendo
e também ver inclui dormir
sem que nada se desfaça ou exclua
no interior dos sonhos.
 
Pensemos no comércio de viver: passagem dos navios
quando, a passar, se retém a espessa
água do tempo, da tempestade.
 
Um comércio, apenas – desvio da moeda
da trajectória do ouro
para o papel.
 
Sempre viver inclui andar percorrer voar
de avião ou com os braços ou num ser de mais
rodas que nos conduza
a outro sentido ambulatório.
 
 
 
luiza  neto jorge
dezanove recantos (1970)
poesia
assírio & alvim
1993
 



03 dezembro 2024

luís veiga leitão / filho do povo

 
 
 
Filho do povo criado nas alturas
com pinheirais em torno e um vento cru
rachando a solidão das fragas duras
que nos tratam por tu
 
 
Daí
esta sede saibrosa que nos cresta
(nem sei ó meu irmão como tu medras)
 
 
Daí
esta fome surda de giesta
comendo a terra das próprias pedras
 
 
Filha dos montes que não têm nome
e pastora de um corpo na verdura
que o rebanho do tempo breve come
 
 
– Um relâmpago a tua formosura
 
 
 
luís veiga leitão
ciclo de pedras
portugália
1964





02 dezembro 2024

pedro homem de mello / carta a eugénio de andrade

 
 
 
Porto. Abril. Tantos de tal…
E contínuo a teu lado,
Hoje como ontem. Igual
A mim próprio: abandonado
Por todos, menos por ti.
Posto que tão diferente
Seja o berço em que nasci
Da praia, livre, onde passas
Com Sol a pino. Sorriste
Alheio às minhas desgraças?
Vê: mendigo sou que aceita
Mesmo uma côdea de pão,
Mas que traz na mão direita
A flor que as roseiras dão…
Vela pagada ou acesa?
– Sei que me podem comprar
Tudo, menos a nobreza
De sorrir quando há luar…
 
 
 
pedro homem de mello
eu desci aos infernos (1972)
poesias escolhidas
imprensa nacional-casa da moeda
1983




01 dezembro 2024

manuel alegre / lusíada exilado

 
 
 
Nem batalhas nem paz: obscura guerra.
Dói-me um país neste país que levo.
Sou este povo que a si mesmo se desterra
meu nome são três sílabas de trevo.
 
Há nevoeiro em mim. Dentro de abril dezembro.
Quem nunca fui é um grito na memória.
E há um naufrágio em mim se de quem fui me lembro
há uma história por contar na minha história.
 
Trago no rosto a marca do chicote.
Cicatrizes as minha condecorações.
Nas minhas mãos é que é verdade D. Quixote
trago na boca um verso de Camões.
 
Sou este camponês que foi ao mar
lavrou as ondas e mondou a espuma
e andou achando como a vindimar
terra plantada sobre o vento e a bruma.
 
Sou este marinheiro que ficou em terra
lavrando a mágoa como se lavrar
não fosse mais do que a perdida guerra
entre o não ser na terra e o ser no mar.
 
Eu que parti e que fiquei sempre presente
eu que tudo mandava e nunca fui senhor
eu que ficando estive sempre ausente
eu que fui marinheiro sendo lavrador.
 
Eu que fiz Portugal e que o perdi
em cada porto onde plantei o meu sinal.
Eu que fui descobrir e nunca descobri
que o porto por achar ficava em Portugal.
 
Eu que matei roubei eu que não minto
se vos disser que fui pirata e ladrão.
Eu que fui como Fernão Mendes Pinto
o diabo e o deus da minha peregrinação.
 
Eu que só tive restos e migalhas
e vi cobiça onde diziam haver fé.
Eu que reguei de sangue os campos das batalhas
onde morria sem saber porquê.
 
Eu que fundei Lisboa e ando a perdê-la em cada
viagem. (Pátria-Penélope bordando à espera.)
Eu que já fui Ulisses. (Ai do lusíada:
roubaram-lhe Lisboa e a primavera.)
 
Eu que trago no corpo a marca do chicote
eu que trago na boca um verso de Camões
eu é que sou capaz de ser o D. Quixote
que nunca mais confunda moinhos e ladrões.
 
Eu que fiz tudo e nunca tive nada
eu que trago nas mãos o meu país
eu que sou esta árvore arrancada
este lusíada sem pátria em Paris.
 
Eu que não tenho o mar nem Portugal.
(E foi meu sangue o vinho meu suor o pão).
Eu que só tenho as lágrimas de sal
que me deixou el-rei Sebastião.
 
Nem o Gama nem os doze de Inglaterra.
O herói sou eu: aqui sem pão nem glória.
Eu camponês no mar e marinheiro em terra
Todo-O-Mundo e Ninguém. Sou eu que faço a história.
 
Quem foi que fez de mim este estrangeiro
Este sem pátria a quem a Pátria dói?
Eu que fui camponês poeta e marinheiro
eu que fiz Portugal quero saber quem foi
 
Lusíada exilado. (E em Portugal: muralhas.)
Se eu agora morresse sabia por quê.
Venham tormentas e punhais. Quero batalhas.
Eu que sou Portugal quero viver de pé.
 
 
manuel alegre
o canto e as armas
centelha
1974
 



30 novembro 2024

sebastião alba / ninguém meu amor

 
 
 
Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obriga-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos
 
 
 
sebastião alba
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001
 



29 novembro 2024

jean genet / o condenado à morte




 

                                                          a Maurice Pilorge, assassino de vinte anos
 
 
O vento que rola um coração no pátio dos recreios, um anjo que soluça preso numa árvore, o pilar de céu que o mármore retorce, abrem portas de emergência à minha noite.
 
Um pobre pássaro que agoniza e o travo da cinza, a memória de um olho adormecido na parede e este doloroso punho que ameaça o firmamento, descem-me o teu rosto à palma da mão.
 
Mais duro e leve que uma máscara, o teu rosto tem na minha mão mais peso do que a jóia em dedos de um receptador quando a mete ao bolso; está afogado em pranto. É sombrio e feroz, coberto por um elmo de folhagem verde.
 
Tens o rosto severo: és um pastor grego. Sempre a fremir dentro das mãos que fechei. Com uma boca de morta onde os olhos são rosas e no nariz há o bico, talvez, de um arcanjo.
 
O gelo cintilante de um pudor maldoso que polvilhava o teu cabelo com um aço de astros claros, e te coroava a testa de espinheiros do canavial, que mal sagrado sabe desfazê-lo se o teu rosto canta?
 
Diz-me que desgosto doido te faz explodir nos olhos esse desespero tão forte que uma dor bravia e desvairada aparece, apesar do gelo que choras, a enfeitar-te a boca redonda com um sorriso de luto?
 
Esta noite não cantes aos “Latagões da Lua”. Mais vale, ó garoto de ouro, seres princesa pensativa de uma torre, a sonhar com o nosso pobre amor; ou aquele grumete loiro que vigia no cesto da gávea,
 
Que à noite, entre marinheiros em cabelo caídos de joelhos, desce para cantar na ponte a “Ave Maris Stella”; todos a agarrar no membro que salta, já, em mãos de larápio.
 
 (...)
 
 
 
jean genet
o condenado à morte
genet, seguido de o condenado à morte
de jean genet
yukio mishima
trad. de aníbal fernandes
hiena editora
1986