Os olhos luciferinos dos anjos.
Quero dizer: têm uma luz — possuem a qualidade 
veemente mas fria da espera, da promessa: sim?, da
anunciação.
Penso nas estátuas brancas, 
com seus olhos desprovidos de pupilas.
Colocadas assim nas trevas, essas estátuas 
ressaltam com uma doçura dolorosa e intempestiva 
e parecem indicar outro tempo: a luz, ou a treva maior, 
aquela que nem somos capazes de presumir.
Deste modo é que ela surgira no pórtico, 
e havia os pequenos e fortes cornos 
que irrompiam ao cimo da testa, 
acompanhando com maligna e rápida subtileza 
o movimento da cabeleira.
Aérea, a cabeleira.
Existia ainda uma boca para todo o silêncio.
Porque se tratava de silêncio, evidentemente.
Era esse o tema — é esse o tema das aparições.
Além do longo vestido, o tema branco — que obliquamente se
insinuava, 
como se insinuam os múltiplos planos — no tema das trevas.
Ah, sim: era o tema branco, 
e as mãos não traziam nenhum lírio pictórico, 
a haste comprida, a corola consagrada à alta e luminosa 
representação do angelismo.
Os braços caíam ao longo do vestido 
e as mãos estavam coladas às pernas.
Era quase um emblema ambíguo — sê-lo-ia, 
se o tempo houvesse parado antes, 
e eu apenas tivesse ali chegado 
como se chega à história antiga, ao facto de pedra: 
um monumento, uma capela, um túmulo, 
a casa do príncipe que criara a concentração dos seus mitos
tumultuosos 
na matéria adormecida.
Porque andava, eu, andava de um lado para outro, 
na penumbra em que se erguia a sobreposição de cilindros, 
de diâmetro cada vez menor, 
conforme se levantava a vista até ao cimo — e no cimo, 
no último pequeno cilindro, estava um longo mastro nu, 
sem bandeira de cidade ou nação.
Era difícil pôr-se a imaginar o serviço de todos os pórticos
abertos à roda de cada cilindro — não se esperasse, 
como seria possível, que em cada pórtico surgisse uma árvore
assim direita, uma figura, aquela mensagem silenciosa e
vibrante 
coisa mineral, vegetal: o coração dos dias desabitados.
Uma diferente figura em cada pórtico, 
ou a proliferação, numa momento inflacionista, 
de imagens todas iguais, como múltiplos avisos, 
múltiplos sinais da trepidação interior?
Por quantos lados ressuscita a vida enterrada?
Ë apenas para que se saiba: 
há muitos pórticos, 
e em cada pórtico tu próprio podes aparecer, 
para o primeiro passo em direcção ao teu lugar de trevas 
ou à cidade de Deus.
Mas ela era só uma e tinha para si um só pórtico, 
e ali estava, e a sua beleza contraditória e veloz 
acabava agora mesmo de ferir-me no que eu andava: 
por que eu andava de cá para lá, à frente do edifício.
Acorda-se, há um dia em que se acorda 
— e então a gente põe-se a andar.
(…)
herberto helder
apresentação do rosto
editora ulisseia
1968
