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29 junho 2025

josé saramago / história antiga

  

 
Compromissos, não tinha, mas faltei;
Não prestei juramento, mas traí:
Sentir-se réu alguém, não depende
Do juízo dos outros, mas de si.
 
É fácil companhia a consciência
Se mansamente aceita e concilia,
Difícil é calá-la quando somos
Mais retos afinal do que se cria.
 
Um dia tornarei às dores do mundo,
À luta onde talvez já não me esperam,
Antes, seja diferente outra mulher,
Companheira, não de ferros que me ferram.
 
 
 
josé saramago
os poemas possíveis
porto editora
2018


01 maio 2024

josé saramago / não me peçam razões

 




 

 
Não me peçam razões, que não as tenho,
Ou darei quantas queiram: bem sabemos
Que razões são palavras, todas nascem
Da mansa hipocrisia que aprendemos.
 
Não me peçam razões por que se entenda
A força da maré que me enche o peito,
Este estar mal no mundo e nesta lei:
Não fiz a lei e o mundo não aceito.
 
Não me peçam razões, ou que as desculpe,
Deste modo de amar e destruir:
Quando a noite é de mais é que amanhece
A cor de primavera que há de vir.
 
 
 
josé saramago
os poemas possíveis
porto editora
2018



17 abril 2023

josé saramago / estrelas poucas




 
Dizer-te rosa, aurora ou água solta,
Que mais é que palavras apanhadas
No refugo das línguas e das bocas?
Os mistérios são pouco o que parece,
Ou não chegam palavras a dizê-los:
Na fundura do espaço estrelas poucas.
 
 
 
josé saramago
provavelmente alegria
caminho
1987





 

20 novembro 2022

josé saramago / outono

 



 
Não é agora verão, nem me regressam
Os dias indiferentes do passado.
Já primavera errada se escondeu
Numa dobra do tempo amarrotado.
É tudo quanto tenho, um fruto só,
Sob o calor de outono amadurado.
 
 
 
josé saramago
os poemas possíveis
porto editora
2018





11 março 2022

josé saramago / primeiro e segundo poemas dos mortos

 
 
1.
Os homens são mortais mas não se pode ter a certeza de que todos
     o sejam só aqueles que são vistos morrer diante dos nossos olhos
 
Quem vai saber se dentro do caixão fechado o corpo está ainda ou
     pelo contrário se ausentou deixando apenas o peso
 
Os homens são talvez mortais porque em verdade são muitos os que
     não voltamos a ver e a morte em tais casos será convenhamos
     uma razoável probabilidade
 
Mas muitos outros a maioria são provavelmente imortais porque vêm
     já vivos quando os vemos pela primeira vez
 
E assim continuarão noutros lugares se neste não habitam mais
 
Aliás nem seria concebível outro modo de conseguirem estar os homens
     em toda a parte com as flores numa planície que em uma só manhã
     se abrem
 
Ou um bando de aves migradouras repartindo o céu sobre o mundo ou
     um rápido e rebrilhante cardume de peixes que remexe o oceano
     benevolente
 
Os homens serão imortais um dia mas a prova não se fará antes de a
     Terra se acabar e mesmo assim
 
Porque poderão os homens ter-se ausentado dela sem mais deixando
     somente a memória como o peso num caixão vazio
 
 
2.
Hoje a terra tremeu porque os mortos se voltaram sobre o lado direito
     para aliviarem o coração
 
É um abalo diferente dos outros que mais se julgaria o suspiro de um
     corpo adormecido que rola um pouco e facilmente esquece
 
E é também um movimento tão igual ao da vida que nos sismógrafos o
     registo muda de cor e o traço é como um fio de sangue
 
Porém os vivos fogem medrosos para a rua e não entendem as mudanças
     e pensam que todo o abalo é terramoto e cataclismo
 
Os mortos enterrados a menos de dois metros de superfície desafogam
     o coração enquanto escutam o arfar do núcleo ígneo da Terra
 
Sorrindo sábios conforme se afasta o rumor dos pés que fogem porque
     sempre voltam à palavra interrompida
 
 
 
josé saramago
experiência de liberdade
antologia de textos publicados no
suplemento artes e letras
do diário de notícias de
maio a novembro d e1975
diabril
1976







22 junho 2021

josé saramago / aniversário

 
 
Pai, que não conheci (pois conhecer não é
Este engano de dias paralelos,
Este tocar de corpos distraídos,
Estas palavras vagas que disfarçam
O intransponível muro):
Já nada me dirás, e eu não pergunto.
Olho, calado, a sombra que chamei
E aceito o futuro.
 
 
 
josé saramago
os poemas possíveis
porto editora
2018





29 janeiro 2021

josé saramago / poema para luís de camões

 
 
Meu amigo, meu espanto, meu convívio,
Quem pudera dizer-te estas grandezas,
Que eu não falo do mar, e o céu é nada
Se nos olhos me cabe.
A terra basta onde o caminho para,
Na figura do corpo está a escala do mundo.
Olho cansado as mãos, o meu trabalho,
E sei, se tanto um homem sabe,
As veredas mais fundas da palavra
E do espaço maior que, por trás dela,
São as terras da alma.
E também sei da luz e da memória,
Das correntes do sangue o desafio
Por cima da fronteira e da diferença.
E a ardência das pedras, a dura combustão
Dos corpos percutidos como sílex,
E as grutas do pavor, onde as sombras
De peixes irreais entram as portas
Da última razão, que se esconde
Sob a névoa confusa do discurso.
E depois o silêncio, e a gravidade
Das estátuas jazentes, repousando,
Não mortas, não geladas, devolvidas
À vida inesperada, descoberta.
E depois, verticais, as labaredas
Ateadas nas fontes como espadas,
E os corpos levantados, as mãos presas,
E o instante dos olhos que se fundem
Na lágrima comum. Assim o caos
Devagar se ordenou entre as estrelas.
 
Eram estas as grandezas que dizia
Ou diria o meu espanto, se dizê-las
Já não fosse este canto.
 
 
 
josé saramago
provavelmente alegria
caminho
1987




01 agosto 2020

josé saramago / o beijo



Hoje, não sei porquê, o vento teve um grande gesto
     de renúncia, e as árvores aceitaram a imobilidade.
No entanto (e é bem que assim seja) uma viola
     organiza obstinadamente o espaço da solidão.
Ficamos sabendo que as flores se alimentam na fértil
     humidade.
É essa a verdade da saliva.



josé saramago
provavelmente alegria
caminho
1987












18 janeiro 2020

josé saramago / não há mais horizonte



Não há mais horizonte. Outro passo que desse,
Se o limite não fosse esta ruptura,
Era em falso que o dava:
Numa baça cortina indivisível
De espaço e duração.
Aqui se juntarão as paralelas,
E as parábolas em rectas se rebatem.
Não há mais horizonte. O silêncio responde.
É Deus que se enganou e o confessa.



josé saramago
os poemas possíveis
porto editora
2018








28 junho 2019

josé saramago / opção



Antes arder ao vento como um archote
Num deserto de sombras e de medos
Que ser dócil rima do teu mote,
Um morrão de cigarro nos teus dedos.



josé saramago
os poemas possíveis
porto editora
2018






01 maio 2019

josé saramago / fraternidade




A qual de nós engano quando irmão
Nestes versos te chamo?
Não são irmãs as folhas que do chão
Olham outras no ramo.
Melhor é aceitar a solidão,
Viver iradamente como o cão
Que remorde o açamo.


josé saramago
os poemas possíveis
porto editora
2018








22 março 2019

josé saramago / regra




Tão pouco damos quando apenas muito
De nós na cama ou na mesa pomos:
Há que dar sem medida, como o sol,
Imagem rigorosa do que somos.


josé saramago
os poemas possíveis
porto editora
2018














20 junho 2010

josé saramago / tem o relógio horas tão vazias







Tem o relógio horas tão vazias que, breves mesmo, como de todas é costume dizermos, excepto aquelas a que estão destinados os episódios de significação extensa, (…), são tão vazias, essas, que os ponteiros parece que infinitamente se arrastam, não passa a manhã, não se vai embora a tarde, a noite não acaba.




josé saramago
o ano da morte de ricardo reis