31 outubro 2025

rui diniz / ode aos ateadores de incêndio

  
Na nudez dos mares pousei mãos curtidas.
Acendi o fogão no quarto. «Cheira aqui
a petróleo.» Era com efeito um cheiro de lacre,
de ganchos para o cabelo queimado ao
rubro. Fiz também queimar nessa noite alguns
castiçais de velas – espécimes preciosos
e raríssimos. Havia sobre as mesas e
o soalho fósforos franceses. Pus fogo
a uma vivenda junto ao mar. fiz isso em
memória de Ana de Rivera que passava as
noites de inverno no seu quarto,
queimando fósforos.
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022




30 outubro 2025

rui lage / da limpeza das matas



 

 
Desconhecem os versos
que escreves na terra
a firmes golpes de enxada
ou que recolhes em cestos,
maçãs de sol,
rotundos pêssegos
 
líricos frutos para os quais
não há leitores.
 
Ignoram como te segues
no voo da perdiz
quando o machado abala o tronco
no coração da floresta.
 
 
 
rui lage
corvo
quasi
2008
 



 

29 outubro 2025

rui nunes / vésperas portuguesas



 

 
o dia corre de poente para nascente, a chuva
é um lençol tenso sobre os velhos que separam
as lembranças, com palavras que não chegam
a dizer: esquecem os subterfúgios do tempo
e avançam cambaleantes pelas grandes fissuras
entregues ao despovoamento alucinante
 
no interior dos carros, os crimes
são ligeiras confidências
 
 
 
rui nunes
ofício de vésperas
relógio d’ água
2007
 



 

28 outubro 2025

rui costa / o homem azul

  
 
Há muito que tento escrever um poema
sobre o canteiro de um homem azul no labor
das mãos. O homem seria cego porque a visão
não facultaria o modo de selecionar os minerais ou
a resistência das proteínas à fúria das ideias trazidas
pelo vento. Na verdade, as mãos deste homem não seriam
mãos como as de outros animais – dos corvos, por exemplo –
capazes de ouvir, do fundo intuído da sua genética
consciência, mesmo aqueles pequenos actos que ainda não
aconteceram. O homem azul já aprendeu, aliás, que cada
tentativa de despojamento traz consigo mais um
camião de areia
que acaba por ser demasiado sólida perante o orgulho das
pétalas mais breves.
Quando alguém volta a cabeça para baixo o céu começa
a duvidar e então, diz o azul do mundo, a planta que precisa
de atenção vê o bafo ainda quente do homem azul.
 
 
 
rui costa
«não sou quem era quando lhe mordi a orelha»
mike tyson para principiantes
antologia poética
assírio & alvim
2017





 

27 outubro 2025

ruy belo / em cima de meus dias

  
 
Muita gente me tem falado a meu respeito
como quem me chamasse pelo nome e eu me voltasse
e nesse nome dito nessa boca fosse toda a minha vida
e eu morresse quando entre pinhais quem me chamara a fechasse
 
Muita gente me tem falado a meu respeito
mas eu cresço e decresço não reparo e anoitece
e já nem sei ao certo quantos dias meço
Regresso com o gado contra o sol rasante
Mas é de névoa ou fumo o algodão que cobre as casas
aonde regressamos atraídos pela luz que já nos campos se consome?
 
Os ciprestes os pássaros saúdam-me e eu passo
com um olho vazado transpareço o meu passado
e tudo esqueço e peço mesmo a Deus que esqueça quanto sou
além dessa medida simples onde me vasou
Sabermos nós que a face de algum mar ao pôr-do-sol pode mudar
e nenhum dia-a-dia consentir ao homem mais que a morna superfície
dos gestos por que troca a mais íntima morte que merece
 
Nada na minha poesia é meu
juro por Deus dizer toda a verdade
Ponho a mão na cabeça o dia é escuro e vago e eu respiro
Espero pela manhã como quem nasce
Ninguém sabe o meu nome porque
eu já perdi ao longe alguns dos olhos
e fui feliz em cafés de província onde me vi sentar
 
Digam que foi mentira, que não sou ninguém,
que atravesso apenas ruas da cidade abandonada
fechada como boca onde não encontro nada:
não encontro respostas para tudo o que pergunto nem
na verdade pergunto coisas por aí além
Eu não vivi ali em tempo algum
 
É de manhã caminho nem meus passos oiço
oitenta passos diz-se que darei
Vão-se fechando os dois alinhamentos das moradas
arredonda-se o largo, alguns problemas camarários
Duvido de mim próprio: quem serei?
O carro rega coisas tão profundas como esta
Meu Deus meu Deus, que mal eu fiz?
Eu estive em Dinard e vou talvez casar
Acordo e transistorizo os dois ouvidos numa música abundante
 
Muita gente me tem falado a meu respeito
mas eu cresço e minguo certas vezes anoitece
Sou coisa que se molha encolhe e envelhece
tudo me aquece e tudo me arrefece
Dois pés e duas mãos, algumas pás de terra
E sabem mesmo que o meu nome é Rá, por isso me conhecem
Sou a doença e sou onde me dói
sou sítio onde se nega que se morre
Tem graça haver quem fale a meu respeito
 
 
 
ruy belo
todos os poemas I
sete coisas verdadeiras
assírio & alvim
2004





26 outubro 2025

rui knopfli / o velho

  
 
Não envelheço. Torno-me antigo.
O velho sempre viveu em mim,
sempre o pressenti no olhar
magoado demorando-se nas coisas,
em certa lentidão não premeditada
dos gestos e nas lembranças confusas
de uma outra recuada idade.
Sempre aflorou na mão e na estima
triste que se estende aos amigos,
na aresta de desconsolo que espreita
as minhas horas de amor.
O velho sempre viveu em mim.
Eis que, enfim, o reboco
se lhe começa a assemelhar.
 
 
 
rui knopfli
maxila triste
memória consentida
20 anos de poesia 1959/1979
imprensa nacional -casa da moeda
1982
 



25 outubro 2025

marta navarro; paola d´agostino / dos meus quartos de hotel

  
 
 
Dos meus quartos de hotel
relembro os objectos que fui deixando para trás
Em Granada um chapéu-de-chuva grená
em sítio incerto um soutien branco
em Andorra um gorro lilás
em Lyon a travessa de prata da avó
Lista cacofónica com que pretendia deixar a minha marca
uma forma antecipada de inscrição na pedra
e a aprendizagem lenta do desapego
 
 
 
 
marta navarro; paola d´agostino
dançam; dançam
edit. a tua mãe
2014




 

24 outubro 2025

ana paula inácio & sandra costa / menos uma hora nos açores

 

 
9.
 
Devia ter sido o último poema do ano.
Um sino na paisagem a marcar
as horas. Um desalinho momentâneo
como uma arritmia, demasiado breve
para ser sombra, não ousando ser
árvore para que nenhum pássaro
ali pouse e seja música.
 
Chegando sempre tarde,
é o primeiro, e nele ressoa
a enumeração de todos
os elementos que nos circundam
mas que, por inabilidade
semântica ou biológica,
são sempre distância.
 
 
 
ana paula inácio & sandra costa
menos uma hora nos açores
volta d´mar
2022








23 outubro 2025

paulo campos dos reis / a empregada do café



 

 
A empregada disse olá
acordando-me da distância.
Com a condescendência justa
para quem, como eu
ocupou a mesa
para não beber café.
 
O que deseja, disse.
Pergunta bonita.
Um café, respondi.
 
 
paulo campos dos reis
habilitações literárias
volta d´mar
2022
 




 

22 outubro 2025

sebastião belfort cerqueira / sexto poema sobre o mar

 


 

 
Quando eu morrer
Deitem-me as cinzas
Quais cinzas
Deitem-me inteiro ao rio
E deixem-me seguir
O trilho frio
Até ao mar
 
Quando eu morrer
E me acharem na margem
Só vos peço um empurrão ligeiro
 
Depois vou a boiar
Como um pau
 
Vou a dormir
Como uma pedra
 
Para encravar
A engrenagem do maior cargueiro.
 
 
 
sebastião belfort cerqueira
está um dia lindo
edições sempre-em-pé
2021
 




21 outubro 2025

joão miguel fernandes jorge / e tu perguntas

  
 
E tu perguntas
fechando o corpo e a casa
o que fazemos aqui
como saímos daqui?
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019






20 outubro 2025

egito gonçalves / outubro

  
 
Os mortos esperam o frio de Novembro
enquanto as pétalas dos crisântemos se vão definindo
neste meio de Outubro, hereditariamente mortiço.
Os mortos estão esperando! Os cardíacos, os fuzilados,
os arrogantes, os tuberculosos, os suicidas
estão esperando as sus flores, o seu pretexto
para se imporem ao coração dos existentes
e manejarem a saudade como um látego,
rasgando a carne dos joelhos que amaram.
É a hora de nos ditarem a contemplação de pequenos objectos
sepultados no fundo de gavetas incómodas…
é a hora de se transformarem em flechas
e apresentarem os retratos fidelíssimos
para serem salgados de lágrimas veementes.
Ridículo oferecer-lhes um passeio no rio,
constelações em marcha, conferências sobre o sexo,
magazines ilustrados, foguetes luminosos…
o choro é essencial; Novembro não esquece,
reforça os seus pilares, não tardará a erguer-se.
Com os relógios quebrados contra o tempo
os mortos aguardam embrulhados nas horas que não têm,
enquanto as pétalas dos crisântemos já se torcem, disformes,
como a dor que depositaremos sobre os túmulos.
 
 
egito gonçalves
o esperado fim do mundo já partiu
uma antologia
língua morta
2020





 

19 outubro 2025

ángél gonzález / o outono atravessava

  
 
O Outono atravessava
as colinas de frágeis
tremores. Cada
folha caída
fazia estremecer uma montanha.
 
Leve rumor de luzes e de brisas
rolava pelo vale, aproximava-se.
Os pássaros deixavam bruscamente
trémulos os ramos
caindo rumo ao céu, arrebatados
por uma força estranha.
 
As carnosas urtigas
comprimiam-se
como um rebanho
inquieto. Levantavam da água
a cabeça, os juncos.
As verdinegras silvas
cresciam.
Imperceptíveis, mais delgadas
pela tensa postura de quem espera,
as ervas, desejantes…
                                        E tu chegavas,
e uma amarelenta paz de folhas caídas
refazia o silêncio atrás de ti.
 
 
ángél gonzález
para que eu me chame ángel gonzález
uma antologia
selecção e tradução de miguel filipe mochila
língua morta
2018
 



18 outubro 2025

josé saramago / até ao fim do mundo

  
 
É tempo já, Inês, o mundo acaba
Em que amor foi possível e urgente;
A promessa talhada nessa pedra,
Ou é cumprida hoje, ou tudo mente.
 
 
 
josé saramago
os poemas possíveis
porto editora
2018




17 outubro 2025

josé gomes ferreira / melodia

  
 
II
Há anos de raiva
que te busco em vão.
Melodia!
 
No sopro dos meus versos,
nas fontes com sede,
nas portas que rangem,
na cólera do mar aberto…
 
Mas quem te ouve, Melodia,
para além do contorno do silêncio?
 
Pobre voz que trago em mim
e há-de morrer ignorada
nas trevas sum sol profundo
sem luas de superfície.
 
 
 
josé gomes ferreira
melodia 1932
poesia I
portugália
1972




16 outubro 2025

jorge luís borges / a luís de camões

  
 
Sem cólera nem mágoa arromba o tempo
As heroicas espadas. Pobre e triste,
À nostálgica pátria regrediste
Pra com ela morrer nesse momento,
O capitão, no mágico deserto.
Tinha-se a flor de Portugal perdido
E o áspero espanhol, antes vencido,
Ameaçava o seu costado aberto.
Quero saber se aquém da derradeira
Margem compreendeste humildemente
Que o império perdido, o Ocidente
E o Oriente, o aço e a bandeira,
Perduraria (alheio a toda a humana
Mudança) em tua Eneida lusitana.
 
 
 
jorge luís borges
obras completas 1952-1972 vol. II
o  fazedor (1960)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998




15 outubro 2025

henri michaux / je vous écris d´un pays lointain

  
2
 
Quando se passeia no campo, confidencia-lhe ela ainda, é possível encontrar-se no caminho massas consideráveis. São montanhas e, mais cedo ou mais tarde, temos de vergar os joelhos. Não serve de nada resistir, não poderíamos avançar mais, nem que nos fizéssemos mal.
 
Não é para magoar que o digo. Poderia dizer outras coisas, se quisesse realmente magoar.
 
 
 
henri michaux
(escrevo-lhe de um país distante, 1942)
antologia
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
1999
 



14 outubro 2025

billy collins / como sempre

  
 
Depois de nos termos separado, os barcos
continuarão a sair do cais de madrugada.
O salmão batalhará até às piscinas*,
um mês seguir-se-á a outro na parede.
 
A magnólia florirá
e a abelha, a nobre abelha –
vi uma lá atrás na minha caminhada –
abrirá caminho para o botão.
 
*Penso nas piscinas como lugares onde os salmões vão para se repro-
duzir, para depositar os ovos depois da difícil viagem corrente acima.
(Billy Collins)

 
 
 
billy collins
a aranha irlandesa & outros poemas,
trad. francisco José craveiro de carvalho
do lado esquerdo
2023


13 outubro 2025

paul éluard / fresco

  
 
V
 
Partiu de um belo Verão
Para celebrar os ramos mortos
De uma floresta preta e branca
Igual à noite destruída
 
Partiu forte e valente
Para descansar na praia
Com uma mão que descansa
Um trabalho demasiado bem feito
 
Partiu da sua infância
Do mais fundo da esperança
Para encontrar o seu próprio fim
Todo enrugado de remorsos.
 
 
paul éluard
a cama a mesa
tradução de luís lima
barco bêbado
2021




12 outubro 2025

manuel neto dos santos / terra firme, mar de anil



 
19
 
Quando um turbilhão, na alma, se desata
no ranger das vagas contra a barcaça anciã…
Aí na terra firme, dourada, pela manhã
a linha de um sorriso é curvatura ingrata.
 
 
manuel neto dos santos
terra firme, mar de anil
editora urutau
2021


 

11 outubro 2025

leonor castro nunes e marcos foz / a bifurcação dos ossos



 
16.
 
As narrativas ideológicas fluem nas costas de um triste sozinho no café
– a salvação do mundo é uma ocorrência diária no meu bairro
cada vez mais marginalizado pelos forasteiros e pela minha sonolência.
 
À excepção de uma mão-cheia de baleias,
já há pouco para resgatar nesta liquidez
e mesmo essas não me parecem contentes com a minha intenção.
Estamos melhor assim, confortáveis na languidez larvar
de quem sabe que se subir tem que descer
 
mas deixemos estes assuntos para os de vanguarda.
A melancolia da sala está a pedir uma valsa fora de horas.
 
 
 
leonor castro nunes
marcos foz
a bifurcação dos ossos
do lado esquerdo
2016





 


 

10 outubro 2025

gil t. sousa / alguns poemas de verão

  
 
I
 
e nas
suas mãos tão belas
passavam como caravelas
 
a luva do tempo
e a do vento
 
 
 
gil. t. sousa
 




09 outubro 2025

gastão cruz / a ria

  
 
Sete horas da manhã, estampidos secos do outro lado da ria, sons de sempre, caçadores nos pinhais, bater da água, motores de aviões crescendo na manhã até esmaga-la. Somente o som dos tiros depois, o som da água é necessário quase adivinhá-lo. Há um passado, como um poço, roldana e balde. Bate o balde na água várias vezes até entrar.
 
 
gastão cruz
repercussão
os poemas (1960-2006)
assírio & alvim
2009




08 outubro 2025

artur do cruzeiro seixas / ao longo dos muros

 



 

 
Ao longo dos muros
a cal confirmava
que desceria uma ave
ao mais profundo de ti
e daí
incendiada no teu sangue
de todas as cores
a todas as palavras
enfim
daria asas.
 
Áfricas, 58
 
 
cruzeiro seixas
viagem sem regresso
tiragem limitada
2001
 



07 outubro 2025

antonio gamoneda / pássaros

  
 
Pássaros. Atravessam chuvas e países no erro dos
ímanes e dos ventos, pássaros que voavam entre a ira
e a luz.
 
Voltam incompreensíveis sob leis de vertigem e de
esquecimento.
 
 
 
antonio gamoneda
livro do frio
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999
 



06 outubro 2025

alberto pimenta / balada de gaudência

 




 
paciência
gaudência
nem sempre
o céu
tem clemência
e se a
violência
da cheia
levou a aldeia
lembra-te
de pompeia
e escuta
a melopeia
das ondas
batendo
na areia
 
e de futuro
seja escuro
ou haja
lua-cheia
vai com o
nascituro
para o monturo
celebrar
a última ceia
e cantar
com a sereia:
 


  
alberto pimenta
obra quase incompleta
fenda
1990





05 outubro 2025

fernando echevarría / o outono

  
 
O outono é, sobretudo, esse limite
que, esquecido do corpo dos seus frutos,
e até da luz, retém somente o timbre
que do palato deduziu o uso
da inteligência. A fim de
ficar um travo a reformar o luto
e a analisá-lo. Para instituir-se
luz dessa luz. ou sapiência, culto
de estações a mover-se. Nunca tristes,
mas transparências a irisar-se ao fundo.
O outono aí, declina sempre. Insiste
na inteligência desse timbre arguto.
 
 
 
fernando echevarría 
geórgicas
afrontamento
1998





04 outubro 2025

gonçalo m. tavares / esconderijo

  
 
Do teu esconderijo vê, e no teu esconderijo constrói,
sai dele apenas quando puderes dar algo aos outros.
Antes, é cedo demais, muito depois, é excessivo egoísmo.
Mas mesmo esta convicção não ajuda, não sei
Como viver, não sei o que é mais moral, mais ético,
Onde intervir, para onde olhar, ouvir o quê?
Há tantas coisas que falam ao mesmo tempo.
 
 
 
gonçalo m. tavares
1 poesia
relógio d´água
2004
 



03 outubro 2025

pedro tamen / os dias

  
1
 
Não há mais céu
se ele não cai
humilde acaso
no seu lugar.
Não há melhor
nem som mais puro
que o natural
dos nossos olhos.
Não vale a pena
fazer brinquedos
se as nossas mãos
são de criança.
 
 
 
pedro tamen
os dias
tábua das matérias
poesia 1956/1991
círculo de leitores
1995






02 outubro 2025

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

  
 
X GREEN GOD
 
Trazia consigo a graça
das fontes quando anoitece.
Era o corpo como um rio
em sereno desafio
com as margens quando desce.
 
Andava como quem passa
sem ter tempo de parar.
Ervas nasciam dos passos
cresciam troncos dos braços
quando os erguia no ar.
 
Sorria como quem dança.
E desfolhava ao dançar
o corpo, que lhe tremia
num ritmo que ele sabia
que os deuses devem usar.
 
E seguia o seu caminho,
porque era um deus que passava.
Alheio a tudo o que via,
enleado na melodia
duma flauta que tocava.



eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000
 



01 outubro 2025

antónio franco alexandre / dos jogos de inverno

  
 
5
 
eu a morrer debaixo do sol e eles sentados
apreciando coxas e mármores pendentes
no verão seco ao fim de nenhuma tarde, eu
desalinhavado pelo vento, crescido no meio das chamas,
correndo pelas ruas paralelas e sórdidas da antiguidade clássica,
eu também eu de guia e asno e cabriola na duna encardida de sol
e a agreste sabedoria das mãos cortadas rente eu e eles
apreçando o remate
 
 
dormir dormidos nas esteiras, a corda
presa nos dentes, que surpresa quando me tomaste,
pela primeira vez era uma noite de algum vento e das
esquias chaminés subia a chuva como uma nuvem
caída na memória e para nunca mais
então acaricio-te as orelhas distraidamente como quem
está duvidoso de comprar e sabe que não deve
apressar o remate
 
 
eu a morrer como se fosse coisa nenhuma cheia de pressa
esmorecida pelo sol eu e eles sentados como se fosse
uma pressa vazia de coisas uma opressão às portas
do grande mercado demasiadamente silencioso e atento
acaricio-te as mãos bem cortadas, o reflexo do
melhor mármore antigo,
eu a morrer como se fosse o menor preço e eles
sentados com os olhos na cara a boiar!
 
 
 
antónio franco alexandre
dos jogos de inverno
poemas
assírio & alvim
1996