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19 novembro 2024

ruy belo / regresso

 
 
 
Não não mereço esta hora
eu que todo o dia fui habitado por tantas vozes
que exerci o comércio num mercado de palavras
Não mereço este frio este cheiro tudo isto
tão antigo como os meus olhos
talvez mesmo mais antigo que os meus olhos
 
 
ruy belo
todos os poemas I
tempo
assírio & alvim
2004




10 junho 2024

ruy belo / nau dos corvos

 




 
Nau parada de pedra que tanto navega
e há tanto está no mar sem nunca a porto algum chegar
nau só a ocidente e todo o mar em frente
condensada insolência intemerato desafio
a mundos devassados mas desconhecidos
corvos de água e de vento aves feitas de tempo
que tão completamente são dois olhos côncavos
e fitos só nas coisas que importam verdadeiramente
nave que sulca não as águas mas os dias
navio de carreira entre o tempo e a eternidade
num espaço onde um simples segundo tem a minha idade
pedra que só aqui se liquefaz
água que só aqui solidifica
cais quente coração de corvos
vistos por quem nunca antes vira a solidão caber
em tão poucos centímetros quadrados
do mínimo de corpo necessário para a vida se afirmar
ó nau navio corvos pedra água cais
aqui estou eu sozinho todos os demais ficaram para trás
Aqui nada decorre e nada permanece
aqui os corvos são a solidão multiplicada
consistente conglomerada mas estilhaçada
unificada mas feita em bocados
De todos estes bicos curvos extremo ósseo dos corvos
onde depois os corvos passam a ser pedra e depois água
sai uma voz vasto discurso cada vez
Os corvos são a pedra menos pétrea do cabo
é nos corvos que o mar deixa de ser marítimo
Nesta nau se efectua esse comércio secular
da terra feita pedra com a água mais doméstica do mar
A névoa envolve e como que enovela os corvos
a rocha é um buliçoso e anárquico aeroporto
donde em cada momento sai um corvo
aéreo ante cujo vulto que levanta eu me curvo
O moreira baptista decerto gostaria que os corvos
se não os palradores os que ganham prémios literários
pelo menos os rudes negros os incultos mas os verdadeiros corvos
poisassem sempre no mais alto do rochedo
mas quando no inverno sopra o vento norte
e sentem frio poisam nalguma parte baixa para o lado sul
e estão-se marimbando para a propaganda
de um país vendido que eles não compraram
eles humildes corvos aves e não peixes nunca tubarões
Só aqui podem ver-se às vezes coisas invisíveis
o infinito aqui começa a acabar
em nenhum outro sítio se ouve tanto o inaudível
nem assim se define o que não tem definição
Deste porto se parte para mais que transatlânticas viagens
e em tão poucos segundos é difícil ver tantas imagens
Ninguém é cidadão deste tão pétrea pátria
nem mesmo há quem mereça aqui poisar só por instantes a cabeça
até que a prostração mais funda no total desapareça
Permite ó nau petrificar aqui
a minha sensação mais passageira
ou o meu mais instável pensamento
Eu nunca até agora e já sou velho vi
quebrar assim o tempo como quebra em ti
Que aqui o sol escureça e a noite que amanheça
neste morrer da terra onde uma vida sem cessar começa
Que após ter visto a nau mais náutica de todas essas naus
que sulcaram os inumeráveis séculos oceânicos
feitos tanto de tempo como de água
finalmente me fosse lícito fechar
definitivamente os olhos que apesar de tanto olhar
não conseguem optar entre a pedra e o mar
E só agora findas as palavras eu pressinto
pela primeira vez haver algum poema
por detrás do poema pura coisa de palavras
 
 
 
ruy belo
nau dos corvos
todos os poemas II
assírio & alvim
2004




18 abril 2024

ruy belo / desencanto dos dias

 
 
 
Não era afinal isto que esperávamos
não era este o dia
Que movimentos nos consente?
Ah ninguém sabe
como ainda és possível poesia
neste país onde nunca ninguém viu
aquele grande dia diferente
 
 
ruy belo
todos os poemas I
relação
assírio & alvim
2004





13 outubro 2023

ruy belo / uma forma de me despedir

 




 
Há o mar há a mulher
quer um quer o outro me chegam em acessíveis baías
abertas talvez no adro amplo das tardes dos domingos
Oiço chamar mas não de uma forma qualquer
chamar mas de uma certa maneira
talvez um apelo ou uma presença ou um sofrimento
Ora eu que no fundo
apesar das muitas palavras vindas nas muitas páginas dos dicionários
bem vistas as coisas disponho somente de duas palavras
desde a primeira manhã do mundo
para nomear só duas coisas
apenas preciso de as atribuir
Não sei se gosto mais do mar
se gosto mais da mulher
Sei que gosto do mar sei que gosto da mulher
e quando digo o mar a mulher
não digo mar ou mulher só por dizer
Ao dizer o mar a mulher
há penso eu um certo tom na minha voz sinto um certo travo na boca
que mostram que mais que palavras usadas para falar
dizer como eu digo a mulher o mar
mar mulher assim ditos
são uma maneira talvez de gostar
e a consciência de que se gosta
e um prazer em o dizer
um gosto afinal em gostar
Enfim o mar a mulher
pode num dos casos ser a/mar a mulher
mera forma talvez de uniformizar o artigo
definido do singular
Há ondas no mar
o mar rebenta em ondas espraiadas nos compridos cabelos da mulher
que ela faz ondular melhor de tarde em tarde
no mês de setembro nas marés vivas
O melhor da mulher talvez o olhar
é para mim o mar da mulher
e à mulher que um só dia encontro na vida
de passagem um simples momento num sítio qualquer
talvez a muitos quilómetros do mar
mas mulher que não mais consigo esquecer
mesmo imerso na dor ou submerso em cuidados
a essa mulher qualquer
eu chamo mulher do mar
Nos fins de setembro quando eu partir
de uma cidade seja ela qual for
quando eu pressentir que alguém morre
que alguma coisa fica para sempre nos dias
e ou nuns olhos ou numa água
num pouco de água ou em muita água
onda do mar lágrima ou brilho do olhar
eu recear seriamente vir-me a submergir
direi alto ou baixo conforme puder
com a boca toda ou já a custar-me a engolir
as palavras mar ou mulher
com certo vagar e cada vez mais devagar
mulher mar
depois quase já só a pensar
o mar a mulher
Não sei mas será
talvez mais que outra coisa qualquer
uma forma de me despedir
 
 
 
ruy belo
toda a terra
todos os poemas III
assírio & alvim
2004




14 agosto 2023

ruy belo / efeitos secundários

 
 
É bom estarmos atentos ao rodar do tempo
O outono por exemplo tem recantos entre
dia e noite ao pé de certos troncos indecisos
cercados um por um de sombras envolventes
 
Rente às árvores vamos, húmidos humildes
Dizem que é outono. Mas que época do ano
toca nestas paredes que roçamos
como gente que vai à sua vida
e não avista o mar, afinal símbolo de quanto quer,
ó Deus, ó mais redonda boca para os nomes das coisas
para o nome do homem ou o homem do homem?
 
Banho lustral de ausência é este tempo
de pés postos na terra em puro esquecimento
E vamo-nos perdendo de nós mesmos, vamos
dispersos em bocados, vítimas do vento
ficando aqui, ali, nalgum lugar que amamos
Nada mais do que terra há quem ao corpo nos prometa
Quem somos? Que dizemos?
        Reúna-nos um dia o toque da trombeta
 
 
ruy belo
todos os poemas I
sete coisas verdadeiras
assírio & alvim
2004




11 fevereiro 2023

ruy belo / metamorfose

 



 
Ó homem que passas tranquilo na rua
atrás de qualquer próximo perfume
e chegas a casa sem incidentes
ó homem que tens à espera de ti
virada a esquina da rua e do tempo o teu próprio rosto
não tenhas pena de quem morre
de árvore para árvore
e é diferente no princípio e no fim da rua
 
 
 
ruy belo
todos os poemas I
aquele grande rio eufrates
assírio & alvim
2004



24 julho 2022

ruy belo / homem perto do chão

 
Na primavera quando as tardes se arredondam
e já nas praias nascem as primeiras ondas
e volta sobre o mar a ave solitária
o homem enche de ar o peito vespertino
arranca o corpo à chuva e às nuvens do inverno
e chega a ter desejos de ficar
Mas em que rosto isento de contradição
há-de ele peregrino erguer a tenda?
Não abrem na cidade à sua frente as ruas
caminha ante deus como se visse
esse deus invisível
Florescem quando passa contraditórios clarins
cantando cada um sua ideia diversa
nenhuma o levará à pátria que procura
Tenham outros tambores ele tem
a pesada cabeça entre as mãos caída
Ele que desça ao fundo de todos os olhos
que nos trazem a alma à flor da pele
também não serão lá o coração ou a infância
Quando a tarde morrer ou o outono vier
do seu olhar é que as aves todas partirão
Aí temos um homem perto como nunca nem ninguém do chão


ruy belo
todos os poemas I
aquele grande rio eufrates

assírio & alvim
2004





30 março 2022

ruy belo / nada consta

 
 
Falta-me a folha cinco
E entretanto a barba foi crescendo
a minha barba veio crescendo ferozmente
indiferente à morte de um ou outro amigo
às letras protestadas aos desgostos domésticos
às viagens lunares às convenções às lutas
Quando as coisas se erguem contra o homem
se eriçam agressivas contra ele
nem ao poeta basta o parapeito das palavras
Eu por exemplo homem de pouco tempo
trazido pelos dias aqui estou
Continuo a dizer: se alguma coisa há
que podias perder e ainda não perdeste
de que já a perdeste podes estar certo
Falta-me a folha cinco
Estou com a barba feita
Ainda este ano talvez em marienbad
eu vi mulheres curtidas pelos lutos
Mal de morte é o meu
em plena posição de pé às três da tarde
em meio do movimento do rossio
sentado à tarde no cinema em dias de semana
Já caem carnes já se perdem pêlos
já quase só me resta a devoção
lisboa certos dias um amigo às vezes
Poucas coisas importantes pensei durante a vida
uma mesa de sol em pleno inverno
um mar incontroverso alguns papéis
– continua a faltar-me a folha cinco –
pois apesar de tudo nada consta
 
 
 
ruy belo
país possível
todos os poemas II
assírio & alvim
2004




15 dezembro 2021

ruy belo / relatório e contas

 
 
Setembro é o teu mês, homem da tarde
anunciada em folhas como uma ameaça
Ninguém morreu ainda e tudo treme já
Ventos e chuvas rondam pelos côncavos dos céus
e brilhas como quem no próprio brilho se consome
Tens retiradas hábeis, sabes como
a maçã se arredonda e se rebola à volta do que a rói
Há uvas há o trigo e o búzio da azeitona asperge em leque o som inabalável
nos leves ondulados e restritos renques das mais longínquas oliveiras conhecidas
Poisas sólidos pés sobre tantas traições e no entanto foste jovem
e tinhas quem sinceramente acreditasse em ti
A consciência mói-te mais que uma doença
reúnes em redor da casa equilibrada restos de rebanhos
e voltas entre estevas pelos múltiplos caminhos
Há fumos névoas noites coisas que se elevam e dispersam
regressas como quem dependurado cai da sua podridão de pomo
Reconheces o teu terrível nome as rugas do teu riso
começam já então a retalhar-te a cara
Despedias poentes por diversos pontos realmente
És aquele que no maior número possível de palavras nada disse
Comprazes-te contigo quando o próprio sol
desce sobre o teu pátio e passa tantas mãos na pele dos rostos que tiveste
Repara: não esbarras já contra a cor amarela?
Setembro na verdade é mês para voltar
Podes tentar ainda alguns expedientes respeitáveis
multiplicar diversas diligências nos ameaçados cumes dos outeiros
ser e não ser fugir do rótulo aceitar e esquivar o nome fixo
E no entanto é inevitável: a temperatura descerá mais dia menos dia
Calas-te então cumprido como um rosto e puxas toda a tarde
sobre esse corpo que se estende e jaz
Andaste de lugar para lugar e deste o dito por não dito
mas todos toda a vida teus credores saberão onde encontrar-te
pois passarás a estar nalguma parte
Tens domicílio ali que a terra sobe levemente
e toda a tua boca ambiciosa sabe e sente quanto barro encerra
 
 
 
ruy belo
todos os poemas I
o testamento de elvira sanches
assírio & alvim
2004




15 junho 2021

ruy belo / acontecimento

 
 
Aí estás tu à esquina das palavras de sempre
amor inventado numa indústria de lábios
que mordem o tempo sempre cá
E o coração acontece-nos
como uma dádiva de folhas nupciais
nos nossos ombros de outono
Caiam agora pálpebras que cerrem
o sacrifício que em nossos gestos há
de sermos diários por fora
Caiam agora que o amor chegou


 
ruy belo
todos os poemas I
dedicatóra
assírio & alvim
2004





18 fevereiro 2021

ruy belo / o portugal futuro

 
 
0 portugal  futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro
 
 
ruy belo
país possível
todos os poemas II
assírio & alvim
2004





17 outubro 2020

ruy belo / segundo poema do outono

 
 
Quantas vezes ainda verei eu cair
as pálidas leves folhas do outono?
- Não pode um homem vê-las
cair e conseguir viver
(e cá estou também eu
cá estou eu incorrigivelmente a cantar
as gastas folhas do outono
as mesmas das minhas mais antigas leituras
as primeiras e as últimas que tenho visto cair
Haverá outra poesia que não
a que cai nas tristes
folhas do outono?)
- Não pode o homem ver
cair as folhas e viver
 
 
 
ruy belo
obra poética de ruy belo vol. 1
editorial presença lda.
1984




01 setembro 2020

ruy belo / primeiro poema de outono



Mais uma vez é preciso
reaprender o outono –
todos nós regressamos ao teu
inesgotável rosto
Emergem do asfalto aquelas
inacreditáveis crianças
e tudo incorrigivelmente principia
Já na rua se não cruzam
olhos como armas
Recebe-nos de novo o coração

E sabe deus a minha humana mão




ruy belo
todos os poemas I
cidade
assírio & alvim
2004







19 abril 2020

ruy belo / poema quotidiano



É tão depressa noite neste bairro
Nenhum outro, porém, senhor administrador,
goza de tão eficiente serviço de sol.
Ainda não há muito ele parecia
domiciliado e residente ao fim da rua.
O senhor não calcula, todo o dia,
que festa de luz proporcionou a todos.
Nunca vi – e já tenho os meus anos –
lavar a gente as mãos no sol como hoje

Donas de casa vieram encher de sol
Cântaros, alguidares e mais vasos domésticos.
Nunca em tantos pés
assim humildemente brilhou.
Orientou – diz-se até – os olhos das crianças
para a escola e pôs reflexos novos
nas míseras vidraças lá do fundo

Há quem diga que o sol foi longe demais.
Algum dos pobres desta freguesia
apanhou-o na faca,  misturou-o no pão.
Chegaram a tratá-lo por vizinho.
Por este andar... Foi uma autêntica loucura.
O astro-rei tornado acessível a todos,
ele, que ninguém habitualmente saudava.
Sempre o mesmo indiferente
espectáculo de luz sobre os nossos cuidados.
Íamos, vínhamos, entrávamos, não víamos
aquela persistência rubra. Ousaria
alguém deixar um só daqueles raios
atravessar-lhe a vida, iluminar-lhe as penas?

Mas hoje o sol
morreu como qualquer de nós.
Ficou tão triste a gente destes sítios.
Nunca foi tão depressa noite neste bairro.



ruy belo
aquele grande rio eufrates
1961






31 dezembro 2019

ruy belo / a história de um dia



A abóbada da tarde mais uma vez acaba
o sol de a fechar sobre a minha diária aventura
Viram-no partir pontualmente à mesma hora
quando num pouco de dia a um canto sempre a um canto
já eu tinha conseguido arredondar
uma íntima ampola de som para a palavra definitiva
Ia mesmo soltá-la eu que todo o dia fui para ela quando
ele me deixou e foi abrir outras portas
erguer verticalmente caídas esperanças
e passar novas mãos por tantas faces mortas
Só me resta recolher o meu rebanho de pensamentos
com um vago rumor de guizos
enquanto à beira-mar os camponeses deixam
palavras não aladas cair na água morta
Morro irremediavelmente nesses pensamentos
que ainda agora o sol iluminava
enquanto eu os estendia e os recolhia
e os orientava numa direcção que convinha
e os precipitava sobre o fumo de uma casa
sobre um buraco de luz ou uma coluna de fumo
mais volúveis que um bando de pássaros
Morro mais uma vez criticamente completo
Todos os gestos
carregados com vinte e quatro horas de história
de ventre ferido na aventura do restolho
petrificaram inevitavelmente
na face orientada de uma estátua
aqui ou noutro jardim
Todo o caminho é de regresso
Amanhã serei outro:
lavarei os dentes com toda a solenidade
como antigamente meu pai antes das grandes viagens
enquanto alguém no espelho
se encarregará de olhar pelos meus olhos
Assim sou passado de dia em dia
confiado pelo dia que parte ao dia que chega
não venha o sino que ao longe toca perturbar
as linhas de um rosto que recompus
e pus de pé na atmosfera doméstica
Fechar um postigo pode ser um gesto cheio de significado quando
na arrumada paisagem quotidiana
a expectativa marcada pela funda inspiração
nos revela duas ou três mãos
postas sobre a colina
Amanhã serei outro



ruy belo
todos os poemas I
dedicatória
assírio & alvim
2004





18 outubro 2019

ruy belo / sexta-feira sol dourado



Sexta-feira sol dourado
esperança de solução de todos os problemas
não por à sexta-feira ter morrido cristo
que o poeta aliás comemora a comer bacalhau
ou outro peixe trocado pelos pescadores
que morreram ou morrerão no mar
esse peixe que antes nos chegava directamente
e agora passa pelas mãos do almirante henrique tenreiro
sexta-feira sol dourado
não por à sexta-feira ter morrido cristo
mas por se dispor da semana americana
Agora é que vamos ser felizes
A sexta-feira chega enche-se o peito de ar
a eternidade é não haver papéis
a vida muda vamos contestar
talvez assim se consiga aumentar
a duração média da vida humana
Sexta-feira sol dourado
que alegria ser poeta português
Portugal fica em frente


ruy belo
país possível
todos os poemas II
assírio & alvim
2004






12 julho 2019

ruy belo / orla marítima



O tempo das suaves raparigas
é junto ao mar ao longo da avenida
ao sol dos solitários dias de dezembro
Tudo ali pára como nas fotografias
É a tarde de agosto o rio a música o teu rosto
alegre e jovem hoje ainda quando tudo ia mudar
És tu surges de branco pela rua antigamente
noite iluminada noite de nuvens ó melhor mulher
(E nos alpes o cansado humanista canta alegremente)
«Mudança possui tudo»? Nada muda
nem sequer o cultor dos sistemáticos cuidados
levanta a dobra da tragédia nestas brancas horas
Deus anda à beira de água calça arregaçada
como um homem se deita como um homem se levanta
Somos crianças feitas para grandes férias
pássaros pedradas de calor
atiradas ao frio em redor
pássaros compêndios da vida
e morte resumida agasalhada em asas
Ali fica o retrato destes dias
gestos e pensamentos tudo fixo
Manhã dos outros não nossa manhã
pagão solar de uma alegria calma
De terra vem a água e da água a alma
o tempo é a maré que leva e traz
o mar às praias onde eternamente somos
Sabemos agora em que medida merecemos a vida


ruy belo
todos os poemas I
homem de palavra(s)
assírio & alvim
2004







09 abril 2019

ruy belo / literatura explicativa




O pôr-do-sol em espinho não é o pôr-do-sol
nem mesmo o pôr-do-sol é bem o pôr-do-sol
É não morrermos mais é irmos de mãos dadas
com alguém ou com nós mesmos anos antes
é lermos leibniz conviver com os medici
onze quilómetros ao sul de florença
sobre restos de inquietação visível em bilhetes de eléctrico
Há quanto tempo se põe o sol em espinho?
Terão visto este sol os liberais no mar
ou antero de junto da ermida?
O sol que aqui se põe onde nasce? A quem
passamos este sol? Quem se levanta onde nos deitamos?
O pôr-do-sol em espinho é termos sido felizes
é sentir como nosso o braço esquerdo
Ou melhor: é não haver mais nada mais ninguém
mulheres recortadas nas vidraças
oliveiras à chuva homens a trabalhar
coisas todas as coisas deixadas a si mesmas
Não mais restos de vozes solidão dos vidros
não mais os homens coisas que pensam coisas sozinhas
não mais o põr-do-sol apenas pôr-do-sol



ruy belo
todos os poemas I
palavra[s] de lugar
assírio & alvim
2004





06 março 2019

ruy belo / e tudo era possível



Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido

Chegava o mês de maio era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido

E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer

Só sei que tinha o poder duma criança
entre as coisas e mim havia uma vizinhança
e tudo era possível era só querer



ruy belo
todos os poemas I
palavra[s] de tempo
primavera
assírio & alvim
2004