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13 novembro 2024

nuno júdice / epigrama

 
 
 
A loucura é a grandeza dos simples:
assim são eles mais do que eles,
colhendo flores brancas e reles.
 
Os doidos, de olhos arregalados,
crescem devagar como as árvores:
só não dão folhas nem frutos.
 
Amo as suas frases sem sentido:
dobram nelas os sinos abstractos
de um campanário sem janelas.
 
Dai-me, ó loucos, a vossa razão
– esses remos de subir o tempo
até à fonte de um deus obsceno e nu.
 
 
 
nuno júdice
50 anos de poesia
antologia pessoal (1972-2022)
dom quixote
2024
 



27 setembro 2024

nuno júdice / partida



 
Todo o espaço é uma linha no centro do átomo
a que se reduz cada homem, no seu canto de solidão. O horizonte,
que nos parece imenso com o seu desenho matinal,
cabe no fundo de um copo, quando bebemos o primeiro
café, em que os sonhos da noite se desfazem com um sabor
amargo a dia de inverno. E as nuvens descem ao nível dos olhos,
para que as metamos no dedal de uma costura de limites,
e o seu contorno sirva de renda à almofada do tédio. Então,
o ser soltar-se-á desta caixa vazia. Levará com ele o
horizonte e as nuvens; e só se nos agarrarmos a um fio de névoa
poderemos seguir o seu caminho, até esse rebordo de
falésia que o corpo não transpõe. Para lá dele, é o mar
da essência, com as suas marés de inquietação e de
certeza, e o abismo de dúvida que se abre quando o
temporal nos ameaça. Para trás, ficou a existência,
a vida, as coisas concretas, como os sentimentos e
as palavras que formam e transformam o que somos. Porém,
nesta fronteira, que fazer dos caminhos que se nos abrem?
Como avançar, sem barco ou rumo, em direcção a que
porto? E que nos espera no regresso ao lugar de
onde ninguém deve partir se não tiver, no bolso, a carta
de chamada, o endereço, a voz acolhedora de um deus?
 
 
 
nuno júdice
50 anos de poesia
antologia pessoal (1972-2022)
dom quixote
2024
 



 

28 agosto 2024

nuno júdice / praia

 
 
 
De manhã, o mar parecia saltar de dentro
das nuvens, como se não fosse ele que as
reflectisse. Depois, o sol restabeleceu
a ordem das coisas, o prumo voltou a in-
dicar o alto e o baixo, e até o ruído das
ondas deixou de nos submergir com a sua
insistência, deixando ouvir de novo o
bater dos toldos com o vento, os gritos
de um bando de gaivotas, e a tua voz,
atravessando toda a memória deste dia.
 
 
 
nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997



 

05 fevereiro 2024

nuno júdice / projecto metafísico

 



 
Uma vez terei sonhado que para além dos céus
há outros céus; que sobre as nuvens que vemos,
paradas, sobre nós, outras nuvens são empurradas
pelo universo, cheias como o espírito que
só imaginam aqueles que ouvem o silêncio das aves,
quando a noite cai. Há sonhos inúteis,
que se perdem ao longo da vida, que rolam
com o tédio para as sarjetas do esquecimento. Outros,
porém, ficam por dentro de nós; e repetem-se,
de cada vez que o dia ficou escuro mais cedo, ou
que olhamos à volta e descobrimos que não está connosco
quem gostaríamos que estivesse. Um remédio
para a solidão, talvez; embora o sonho possa ser,
por outro lado, a porta que se fecha quando
a realidade toma conta de nós. Então, é
possível que andemos, como os pobres, à sua procura
pelos caixotes de lixo da eternidade. Destapamo-los,
um a um, e remexemos por entre imagens antigas,
rostos que se desprendem da noite, palavras
que se ligam a súbitas entoações, comoventes,
da voz que o tempo levou. E as mãos voltam
vazias: nenhum sonho cabe na mão. Assim,
este céu continua a ser o meu limite; e só espero
que a chuva recomece para que a sua música monótona
me devolva o sonho de uma manhã azul.
 
 
 
nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997
 




01 novembro 2023

nuno júdice / poema

 




 
Os poetas a quem a morte surpreende,
quando jovens, juntam-se algures noutra superfície.
De noite, os seus uivos atingem o celeste rebordo
da esfera; um ouvido mais atento distinguirá,
de entre os mil ruídos da terrível noite,
o seu coro de imprecação e choro.
De dia, adormecidos sob a terra, dissolvem-se
na humidade e nas raízes. Só os seus olhos,
na feroz abertura das pálpebras, ainda brilham
e mexem. No entanto, se alguma imagem da passada
vida os atormenta e obceca, tornam-se baixos
e baços. Uma escura lágrima cai em terra,
e o lodo assim formado me serve de alimento.
Os meus lábios e a minha língua adquirem
a sua consistência, e o meu rosto lamacento
volta-se para baixo, de onde surge um barulho
de mãos e de pés,
um barulho de vento nos órgãos vazios.
 
 
nuno júdice
o mecanismo romântico da fragmentação
editorial inova
1975




22 junho 2023

nuno júdice / elegia

 
 
Ouvi dizer que não se dava com ninguém,
nos últimos tempos; subia sozinho a rua, até ao café,
e nada lhe desviava o olhar de uma atenção fixa
em algures, ou num pensamento que guardou para
si próprio. A vida é sempre uma realidade frágil
para quem se apercebe do outono e os primeiros ventos
do norte, que trazem consigo os céus limpos e as nuvens frias,
arrefecem a alma que não ganhou o hábito da solidão. «A poesia,
respondo-lhe, não dá resposta a esse último desconforto
do ser.» Ele não me ouve, agora que o seu próprio nome
se apaga na monotonia das tardes e das lentas estações. Só
uma ave antiga cruza, por vezes, o céu de esquecimento
em que a sua sombra dorme; deixando um sulco de asas,
como um verso, acordar por instantes a sua imagem.
 
 
 
nuno júdice
hífen 6 fevereiro, 1991
cadernos semestrais de poesia
heresias
1991
 



04 fevereiro 2022

nuno júdice / fevereiro

 
 
A fotografia obscurece o fundo;
nenhum dos sinais do princípio me traz
o conforto de ser, nem
abre a última porta, por
onde passaram os exércitos da noite.
Mas vejo melhor: e
descubro-te, a um canto,
debruçada da varanda – como
se espreitasses o mar verde da memória,
ou procurasses a própria definição
da água, entre o azul
e o negro.
É, de facto, a cor
dos teus olhos,
como a lembro. Encostavas-te
à parede branca, contra
o sol; e a luz não te atravessava
os cabelos com que protegias
o rosto.
 
Desse fundo de minúsculas
particularidades, a tua presença é
a mais evidente. Deixo que
a sombra desapareça de toda a parte,
da parede até ao próprio horizonte; e
é como se saísses de dentro
do tempo, e nos entrássemos,
por instantes, sob um céu de nuvens esburacadas
como as tábuas comidas
pelo sal.
 
 
 
nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997




 

11 agosto 2021

nuno júdice / um resto de insónia

 
 
A noite chegou até ele sem bater à porta;
devagar, instalou-se no sofá da sala, escureceu
os cantos, roubou a luz às lâmpadas. E
não abriu a boca: enquanto ele, sem nada
compreender, a empurrava para longe de si,
tentava abrir as janelas, acendia velas,
que ela soprava por trás. A noite chega,
assim, afirmando a sua presença. Não dá
descanso, a não ser que a aceitem como ela é:
mas não é fácil tê-la dentro de casa, nem conviver
com os seus gestos de treva. Talvez se possa,
apenas, murmurar esse nome que ela nos
roubou, um dia, e que só agora se nos torna
necessário lembrar; ou invocar uma protecção
ilusória, a deusa diurna, de cabelos iluminados
pelo ouro primaveril. Tudo inútil – e como ela
se ri!, a noite branca que o obriga a manter
os olhos abertos, fixando o último fio de luz,
como se também a sua vida escorresse por aí…
 
 
 
 
nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997





 

28 janeiro 2021

nuno júdice / como aves, cuja passagem

 
 
Como sombras passaram entre nós,
como sombras. Uma vez perante alguns amigos
e desconhecidos, afirmei conhecê-los e citei
os seus nomes. Mas o que então correspondia
a um acto heróico, nada significa
hoje, mesmo entre amigos e desconhecidos.
Só se eu próprio
me tornar uma sombra, e também eu passar
a uma outra vida. Durante algum tempo
alguém falará de mim dizendo «conheci-o»,
ou «há tanto tempo, falei com ele». Mas
em breve outros se tornarão sombras,
e depois outros, até que o meu gesto
se confunda com esses, e todos por fim
se dissipem na obscuridade do tempo
passado.
 

 
nuno júdice
o mecanismo romântico da fragmentação
editorial inova
1975




 

07 dezembro 2020

nuno júdice / carta aos que ficam

 
 
As sensações destruídas restauram as fronteiras
do Corpo. Num largo interstício de tempo
a consciência cria o ócio e o seu reverso. Talvez
um faro animal sugerisse um trabalho diferente
sobre as estrofes e as palavras. No entanto,
os que ficam (e sobrevivem) ocupar-se-ão de tudo.
Eles não sofrem o estrangulamento húmido
da manhã.
 
Penso nas faculdades d a analogia, nos defeitos
Que separam a compreensão da vontade. (Seja
– demasiado abstracto. É assim o poema. Nada
De precipitações materiais, nem de tacto,
nem dos outros quatro sentidos. O acaso burguês
do silêncio não passa aqui de uma terrível
coincidência, de uma vertigem no interior
dos códigos.)
 
A transformação do Ser é um instante de repouso.
 
 
nuno júdice
o mecanismo romântico da fragmentação
editorial inova
1975

 




30 agosto 2020

nuno júdice / tempo livre



Numa tarde de domingo, em Central Park, ou
numa tarde de domingo, em Hyde Park, ou
numa tarde de domingo, no jardim do Luxemburgo, ou
num parque qualquer numa tarde de domingo
que até pode ser o parque Eduardo VII,
deitas-te na relva com o corpo enrolado
como se fosses uma colher metida no guarda-
napo. A tarde limpa os beiços com esse
guardanapo de flores, que é o teu vestido
de domingo, e deixa-te nua sob o sol frio
do inverno de uma cidade que pode ser
Nova Iorque, Londres, Paris, ou outra qualquer
como Lisboa. As árvores olham para outro sítio,
com os pássaros distraídos com o sol
que está naquela tarde por engano. E tu,
com os dedos presos na relva húmida, vês
o teu vestido voar, como um guardanapo,
por entre as nuvens brancas de uma tarde
de inverno.



nuno júdice
poesia do mundo/2
afrontamento
1998






20 março 2020

nuno júdice / acalmia



O vento sopra no vazio da pele,
quando a abandona o desejo; levanta
as palavras caídas, ergue-as
até às nuvens, onde as vejo misturarem-se
com as aves embranquecidas do ocaso.

O vento deita-se nas equimoses do espírito,
abrandando a dor de quem ama sem
objecto nem eco. Ouço-o por dentro das veias
rápidas de um luxo de emoções, como
se gritasse por um tropel de troncos.

O vento morre nos braços de florestas
petrificadas, saudando um degelo de re-
soluções. Respiro o ar imóvel com um odor
de folhas calcinadas – como se pisasse o teu
corpo, terra lívida do meu abraço.




nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997





11 novembro 2019

nuno júdice / elegia



Demora-se o outono numa eclosão de frutos
secos: as taças onde puseste as mãos, sem
esperar que a chuva te molhasse os cabelos.
Ao fim da tarde, quando já parece noite,
as nuvens distraem-se com a falta de vento.
Esperam que lhes fales, como se as palavras
pudessem atravessar os limites da treva.
Ainda paras; e olhas para trás, onde os arbustos
te esperam numa hesitação de folhas. Depois
retomas o caminho. Deixo de te ver. É inverno.




nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997








01 agosto 2018

nuno júdice / proximidade




A diferença entre o alto e o baixo, o céu
e a terra, a superfície e o fundo, o igual
e o diverso, é imperceptível para quem
não sabe o que está para além de si próprio.
O mundo, que muda a cada instante, não é
mais do que um lago se o coração não se apercebe
de vertas variações, do brilho que
transparece de uns olhos quando o som das
palavras neles se reflecte, ou desse instante
em que, sem que se diga alguma coisa, o
contacto da pele une o princípio e o fim
dos seres. Falo do amor: a melancolia não
tem nada a ver com este sentimento que
nasce das contradições, nem a percepção
da vida pode ignorar a emoção com que
se assiste ao florescer do desejo na terra
estéril da idade. Sim: a emoção de um contacto
rejeita as condições lógicas da razão e o
equilíbrio que sustenta a resignação dos
infelizes. Mas também no dia cinzento há,
por vezes, um fulgor breve e a expectativa
da luz permite que se atravesse a noite
sem ceder à sua treva, adivinhando apenas
o primeiro instante luminoso, e o acordar
do teu rosto na claridade tingida da névoa.




nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997







11 maio 2018

nuno júdice / voo




Por duas vezes o pássaro atravessou
o horizonte, deixando atrás de si o dia
e a noite, confundidos para quem, no
limite da praia, olhava o seu voo; e
por duas vezes o sol hesitou, antes
de morrer, como se tivesse outra
saída para além do outro lado da terra.



nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997










14 fevereiro 2018

nuno júdice / gramática




Com que gramática se escreve? A
de  um luar antigo, por onde voaram
as aves nocturnas em busca
de alvorada? A de uma sintaxe matinal,
emprestando ao verso o soletrar
luminoso das vogais? Ou a dessa tarde
que deixou nos lábios o sabor
de palavras secas como as folhas
de outono?

Aprendi essas gramáticas nos
compêndios da imaginação; decorei
as suas regras com o fervor obscuro
das mnemónicas doentes; repeti
os seus exemplos em estrofes
vazias como as caixas amontoadas
num sótão de infância.
“Terá valido a pena esse
trabalho?”, perguntas-me. De facto,
não sei que resposta te poderei
dar. Os livros – arrumados nesse
canto do infinito em que nunca
nos havemos de encontrar; as frases,
sem ligação, como se a vida
as tivesse desfeito no moinho
da eternidade.

Então, pergunto eu: de que corpo
és a sombra sem rosto, o pulso
sem emoção, a queixa sem a música
de um murmúrio?




nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997








19 dezembro 2017

nuno júdice / ofício nocturno



Nos campos onde a neve se estende,
o vento arrasta uma brancura de passos.

Troncos que foram verdes são
braços negros em gestos de pedinte.

Vagueiam almas num desejo de cume,
perdidas, de pensamento preso com a névoa.

Só não sabem a que noite pertencem
os pássaros brancos em busca de rio.

Mas a corrente dorme sob o gelo,
sonhando uma primavera de estuários.

É quando o vidro da janela não devolve
mais do que o próprio rosto de quem espreita;

reflexo que nem a treva aceita,
ocupada em trabalhos de linha e tear.



nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997





16 novembro 2017

nuno júdice / é isto o amor







Em quem pensar, agora, senão em ti? Tu, que
me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a
manhã da minha noite. É verdade que te podia
dizer: «Como é mais fácil deixar que as coisas
não mudem, sermos o que sempre fomos, mudarmos
apenas dentro de nós próprios?» Mas ensinaste-me
a sermos dois; e a ser contigo aquilo que sou,
até sermos um apenas no amor que nos une,
contra a solidão que nos divide. Mas é isto o amor:
ver-te mesmo quando te não vejo, ouvir a tua
voz que abre as fontes de todos os rios, mesmo
esse que mal corria quando por ele passámos,
subindo a margem em que descobri o sentido
de irmos contra o tempo, para ganhar o tempo
que o tempo nos rouba. Como gosto, meu amor,
de chegar antes de ti para te ver chegar: com
a surpresa dos teus cabelos, e o teu rosto de água
fresca que eu bebo, com esta sede que não passa. Tu:
a primavera luminosa da minha expectativa,
a mais certa certeza de que gosto de ti, como
gostas de mim, até ao fim do mundo que me deste.


nuno júdice
pedro, lembrando inês
as  vozes do silêncio
edições apuro
2017



08 fevereiro 2017

nuno júdice / projecto




O objectivo é fugir. Atravessar as ruas
do tamanho de uma vida – para encontrar
do outro lado, o quê?, que mãos estendidas
até à parede em fogo do teu corpo? que
deus fugido dos pântanos de almas em
que ambos perdemos? Fugir, sim, até
onde não conseguimos mais do que estar
um com o outro, e os olhos se encontrem
– os meus com os teus olhos cuja cor
esqueci – e esse encontro, perfeito facto,
cresça de dentro do hemisfério que sobrou
de uma colheita estival (mas de rosas de
todo o ano, as mais efémeras).
  

nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997




15 dezembro 2016

nuno júdice / fotografia



Ainda me lembro: as dúvidas
que nasciam por entre os teus dedos,
e as tuas mãos que se transformavam em
folhas de uma vegetação abstracta…
Era de manhã, quando o ar frio encrespava
a pele e a humidade batia no rosto
como os fios de uma teia invisível. Era
a hora em que nenhum táxi parava, nem
se podia andar pelos passeios sem
atolar os pés de lama. No café,
porém, um calor nascia no intervalo
de um aquário: o teu amor. E como o peixe
que bate no vidro sem saber para onde ir
andava às voltas, procurando a saída
para te encontrar enquanto tu
sacudias a água dos cabelos e, sem te
importares comigo, sorrias, como
nenhuns outros lábios sabiam sorrir,
até hoje.


nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997