28 abril 2007

o desejo agarrado pelo rabo



«Medo dos saltos de humor do amor e humores dos saltos de cabrito da raiva. Tampa colocada no azul que se desprende das algas que cobrem o vestido engomado com ricos pedaços de carne despertada pela presença dos charcos de pus da mulher que subitamente apareceu estendida no meu leito. Gargarejo do metal fundido dos seus cabelos gritando de dor toda a sua alegria pela posse. Jogo de azar dos cristais mergulhados na manteiga derretida dos seus gestos equívocos. A carta que segue passo a passo a palavra inscrita no calendário lunar dos seus envelopes presos a espinhos faz estalar o ovo cheio de ódio e as línguas de fogo da sua vontade cavada na palidez do lírio no ponto exacto onde o limão exasperado desfalece. Duplo jogo das pedrinhas tingidas com o vermelho da cercadura do seu manto, a goma arábica que lhe goteja da calma atitude rompe a harmonia do ruído ensurdecedor do silêncio apanhado na armadilha.

O reflexo dos seus esgares pintados na vidraça aberta a todos os ventos aromatiza a dureza do seu sangue sobre o frio voo das pombas que o recebe. O negro da tinta que envolve os raios de saliva do sol que batem na bigorna das linhas do desenho adquirido a preço de ouro desenvolve, na ponta da agulha do desejo de a tomar nos braços, a força obtida e os meios ilegais de a atingir. Corro o risco de a ter morta nos meus braços, desabrochada e louca.» Carta de amor, se se quiser. Escrita cedo de mais, cedo de mais rasgada. Amanhã, ou esta noite ou ontem, mandá-la-ei para o correio graças aos cuidados dedicados dos meus amigos. Cigarro 1, cigarro 2, cigarro 3, um dois três, um mais dois mais três igual a seis cigarros; um fumado, outro grelhado e o terceiro assado no espeto. As mãos dependuradas no pescoço da corda descida a correr da árvore que levanta voo chicoteiam à grande o seu puro corpo de Vénus tão mal enjorcado. A pés juntos, o dia descarrega a carga destes anos no poço, cheio de sombra. As tripas que Pégaso arrasta após a corrida desenham-lhe o retrato sobre a brancura e a dureza do mármore brilhante da sua dor.

O ruído das persianas soltas tangendo os seus ébrios sinos sobre os lençóis amarrotados das pedras arrancam à noite gritos desesperados de felicidade. As marteladas das flores e o fedor tão belo das suas tranças temperam o guisado dos seus louros e cravinhos. Mãos volantes, mãos soltas das mangas de renda do corpete posto tão cuidadosamente dobrado sobre o veludo do sofá, apoiadas tão firmemente nas faces do machado cravado no cepo copiam melancolicamente, numa bela caligrafia redonda, a lição aprendida. Pedra dura das anémonas devorando a cal viva da cortina adormecida sobre a escada apoiada ao enxofre do céu agarrado à moldura da janela. As razões mais válidas, a iminência do perigo, os temores e os desejos que a impelem não impedem agora a alegria morosa de se instalar cómoda e para todo o sempre no sofá verde da esperança.»







pablo picasso
teatro - o desejo agarrado pelo rabo
trad. vítor silva tavares
& etc
1975


27 abril 2007

uma solidão mortal...




(...)

...«uma solidão mortal»...


Na taberna podes dizer graças,
brindar com quem quiseres, qualquer um.
Mas o Anjo anuncia-se e deves isolar-te
para o receber. Para nós, o Anjo é a noite
que desceu à pista fulgurante.
Que a tua solidão paradoxalmente se ilumine toda
e pouco importe a escuridão feita de milhares de olhos
que te julgam, temem e esperam que caias;
vais dançar sobre e dentro de uma solidão deserta,
de olhos vendados, se possível com as pálpebras agrafadas.

Mas nada - nem mesmo aplausos ou risos -
pode impedir-te de dançares para a tua imagem.
És um artista - ai de mim - não podes recusar-te
ao precipício monstruoso dos teus olhos.


Narciso dança?

Sim, mas é coisa totalmente alheia à graça sedutora,
ao egoísmo e amor de si próprio.

E sendo a Morte, em pessoa?

Deves dançar sozinho. Empalidecido, na ânsia
de agradar à tua imagem:
ou a tua imagem é quem dança para ti.

(...)








jean genet
o funâmbulo
hiena editora
1984



georges-pierre seurat (1859–1891)





circus sideshow, 1887–88



22 abril 2007

a máquina fotográfica





É na câmara escura dos teus olhos
que se revela a água
água imagem
água nítida e fixa
água paisagem
boca nariz cabelos e cintura
terra sem nome
rosto sem figura
água móvel nos rios
parada nos retratos
água escorrida e pura
água viagem trânsito hiato.


Chego de longe. Venho em férias. Estou cansado.
Já suei o suor de oito séculos de mar
o tempo de onze meses de ordenado;
por isso, meu amor, viajo a nado
não por ser português mal empregado
mas por sofrer dos pés
e estar desidratado.


Chego. Mudo de fato. Calço a idade
que melhor quadra à minha solidão
e saio a procurar-te na cidade
contratada violenta negativa
tu única sombra murmurada
única rua mal iluminada
única imagem desfocada e viva.


Moras aonde eu sei. É na distância
onde chego de táxi.
Sou turista
com trinta e seis hipóteses no rolo;
venho ao teu miradoiro ver a pista
trago a minha tristeza a tiracolo.


Enquadro-te regulo-te disparo-te
revelo-te retoco-te repito-te
compro um frasco de tédio e um aparo
nas tuas costas ponho uma estampilha
e escrevo aos meus amigos que estão longe
charmant pays
the sun is shinning
love.


Emendo-te rasuro-te preencho-te
assino-te destino-te comando-te
és o lugar concreto onde procuro
a noite de passagem o abrigo seguro
a hora de acordar que se diz ao porteiro
o tempo que não segue o tempo em que não duro
senão um dia inteiro.


Invento-te desbravo-te desvendo-te
surges letra por letra, película sonora,
do sentido à vogal do tema à consoante
sem presença no espaço sem diferença na hora.
És a rota da Índia o sarcasmo do vento
a cãibra do gajeiro o erro do sextante
o acaso a maré o mapa a descoberta
num novo continente itinerante.










josé carlos ary dos santos
o surrealismo na poesia portuguesa
organiz. natália correia
assírio & alvim
2002






17 abril 2007

luar





o luar
era tão perto dos olhos cegos

e o teu chão

um mimo

no meu passo tão sozinho





gil t sousa
falso lugar
2004



16 abril 2007

papeis selvagens




10


De súbito, surgiram as ovelhas.
Num instante, num de baixar de olhos.
Por toda a paisagem e pela encosta do monte.
Eram cor de rosa, celeste. Sépia ou cor de platina;
as outras, brancas, negras.
Embora, por momentos, as coisas parecessem ao contrário.

Pensei que sonhava.
O que via num papel, desenhos em forma de ovelhas.
Mas não; era verdade.
Na paisagem.
E ao fechar os olhos aparecia a seguir, no ecrã negro,
um rosto rectangular, oval, e o corpo gordo, multiplicado,
sabiamente.

Pareciam ter acorrido à concentração,
convocatória, sem espanto, com alguma tristeza.

Não podia ir embora, por onde iria!
Não podia chamá-las, porque já aqui estavam.
Não podia afugentá-las, porque eram imóveis.
Não podia esquecê-las, porque não me esqueço.
Não podia aceitá-las, porque havia qualquer coisa
que não estava bem.

Eu tou entre a espada e a parede,
e isto é um pedido de ajuda.










marosa di giorgio
poemas
tradução de rosa alice branco










15 abril 2007

reflexões / paradoxos do individualismo




(…)

A nossa civilização edificou-se sobre as facilidades da comunicação, as quais ainda são uma surpresa para muitos de nós. Não há fronteiras: tudo se sabe, ainda que muito insuficientemente, e tudo pode ser visto em directo; as viagens deixaram de ser aventuras extraordinárias para se tornarem parte do que é habitual; tivemos de nos acostumar ao uso e manuseamento dos computadores, dos faxes e dos vídeos. E no entanto, temos saudades da vida em comum que já não existe. Os meios de comunicação, por estranho que pareça, não nos fazem comunicar, contribuindo antes para nos isolar no nosso próprio mundo. Nada faz com que o indivíduo se sinta mais compreendido, mais atendido, mais acompanhado. A sociedade da comunicação não é mais solidária nem mais afectiva. Não soube pôr os meios e o progresso técnico ao serviço da democracia e do entendimento mútuo. Muito menos ao serviço do ser humano. A técnica vale por si própria e só se submete ao poder económico.
As descobertas e as grandes viagens com que desponta a modernidade introduziram o relativismo no pensamento. O indivíduo deixou de ter um fim pré-fixado: foi concebido como um ser livre para forjar e escolher a sua própria vida. Nasceu a ideia da tolerância juntamente com a convicção de que o nosso mundo é plural e diverso. Desde então, sabemos que universalidade e individualismo têm de ser compatíveis. Não só é aceitável a projecção em formas de vida diferentes como a diferença é boa em si mesma, enriquece-nos a todos. Este é, no entanto, um ponto de vista que só estamos dispostos a defender em teoria e sempre e quando não nos exija demasiados sacrifícios. Hoje, no mundo desenvolvido, onde o que é diferente poderia ter mais oportunidades de expressão, as diferenças, venham de onde vierem, dissolvem-se rapidamente no crisol da americanização irreversível que engole todas as culturas. O mundo inteiro é Disneylandja. Longe de proporcionar iniciativas, o liberalismo económico homogeneíza as culturas. A moda é cómoda, dizia Ferrater Mora, porque «poupa o trabalho de pensar». Por isso, talvez, nos raros momentos de lucidez, resistimos a segui-la sem reservas e emitimos alguns sinais de oposição à mimese generalizada, à uniformidade do prêt à porter, ao simplismo do quantificável e redutível a números. Começamos a exigir mais qualidade. A qualidade de um passado que começa a parecer mais confortável: com o regresso ao regional, ao que sai da terra, ao caseiro, ao não adulterado. Ou a qualidade de um presente e um futuro menos servis perante os avanços técnicos. A qualidade, por outro lado, que nos tornará mais competitivos quando já quase nada pode ser inventado, mas tudo é muito melhorável.
O mercado não ajuda. A inércia do mercado é o obstáculo mais claro ao desenvolvimento daquilo que se tem vindo a chamar liberdade positiva. Seremos realmente autónomos, autogovernar-nos-emos? É evidente que a liberdade não é um absoluto, que as nossas circunstâncias determinam muitas das nossas preferências e escolhas. Nunca se escolhe a partir de nada. Mas, mesmo assim, escolher é uma obrigação, uma «condenação», disse o trágico Sartre. E poucas vezes se vêem as coisas desta maneira, porque ao mercado só interessam escolhas muito determinadas. O problema é que esse modelo, que só deveria valer para o consumo, vale já para tudo, por que tudo, incluindo os bens mais espirituais, deixam de ser apetecíveis se não se apresentam como bens de consumo.
Em resumo, uma quantidade de paradoxos e ambivalências que reflectem as duas faces do individualismo: a afirmação de um indivíduo autónomo e independente que quer ser expressão da humanidade mais autêntica, e a afirmação do indivíduo que se deixa moldar pelas forças, interesses ou grupos mais dominantes. Este último indivíduo tem as suas raízes teóricas na hipótese moderna, que culmina com a Ilustração, de um indivíduo central e prepotente, sujeito do saber verdadeiro e legislador da conduta justa. Um indivíduo que só entende a sua aceitação das normas sociais através da ficção teórica de um «contrato social». As teorias do contrato são, com efeito, a única explicação possível para sociedades formadas por indivíduos isolados e iguais, sem interesses comuns, sem vontade política prévia, sociáveis contra vontade, livres mas obrigados a usar a sua autonomia a favor do desenvolvimento da essencial dignidade humana. Os desejos, as paixões, as singularidades, o egoísmo, que, na realidade, definem os indivíduos, valem pouco, são obstáculos que devem ser vencidos para obter a harmonia do todo e de todos. Para isso basta que cada um obedeça à razão universal inscrita no próprio ser. A moral é autónoma: a lei moral não depende da religião, nem da lei positiva, nem, muito menos, dos costumes. Depende, contudo, da razão, esse enigma que quisemos converter em garantia da unanimidade em matéria de moral.
Tudo é pura abstracção. Uma abstracção que a filosofia conseguiu corrigir pouco a pouco: sem renegar o indivíduo como princípio e razão do conhecimento teórico e prático, a filosofia já não o concebe como esse ser sobredotado que contém em si próprio a chave e o poder para se transformar e transformar o universo, se a vontade lhe não falhasse. O indivíduo é hoje, basicamente, um ser que fala, tão ambivalente nas suas manifestações como na sua forma de as exprimir. A linguagem mediatiza tudo: o conhecimento e a relação com o mundo, o conhecimento e a relação com o outro, o autoconhecimento e a relação consigo próprio. A consciência da nossa realidade linguística acabou com o solipsismo — individualismo — metodológico que vertebrou toda a filosofia moderna de Hobbes até Hegel. Nietzche, Freud, Marx, Wittgenstein, Heidegger, Sartre, Foucault puseram em causa, cada um a partir da sua particular perspectiva, a validade teórica da consciência ou do indivíduo como ponto de partida absoluto até ao extremo de proclamar sucessivas mortes do sujeito. A única objectividade reconhecida hoje é a intersubjectividade. A verdade reside apenas no acordo. E dependemos absolutamente da linguagem: uma linguagem herdada de outros, substrato de outras culturas e outros tempos. O indivíduo não ignora os seus limites, sabe que a sua razão não é monológica, mas dialógica, que sozinho não irá a lado nenhum. Tudo isso foi assumido pelas ciências e foi também assumido pela filosofia, mas parece ignorado numa prática obtusa e servidora de outros deuses, que continua a manter entronizado o indivíduo soberano e possessivo. Mostram-no os recentes exemplos famosos como paradoxos e contradições do nosso tempo. À política democrática falta-lhe a interacção e participação que a definem; o trabalho tem como protagonista o homo econoinicus e o tempo livre não é emancipador; a comunicação é unilateral; as diferenças sucumbem à uniformização das modas; as sociedades fecham-se para preservar o que lhes é próprio e as propostas de integração são acolhidas com desconfiança; o indivíduo sente-se mais seguro e confortável na pele de burguês do que na de cidadão. As tendências à comunalidade, à cooperação, à associação com outros são igualmente egoístas e interessadas: a tribo, o clã, a etnia, a empresa, o partido, o sindicato, nada escapa — ou pelo contrário, tudo encoraja — ao corporatismo.
Em teoria, temos todos os ingredientes necessários para reconhecer e ir corrigindo o individualismo, para nos darmos conta do erro que encerra aquilo a que chamei o «preconceito egoísta» instaurado pela modernidade. Temo-los porque a filosofia sabe que ninguém tem razão e que a conduta racional não está previamente determinada. Sem solidariedade, já não só moral, mas também científica, não avançamos, nem é possível tornar real nenhum propósito. Na prática, contudo, continuamos a actuar com prepotência como ignorantes das nossas limitações. Triunfaram os valores liberais convenientes à economia de mercado. Fazemos declarações antirnodernidade, mas o direito de propriedade continua a ser a peça fundamental do credo liberal, tão intocável e prioritário como o foi para os liberais do século XVII.
Contudo, não deve satisfazer-nos por completo o credo individualista pois que o criticamos. Só a cegueira intelectual e o cinismo poderiam fazer derivar os valores individualistas realmente existentes do tronco dos direitos fundamentais. É outra ideologia na qual não lemos outro remédio senão confiar, a ideologia do mercado, a que converteu os valores individuais num individualismo estreito e perverso. É necessário dizê-lo: a ética tem que ser individualista, tem que preservar o indivíduo, mas essa preservação é, ao mesmo tempo, um direito e uma exigência: direito do indivíduo determinar o que quer e deve ser, exigência ao indivíduo de responsabilidade perante os outros como ser humano. Só assim, com essas exigências, pode construir-se uma ética, como propõe Fernando Savater, na base do «amor próprio». Só a partir da responsabilidade do humano se pode arvorar o princípio moral da «dissidência» que propõe Javier Muguerza.
(...)








victoria camps
paradoxos do individualismo
trad. de manuel alberto
relógio d´água
1996





as riquíssimas horas do Duque de Berry





abril

Chegada da Primavera. O jovem casal de noivos troca os anéis. É a esperança e a vida que voltam com o verde, com os pássaros, com o sol.




12 abril 2007

eu vi






Eu vi
Vi os comboios silenciosos os comboios negros que
vinham do Extremo-Oriente e que passavam como
fantasmas
E o meu olhar, como a lanterna da retaguarda, corre
ainda atrás desses comboios
Em Talga 100 000 feridos agonizavam por falta
de cuidados
Visitei os hospitais de Krasnõiarsk
E em Khi!ok cruzámos com um longo comboio de
soldados loucos
Vi nos lazaretos chagas abertas feridas que
sangravam a jorros.



E os membros amputados dançavam em volta
ou levantavam voo no ar roufenho
O incêndio estava em todos os rostos em todos
os corações
Dedos idiotas tamborilavam em todos os vidros
E sob a pressão do medo os olhares rebentavam
como abcessos
Em todas as estações deitavam fogo aos vagões


E vi
Vi comboios de 60 locomotivas que se escapavam
a todo o vapor perseguidas pelos horizontes
com cio e bandos de corvos que voavam
desesperadamente atrás,
Desaparecer
Na direcção de Porto-Artur.

Em Tchita tivemos alguns dias de descanso
Paragem de cinco dias devido a obstáculos da linha
Passámo-los em casa do Senhor lankéléwitch, que
queria dar-me em casamento a sua filha única.
Depois o comboio tornou a partir.
Agora era eu que me sentara ao piano e tinha dores
de dentes
Revejo quando quero esse interior calmo a loja do pai
e os olhos da filha que vinha à noite para a minha cama
Moussorgsky

E os lieder de Hugo Wolf
E as areias do Gobi
E em Khaïlar uma caravana de camelos brancos
Creio bem que estive bêbedo durante mais de
500 quilómetros
Mas eu estava ao piano e foi tudo quanto vi
Quando se viaja deviam-se fechar os olhos
Dormir
Gostaria tanto de dormir
Reconheço todos os países de olhos fechados pelo
seu odor
E reconheço todos os comboios pelo barulho que
fazem
Os comboios da Europa são a quatro tempos enquanto
os da Ásia são a cinco ou a sete
Outros seguem em surdina são canções de embalar
E há os que no ruído monótono das rodas me lembram
a prosa pesada de Maeterlinck
Decifrei todos os textos confusos das rodas e reuni
os elementos dispersos duma violenta beleza
Que eu possuo
E me força.



Tsitsika e Kharbine
Não vou mais longe
É a última estação
Desembarquei em Kharbine quando acabavam
de deitar fogo às instalações da Cruz Vermelha.

Ó Paris
Grande lareira ardente com os tições entrecruzados
das tuas ruas e velhas casas que se debruçam
por cima e se aquecem
Como os avós
E eis os anúncios, vermelho, verde, multicolores como
o meu passado em resumo amarelo
Amarela a cor altiva dos romances da França
no estrangeiro.
Nas grandes cidades gosto de me meter nos
autocarros em andamento
Os da linha Saint-Germain-Montmartre levam-me
ao assalto da Butte
Os motores mugem como touros de ouro
As vacas do crepúsculo pastam o Sacré-Coeur
Ó Paris
Estação central cais das vontades cruzamento das
inquietações
Só os droguistas têm ainda um pouco de luz por cima
das portas
A Companhia Internacional das Carruagem-Camas
e dos Grandes Expressos Europeus enviou-me
um prospecto
É a mais bela igreja do mundo
Tenho amigos que me rodeiam como barreiras
Têm medo quando eu parto que nunca mais volte

Todas as mulheres que conheci erguem-se
nos horizontes
Com gestos lastimosos e olhares tristes de semáforos
à chuva
Bela, Inês, Catarina e a mãe ‘do meu filho na Itália
E ainda a mãe do meu amor na América
Há gritos de sirene que me rasgam a alma
Na Manchúria um ventre estremece ainda como num
parto
Gostaria
Gostaria de nunca ter feito as minhas viagens
Esta noite um grande amor atormenta-me
E contra a minha vontade penso na jovem Joana
de França.
Foi numa noite de tristeza que escrevi este poema
em sua honra
Joana
A jovem prostituta
Estou triste estou triste
Irei ao Lapin Agile recordar-me da minha juventude
perdida
E beber copinhos
Depois voltarei sozinho para casa










Paris
Cidade da Torre única da enorme Forca e da Roda
do Suplício
Paris, 1913













blaise cendrars
poesia em viagem
assírio & alvim
1974




11 abril 2007

ein fichtenbaum…





Um pinheiro solitário,
Do Norte, sobre as alturas,
Dorme entre gelos e neves
Que o envolvem de brancuras.


E sonha com uma palmeira
Que longe, longe, no Oriente,
Sofre sozinha e calada,
Presa ao seu rochedo ardente.









heinrich heine
poesia de 26 séculos
segundo volume
de bashô a Nietzsche
trad. jorge de sena
editorial inova
1972



10 abril 2007

a pasolini






Sabes que eu
podia ter terminado
como o outro em óstia.

não porque tivesse um amante proletário violento
mas porque me opus a um lado e a outro
da conspurcação.

portanto leitor nunca te esqueças disso
nem da minha mente
tingida pelo sangue da adrenalina
do tempo furioso.

levantava-se um vento forte
em óstia semanas antes,
disse-me uma testemunha.
o mesmo vento áspero
que me faz hoje aquecer as mãos
com o bafo da minha boca
numa interminável
fila de refugiados entre a albânia e a grécia.

lembra-te pois disso leitor
e dá-me paz.












carlos saraiva pinto
escrever foi um engano
o correio dos navios
2001


09 abril 2007

brilhos






lembro-me
de te abrir as mãos


de procurar na janela
o cume das árvores
e de nos teus olhos

subir
içar os brilhos

até ao cegar da memória
até ao olvido
do saber

imaginei que poderias cantar
ceifar silêncios

como quem inventa um destino
e prodigamente se decifra
no fio do poema








gil t. sousa
poemas
2001

06 abril 2007

noutros tempos





noutros tempos
quando acreditávamos na existência da lua
foi-nos possível escrever poemas e
envenenámo-nos boca a boca com vidro moído
pelas salivas - noutros tempos
os dias corriam com a água e limpavam
os líquenes das imundas máscaras









al berto
horto de incêndio
assírio & alvim
1997