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02 maio 2023

carlos saraiva pinto / havia mais ar

 



 
havia mais ar.
mais limites de árvores.
um charco era um espelho
que tinha sua esperança
e os musgos sabiam que a chuva
chegava cedo
quando o outono
escolhia os choupos das margens
para dar ao douro
o nome que um corpo sentia,
 
próximo da boca e do olhar
por quem são João da cruz
abandonava neve nas montanhas
 
eu subia para a lareira
e tudo era um livro aberto
de navios infantis
no caudal dos tanques.
 
hoje, a luz é mais complexa
e dorme neste quarto asilar
a que pertence a desordem
dos papéis.
os meus projectos são poucos.
apenas desejo sentir os ombros
sobre as ruínas das famílias sepultadas.
 
teu ramo de rosas chegou tarde.
 
o sublime não arde nos quintais
onde decido desprender-me
dos papéis insensatos e loucos.
 
a orfandade é o ciclone que uivará
nas vidraças
que escondem aquele recanto da casa
em que repousa a minha cabeça na travesseira.
 
O tempo não pertence ao amor.
tarde o reconheço.
 
a palavra da vigília
alimenta vasos e sementeiras
que no pátio
dão alguma serenidade
àquilo que a poesia antecipa.
dispo o casaco vulgar
e a poeira torna-se líquida.
os remos são poucos
nas metáforas.
nem sei se o pão
que trouxe para as paisagens
bastará para a fome.
 
 
 
carlos saraiva pinto
escrever foi um engano
o correio dos navios
2001
 



27 novembro 2020

carlos saraiva pinto / atiras um livro

 
 
atiras um livro
à profundidade da água
a incerteza desagua
 
gostava de arrumar tudo
os passos que dava
um pensamento heróico de absolutos
sentado naquele alpendre
coberto de orvalho
de onde via o mar
 
reúnem-me os livros
para quebrar os pecíolos
de um quotidiano
 
mas a solidão de um irmão
não é igual à ambição de outros
 
lembra a adolescência
quando colhíamos
açucenas dos naufrágios
 
e descobríamos quando o mar
retirava às dunas um navio ferrugento.
 
enquanto guiava pelas montanhas
ao lado dava-lhe substantivos.
 
trazer até tão tarde
a luz cansa.
em breve chega o outono,
a dobra dos lençóis,
as crianças da escola,
a oração dos rostos.
 
sabes, agora,
que a vida
é um sonho desnecessário.
 
também se vive no campo.
 
os sentimentos de culpa
não nos devoram
as entranhas
 
nem vão aos funerais
os príncipes da igreja.
 
 


carlos saraiva pinto
escrever foi um engano
o correio dos navios
2001




 

29 janeiro 2013

carlos saraiva pinto / valerá a pena escrever a neve




valerá a pena escrever a neve
em carreiros de água,
como se a noite fosse o líquido
que obedece às películas da distância.

a impressão ágil da sombra
que produz o efeito das tílias
e o sossego longínquo
do nada iluminado.

sobre a boca encontrarás
o sinal do silêncio

a sua mãe terrestre
que esquece as ervas,
os socalcos leves
que chegam ao rio
mortos em verbo.

valerá a pena
a asa envolvente do jasmim
o anjo insubmisso do trigo,
ou o espelho sonoro
que guarda a metafísica dos caminhos.

como o céu e o carvalho milenar,
o leito é isento de mágoa,
e a porta dos peregrinos
busca a religião da luz.

ouve e repara a teimosia
do vinhático
em perfumar o ar.

é inútil o tacto da boca.

descerás
pelos campos subterrâneos da névoa
e crescerá em ti
o profano esquecimento de tudo.




carlos saraiva pinto
escrever foi um engano
o correio dos navios
2001



19 setembro 2011

carlos saraiva pinto / atravesso o bosque





atravesso o bosque
de castanheiros
pisando o manto das folhas
levadas pelo vento
no princípio do outono.

fecho a cancela de madeira do jardim
e lavo o rosto para entrar em casa.


esta noite
dormirei à luz das velas
se for preciso.






carlos saraiva pinto
escrever foi um engano
o correio dos navios
2001






01 abril 2010

carlos saraiva pinto / as coisas complexas








as coisas complexas
são inimigas de Deus

torna-me pois simples
como os bois e os cavalos
que no abandono da névoa
das montanhas são almas
que cumprem
dolorosas promessas a santuários
que estão para além do mundo.









carlos saraiva pinto
escrever foi um engano
o correio dos navios
2001







10 abril 2007

a pasolini






Sabes que eu
podia ter terminado
como o outro em óstia.

não porque tivesse um amante proletário violento
mas porque me opus a um lado e a outro
da conspurcação.

portanto leitor nunca te esqueças disso
nem da minha mente
tingida pelo sangue da adrenalina
do tempo furioso.

levantava-se um vento forte
em óstia semanas antes,
disse-me uma testemunha.
o mesmo vento áspero
que me faz hoje aquecer as mãos
com o bafo da minha boca
numa interminável
fila de refugiados entre a albânia e a grécia.

lembra-te pois disso leitor
e dá-me paz.












carlos saraiva pinto
escrever foi um engano
o correio dos navios
2001