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30 maio 2025

primo levi / canto dos mortos em vão

 
 
 
Sentai-vos e negociai
À vossa vontade, velhas raposas grisalhas.
Iremos amuralhar-vos num palácio esplêndido
Com comida, vinho, boas camas e bom fogo.
Para que possais negociar e chegar a bom termo sobre
A vida dos nossos filhos e dos vossos.
Que toda a sabedoria da criação
Convirja para bendizer as vossas mentes
E vos guie no labirinto.
Mas lá fora ao frio, nós iremos esperar-vos,
O exército dos mortos em vão,
Nós os de Marne e de Montecassino,
De Treblinka, de Dresden e de Hiroshima:
E estarão connosco
Os leprosos e os tracomatosos,
Os desaparecidos de Buenos Aires,
Os mortos do Cambodja e os moribundos da Etiópia,
Os pactuadores de Praga,
Os exangues de Cálcuta,
Os inocentes massacrados em Bolonha.
Ai de vós se saís sem acordo:
Sereis cingidos ao nosso abraço.
Somos invencíveis porque somos os vencidos.
Invulneráveis porque já mortos:
Nós rimo-nos dos vossos mísseis.
Sentai-vos e negociai
Até que se vos seque a língua:
Se a ruína e a vergonha durarem
Iremos afogar-vos na nossa podridão.
 
14 de Janeiro, 1985
 
 
 
primo levi
a uma hora incerta
trad. rui miguel ribeiro
edições do saguão
2024
 



09 abril 2025

primo levi / aos amigos

 
 
Caros amigos, aqui digo amigos
No sentido mais amplo da palavra:
Mulher, irmã, camaradas, parentes,
Pessoas vistas uma só vez,
Ou com quem se conviveu toda a vida:
Contanto que entre nós, pelo menos um momento,
Se tenha estendido um segmento,
Uma corda bem definida.
 
A vocês vos digo, companheiros de um caminho
Denso, não poupado a trabalhos,
E também a vocês, que perderam
A alma, o ânimo, a vontade de viver.
Ou a ninguém, ou alguém ou talvez só a um, ou a ti
Que me lês: lembra o tempo,
Antes da cera endurecida,
Em que cada um era como um sinete.
Entre nós cada um traz a marca
Do amigo encontrado no caminho;
Em cada um o rasto de cada um.
Para o bem e para o mal
Em sageza ou em folia
Cada um estampado em cada um.
 
Agora que o tempo urge apressado,
Que as tarefas terminaram,
A todos faço o humilde voto
De que o Outono seja longo e brando.
 
16 de Dezembro, 1985
 
 
 
primo levi
a uma hora incerta
trad. rui miguel ribeiro
edições do saguão
2024




 

28 fevereiro 2025

primo levi / aportar

 



 

 

Feliz o homem que chega a bom porto,
Que deixa atrás de si mares e tempestades,
Cujos sonhos estão mortos ou jamais nascidos;
E que se senta e bebe na taberna de Bremen,
Junto da lareira com uma paz serena.
Feliz o homem que é como uma chama extinta,
Feliz o homem que é como a areia do estuário,
que depôs o seu fardo e limpou a testa
e descansa no bordo do caminho.
Não teme, nem deseja, nem espera,
mas olha fixamente o sol que se põe.

 
                                        10 de Setembro, 1964
 
 
 
primo levi
a uma hora incerta
trad. rui miguel ribeiro
edições do saguão
2024