III
     Todas as coisas são mesa
para os pensamentos 
     onde faço minha vida de paz
     num peso íntimo de alegria
como um existir de mão 
     fechada puramente sobre o
ombro.
     — Junto a coisas magnânimas
de água 
     e espíritos, 
     a casas e achas de manso
consumindo-se, 
     ervas e barcos altos — meus
pensamentos criam-se 
     com um outrora lento, um
sabor 
     de terra velha e pão diurno.
     E em cada minuto a criatura 
     feliz do amor, a nua criatura
     da minha história de desejo,
     inteiramente se abre em mim
como um tempo, 
     uma pedra simples, 
     ou um nascer de bichos num
lugar de maio.
     Ela explica tudo, e o vir
para mim — 
     como se levantam paredes
brancas 
     ou se dão testas nos dedos
espantados das crianças
     — é a vida ser redonda
     com seus ritmos
sobressaltados e antigos.
     Tudo é trigo que se coma e
ela
     é o trigo das coisas,
     o último sentido do que
acontece pelos dias dentro.
     Espero cada momento seu
     como se espera o rebentar
das amoras
     e a suave loucura das uvas
sobre o mundo.
     — E o resto é uma altura
oculta,
     um leite e uma vontade de
cantar.
herberto helder
poesia toda
assírio & alvim
1996
