30 julho 2016

herberto helder / tríptico


  
     I

     «Transforma-se o amador na coisa amada» com seu
     feroz sorriso, os dentes,
     as mãos que relampejam no escuro. Traz ruído
     e silêncio. Traz o barulho das ondas frias
     e das ardentes pedras que tem dentro de si.
     E cobre esse ruído rudimentar com o assombrado
     silêncio da sua última vida,
     O amador transforma-se de instante para instante,
     e sente-se o espírito imortal do amor
     criando a carne em extremas atmosferas, acima
     de todas as coisas mortas.


     Transforma-se o amador. Corre pelas formas dentro.
     E a coisa amada é uma baía estanque.
     É o espaço de um castiçal,
     a coluna vertebral e o espírito
     das mulheres sentadas.
     Transforma-se em noite extintora.
     Porque o amador é tudo, e a coisa amada
     é uma cortina
     onde o vento do amador bate no alto da janela
     aberta. O amador entra
     por todas as janelas abertas. Ele bate, bate, bate.
     O amador é um martelo que esmaga.
     Que transforma a coisa amada.


     Ele entra pelos ouvidos, e depois a mulher
     que escuta
     fica com aquele grito para sempre na cabeça
     a arder como o primeiro dia do verão. Ela ouve
     e vai-se transformando, enquanto dorme, naquele grito
     do amador.
     Depois acorda, e vai, e dá-se ao amador,
     dá-lhe o grito dele.
     E o amador e a coisa amada são um único grito
     anterior de amor.


     E gritam e batem. Ele bate-lhe com o seu espírito
     de amador. E ela é batida, e bate-lhe
     com o seu espírito de amada.
     Então o mundo transforma-se neste ruído áspero
     do amor. Enquanto em cima
     o silêncio do amador e da amada alimentam
     o imprevisto silêncio do mundo
                                                        e do amor.




herberto helder
poesia toda
assírio & alvim
1996



1 comentário:

  1. Passando pra desejar um maravilhoso fim de semana e apreciar os teus escritos.

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