11 dezembro 2024

miguel oliva teles / nesta manhã

 
 
 
nesta manhã
o sol tímido e inclinado não chega
para desenvencilhar as mãos apertadas pelo frio
fiz apenas desenhos na estrada
recortando o perfil das árvores
e dando sombras às grades do jardim.
 
nesta manhã
chegam-me várias saudades
amores como esse sol
de uma fervura imensa
mas distante radiância.
 
e as mãos, guardo-as no peito
porque é nessas figuras cortadas
nas silhuetas de luz e escuro
e nas texturas que guarda o rocio
que vos conjuro
 
nas mãos ao peito
(quais luvas!)
há saudade
e há calor aprisionado.
 
 
 
miguel oliva teles
errando
editora urutau
2021




10 dezembro 2024

eugénio de andrade / um rio te espera

 



 

 

Estás só, e é de noite,
na cidade aberta ao vento leste.
Há muita coisa que não sabes
e é já tarde para perguntares.
Mas tu já tens palavras que te bastem,
as últimas,
pálidas, pesadas, oh abandonado!
 
Estás só
e ao teu encontro vem
a grande ponte sobre o rio.
Olhas a água onde passaram barcos,
escura, densa, rumorosa
de lírios ou pássaros nocturnos.
 
Por um momento esqueces
a cidade e o seu comércio de fantasmas,
a multidão atarefada
em construir pequenos ataúdes
para o desejo mais puro e mais sagrado,
a cidade onde cães devoram,
com extrema piedade,
crianças cintilantes
e despidas.
 
Olhas o rio
como se fora o leito
da tua infância:
lembras-te da madressilva
no muro do quintal,
dos medronhos que colhias
e deitavas fora,
dos amigos a quem mandavas
palavras inocentes
que regressavam a sangrar,
lembras-te da tua mãe
que te esperava
com os olhos molhados de alegria.
 
Olhas a água, a ponte,
os candeeiros,
e outra vez a água;
a água!,
água ou bosque,
sombra pura
nos grandes dias de verão.
 
Estás só.
Desolado e só.
E é de noite.
 
 
 
eugénio de andrade
até amanhã (1951-1956)
poemas
edit. inova
1971




09 dezembro 2024

vasco graça moura / o mês de dezembro

 
 
 
V

cada cidade tem uma gramática
e sombrias gaivotas; a juventude
tem um fulgor terrestre; ambas
a zona de fractura, o tempo, a orla
 
vulnerável; o acesso ao inverno
passa por elas. cada cidade
tem um teclado; contraponho:
a juventude vai-se deformando
 
mas ter amado e conhecido não lhe interessa
são canções de experiência, simulacros
de rosa doente. apenas o presente
lá onde o sol se cala para ambas
 
 
 
vasco graça moura
o mês de dezembro
poesia 1963/1995
quetzal editores
2007



 

08 dezembro 2024

camilo castelo branco / os amigos

 



 

Amigos cento e dez, e talvez mais,
Eu já contei. Vaidades que eu sentia!
Supus que sobre a terra não havia
Mais ditoso mortal entre os mortais.
 
Amigos cento e dez, tão serviçais,
Tão zelosos das leis da cortesia,
Que eu, já farto de os ver, me escapulia
Às suas curvaturas vertebrais.
 
Um dia adoeci profundamente.
Ceguei. Dos cento e dez houve um somente
Que não desfez os laços quase rotos.
 
– Que vamos nós (diziam) lá fazer?
Se ele está cego, não nos pode ver…
Que cento e nove impávidos marotos!
 
 
 
camilo castelo branco
os poemas da minha vida
mário soares
público
2005
 
 
 


07 dezembro 2024

manuel resende / porto-cidade sem nome

 
 
 
Esse abismo despejado sobre nós,
Que foi azul e se enche do ser nocturno dos homens,
Vibrado de luz no espesso nevoeiro nocturno –
Esse abismo é um deserto aéreo onde não se vive,
Porque é pura a distância à nossa volta,
Com a sua presença enorme, sem palavras.
É tão grande, tão completamente tudo,
Que aqui pareço ser livre e grande como ele.
Mas onde está tudo? E que tudo? Tudo mais não é do que
Um futuro que se aproxima,
Uma coisa que não se sabe e perigosa.
Que ser é este que imprime figuras no ar?
É o longe e o perto, o antigo e o presente, tempo esmagado
         contra
Um ar mudado em parede volumosa e sólida.
Nele não há pátria, nem vida, nem minutos que se sucedam.
A máquina da cidade parou de respirar.
Um homem que passeie neste desdobrável d eprédios
Perde sem saber o seu nome,
Entre os cães que dormem na rua.
E nem o rio que corre corre, congelado.
 
 
 
manuel resende
em qualquer lugar seguido por
o pranto de bartolomeu de las casas
poesia reunida
edições cotovia
2018
 



06 dezembro 2024

luís miguel nava / o tanque de bashô

 
 
 
          O tanque junto a que o crepúsculo mo traz é o de Bashô.
          A água maravilha-se.
 
 
          Inquinam-se as imagens, a pequena rotação do outono, o dia decom-
põe-se, o sangue explode contra a claridade.
 
          Um nó de leite a nudez cresce pela água



luís miguel nava
onde à nudez
poesia completa (1979-1994)
publicações dom quixote
2002




05 dezembro 2024

manuel gusmão / conheci um jovem

 
 
Conheci um jovem que me dói às vezes,
um pouco, no futuro. e não tenho amigas.
perco-me nelas, desentendo-me ao ponto
de já não estar ali e de correr depois
pela coberta dos navios, pelas pontes,
pelas praias onde a neve cai.
 
Tenho o doce do teu sangue alastrando
Em pasta, nuvens pesadas no céu da
Boca. Se eu não te morresse como estarias tu
Crescendo, meu querido amigo,
                    e u é?
 
E essa que me chamas é ainda já
a outra, a escura floresta
                                     e selvagem
 
e áspera e forte
que conheço de se tocarem as pétalas
                    na paixão?
 
 
 
manuel gusmão
dois sóis, a rosa
a arquitectura do mundo
a rosa falante ou o amoroso palimpsesto (1972, 1982)
caminho
1990




04 dezembro 2024

luiza neto jorge / recanto 2

 
 
 
Viver, entretanto, é ver, ir vendo
e também ver inclui dormir
sem que nada se desfaça ou exclua
no interior dos sonhos.
 
Pensemos no comércio de viver: passagem dos navios
quando, a passar, se retém a espessa
água do tempo, da tempestade.
 
Um comércio, apenas – desvio da moeda
da trajectória do ouro
para o papel.
 
Sempre viver inclui andar percorrer voar
de avião ou com os braços ou num ser de mais
rodas que nos conduza
a outro sentido ambulatório.
 
 
 
luiza  neto jorge
dezanove recantos (1970)
poesia
assírio & alvim
1993
 



03 dezembro 2024

luís veiga leitão / filho do povo

 
 
 
Filho do povo criado nas alturas
com pinheirais em torno e um vento cru
rachando a solidão das fragas duras
que nos tratam por tu
 
 
Daí
esta sede saibrosa que nos cresta
(nem sei ó meu irmão como tu medras)
 
 
Daí
esta fome surda de giesta
comendo a terra das próprias pedras
 
 
Filha dos montes que não têm nome
e pastora de um corpo na verdura
que o rebanho do tempo breve come
 
 
– Um relâmpago a tua formosura
 
 
 
luís veiga leitão
ciclo de pedras
portugália
1964





02 dezembro 2024

pedro homem de mello / carta a eugénio de andrade

 
 
 
Porto. Abril. Tantos de tal…
E contínuo a teu lado,
Hoje como ontem. Igual
A mim próprio: abandonado
Por todos, menos por ti.
Posto que tão diferente
Seja o berço em que nasci
Da praia, livre, onde passas
Com Sol a pino. Sorriste
Alheio às minhas desgraças?
Vê: mendigo sou que aceita
Mesmo uma côdea de pão,
Mas que traz na mão direita
A flor que as roseiras dão…
Vela pagada ou acesa?
– Sei que me podem comprar
Tudo, menos a nobreza
De sorrir quando há luar…
 
 
 
pedro homem de mello
eu desci aos infernos (1972)
poesias escolhidas
imprensa nacional-casa da moeda
1983




01 dezembro 2024

manuel alegre / lusíada exilado

 
 
 
Nem batalhas nem paz: obscura guerra.
Dói-me um país neste país que levo.
Sou este povo que a si mesmo se desterra
meu nome são três sílabas de trevo.
 
Há nevoeiro em mim. Dentro de abril dezembro.
Quem nunca fui é um grito na memória.
E há um naufrágio em mim se de quem fui me lembro
há uma história por contar na minha história.
 
Trago no rosto a marca do chicote.
Cicatrizes as minha condecorações.
Nas minhas mãos é que é verdade D. Quixote
trago na boca um verso de Camões.
 
Sou este camponês que foi ao mar
lavrou as ondas e mondou a espuma
e andou achando como a vindimar
terra plantada sobre o vento e a bruma.
 
Sou este marinheiro que ficou em terra
lavrando a mágoa como se lavrar
não fosse mais do que a perdida guerra
entre o não ser na terra e o ser no mar.
 
Eu que parti e que fiquei sempre presente
eu que tudo mandava e nunca fui senhor
eu que ficando estive sempre ausente
eu que fui marinheiro sendo lavrador.
 
Eu que fiz Portugal e que o perdi
em cada porto onde plantei o meu sinal.
Eu que fui descobrir e nunca descobri
que o porto por achar ficava em Portugal.
 
Eu que matei roubei eu que não minto
se vos disser que fui pirata e ladrão.
Eu que fui como Fernão Mendes Pinto
o diabo e o deus da minha peregrinação.
 
Eu que só tive restos e migalhas
e vi cobiça onde diziam haver fé.
Eu que reguei de sangue os campos das batalhas
onde morria sem saber porquê.
 
Eu que fundei Lisboa e ando a perdê-la em cada
viagem. (Pátria-Penélope bordando à espera.)
Eu que já fui Ulisses. (Ai do lusíada:
roubaram-lhe Lisboa e a primavera.)
 
Eu que trago no corpo a marca do chicote
eu que trago na boca um verso de Camões
eu é que sou capaz de ser o D. Quixote
que nunca mais confunda moinhos e ladrões.
 
Eu que fiz tudo e nunca tive nada
eu que trago nas mãos o meu país
eu que sou esta árvore arrancada
este lusíada sem pátria em Paris.
 
Eu que não tenho o mar nem Portugal.
(E foi meu sangue o vinho meu suor o pão).
Eu que só tenho as lágrimas de sal
que me deixou el-rei Sebastião.
 
Nem o Gama nem os doze de Inglaterra.
O herói sou eu: aqui sem pão nem glória.
Eu camponês no mar e marinheiro em terra
Todo-O-Mundo e Ninguém. Sou eu que faço a história.
 
Quem foi que fez de mim este estrangeiro
Este sem pátria a quem a Pátria dói?
Eu que fui camponês poeta e marinheiro
eu que fiz Portugal quero saber quem foi
 
Lusíada exilado. (E em Portugal: muralhas.)
Se eu agora morresse sabia por quê.
Venham tormentas e punhais. Quero batalhas.
Eu que sou Portugal quero viver de pé.
 
 
manuel alegre
o canto e as armas
centelha
1974
 



30 novembro 2024

sebastião alba / ninguém meu amor

 
 
 
Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obriga-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos
 
 
 
sebastião alba
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001
 



29 novembro 2024

jean genet / o condenado à morte




 

                                                          a Maurice Pilorge, assassino de vinte anos
 
 
O vento que rola um coração no pátio dos recreios, um anjo que soluça preso numa árvore, o pilar de céu que o mármore retorce, abrem portas de emergência à minha noite.
 
Um pobre pássaro que agoniza e o travo da cinza, a memória de um olho adormecido na parede e este doloroso punho que ameaça o firmamento, descem-me o teu rosto à palma da mão.
 
Mais duro e leve que uma máscara, o teu rosto tem na minha mão mais peso do que a jóia em dedos de um receptador quando a mete ao bolso; está afogado em pranto. É sombrio e feroz, coberto por um elmo de folhagem verde.
 
Tens o rosto severo: és um pastor grego. Sempre a fremir dentro das mãos que fechei. Com uma boca de morta onde os olhos são rosas e no nariz há o bico, talvez, de um arcanjo.
 
O gelo cintilante de um pudor maldoso que polvilhava o teu cabelo com um aço de astros claros, e te coroava a testa de espinheiros do canavial, que mal sagrado sabe desfazê-lo se o teu rosto canta?
 
Diz-me que desgosto doido te faz explodir nos olhos esse desespero tão forte que uma dor bravia e desvairada aparece, apesar do gelo que choras, a enfeitar-te a boca redonda com um sorriso de luto?
 
Esta noite não cantes aos “Latagões da Lua”. Mais vale, ó garoto de ouro, seres princesa pensativa de uma torre, a sonhar com o nosso pobre amor; ou aquele grumete loiro que vigia no cesto da gávea,
 
Que à noite, entre marinheiros em cabelo caídos de joelhos, desce para cantar na ponte a “Ave Maris Stella”; todos a agarrar no membro que salta, já, em mãos de larápio.
 
 (...)
 
 
 
jean genet
o condenado à morte
genet, seguido de o condenado à morte
de jean genet
yukio mishima
trad. de aníbal fernandes
hiena editora
1986





 

28 novembro 2024

joaquim manuel magalhães / paremos nas aparências

 
 
Paremos nas aparências,
pareces dizer com os teus olhos
eivados de noite, sedentários.
Falta a este amor que força
Do amor? E o falcão
voa muito baixo, sob muros.
 
Estar sozinho é o preço
duma vida? Um horizonte
de mágoa nas estrelas.
O silêncio cruza tão distante
entre o teu desterro e a minha
exclusão. As ruas nocturnas
serão nossas alguma vez?
 
É a morte que nos faz viver?
 
 
 
joaquim manuel magalhães
de súbito
uma luz com um toldo vermelho
editorial presença
1990
 



27 novembro 2024

henrique risques pereira / há sempre um comboio que parte

 
 
 
Há sempre um comboio que parte
de algures em qualquer parte do mundo
 
Há sempre um cais com gente
ansiosa da viagem para parte incerta
 
Há sempre um futuro com destino
que a gente do cais não conhece
 
Dentro deste comboio louco
vou eu em viagem dentro de mim
 
No cais alguém fica à espera
de um comboio que já partiu
 
 
 
henrique risques pereira
transparência do tempo
(poesia)
edição de perfecto e. cuadrado
quasi
2003




26 novembro 2024

antónio osório / não é a tristeza um dom


 

Não é a tristeza um dom,
e eu não a tinha.
 
Meus pais deram-me aquilo
que podiam, alma
da sua diversa.
 
Sou eu, neste almofariz,
que esmago sementes minhas
e procuro velhos remédios.
 
 
 
antónio osório
a ignorância da morte
editorial presença
1982
 



 

25 novembro 2024

elio pecora / a lua surgiu, redonda

 
 
 
A Lua surgiu, redonda, e distraiu-nos
(na janela sobre a magnólia),
estava quase a dizer: “Não és tu o amor.
Eu só quero agarrar-te, ter-te
por uma eternidade que não meço”.
Correram os dias, a Lua surgiu de novo
(no vento leve, sobre a magnólia)
e disseste-me: “Parto amanhã.”,
com a voz de quem não quer ferir,
enquanto afunda no ventre uma faca.
 
 
elio pecora
poemas escolhidos
recinto de amor (1992)
tradução de simoneta neto
quasi
2008
 



24 novembro 2024

joan margarit / idade vermelha

 
 
 
Tanto tempo para aprender que chegas tarde
ao grande amor. Que nunca terás vivido
uma idade de ouro. As rosas de Ronsard
nunca serão perfume nos teus olhos,
e o Outono não desfolhará
tantas pétalas nos braços de ninguém.
cobriste com o esquecimento todos os espelhos
como faziam nas casas dos defuntos.
Não regressam as mulheres com as quais,
por um instante efémero de ternura,
trocavas anos de solidão.
Porque a vida no Outono é ardente,
nas horas de angústia não poderás
amar nem a mulher que já perdeste.
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020



23 novembro 2024

juan luis panero / e de súbito anoitece

 
  
                                            Ed é súbito sera.
 
                                      Salvatore Quasimodo
 
 
 
Viver é ver morrer, envelhecer é isso,
enjoativo, tenaz, cheiro da morte,
enquanto repetes, inutilmente, umas palavras,
cascas secas, vidro partido.
Ver morrer aos outros, àqueles,
poucos, a quem verdadeiramente amaste,
desmoronados, desfeitos, como o fim deste cigarro,
rostos e gestos, imagens queimadas, enrugado papel.
E ver-te morrer a ti também,
remexendo frias cinzas, apagados perfis,
disformes sonhos, turva memória.
Viver é ver morrer e é frágil a matéria
e tudo se sabia e não havia engano,
mas carne e sangue, misterioso fluir,
querem preservar, afirmar o impossível.
Copo vazio, trémulo pulso, cinzeiro sujo,
na luz nublada do entardecer.
Viver é ver morrer, nada se aprende,
tudo é um desapiedado sentimento,
anos, palavras, peles, despedaçada ternura,
calor gelado da morte.
Viver é ver morrer, nada nos protege,
nada teve o seu ontem, nada o seu amanhã,
e de súbito anoitece.
 
 
 
juan luis panero
poemas
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2003
 



22 novembro 2024

emanuel jorge botelho / duas regras para cada véspera




 

 
rasgar cada dia com um lenho de espelho
se possível, afiar cada hora numa pedra de linho.
 
guardar o tempo dentro da alma.
se possível, não morrer.
 
 
 
emanuel jorge botelho
sombras e outros disfarces
averno
2022
 



 

21 novembro 2024

antónio franco alexandre / corto viaggio sentimentale, capriccio italiano

 
 
 
5
 
segredava-te, do tempo o vão aspecto;
existias de noite como a letra
de todo o movimento, e das estrelas
o céu pintado ao fundo;
e distraído, às vezes, confessava
amar a tua pele como quem
quer dizer-te: não morras nunca mais.
 
 
 
antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999
 




20 novembro 2024

pedro tamen / poema para todos os dias

 




 

 
I dia
 
 
                                        Un trozo azul tiene mayor
                                        Intensidad que todo el cielo.
 
                                        Alfonso Cortés

 
 
 
Fresco era o dia, plantado na chuva,
jovens os relógios tocando Mozart...
Os carros corriam, os passos passavam
e os velhos sentados dormiam no tempo
regressos perdidos de todas as sombras.
Pássaro poisado na alma da tarde,
era todo o sol natural inverno...
O mar estava perto nos olhos da gente,
um barco chegava em cada minuto
e o segredo bailava nas mãos da criança.
 
Recordo uma paz sob as gabardinas,
recordo humidade nas rodas dos carros...
(Tão solta no ar corria a memória
que as folhas tão verdes marcavam os anos.)
A chuva nascia da terra para o ar
e ria na cara da gente perpétua
– cada riso dela era a rua inteira
e era o cão vadio cheirando esta terra
gerada no vento pelo grande gesto.
Rua colocada por amor das formigas,
pequeno brinquedo achado no bosque,
eras mão aberta para todos os sons,
para cada assobio de vapor de água,
para a bela frescura da brisa salgada.
Ligeiros, os céus brincavam escondidos
com a tarde criança presente no ar,
jogavam às pedras ao pé dos passeios
e corriam juntos fugindo ao vento...
Passavam pessoas de faces vermelhas,
de um sonho pequeno agora acordadas,
seus passos miúdos de nada sabiam
– nada estava feito e tinham dez anos.
A branca neblina sentada no sol
sorria de perto a tudo o que era
e tudo saltava na sua presença.
 
Escorregavam horas do berço dos ramos
ficando caladas, respirando fumo...
E, leves, cheirosas, perpassavam as mãos,
tão estreitas e fortes do primeiro mundo.
 
Algo se esperava, algo estava perto,
algo era preciso, faltava a resposta,
o rio que fosse a cama da chuva,
a sombra final para o sol se deitar,
a torre perfeita com todos os olhos,
a mão que apertasse as coisas dispersas...
E eis que o rio vem, a sombra e a torre,
e se estendem dedos com a tua chegada.
 
Saltaram coelhos de todas as tocas
e a fonte da serra sorriu-se no musgo.
Manaram os beijos no ar respirado
e as malas abertas mostraram o fundo.
Fugiram cavalos de pernas de espuma
levando no pêlo notícias em branco.
E o vento corria em busca da lua
e a tarde e os céus calavam os gritos…
Silêncio se fez, e a erva cresceu
mais verde e mais fresca, segura certeza.
Espreitaram os sinos, riram-se as escadas
tudo estava pronto e de novo erguido.
 
Tão bela que vinhas como que de infância,
tão pura e tão simples, tão gesto benigno,
tão nova palavra rasgada no mar...
Menina dos anos, dos anos perdidos,
sombra de outras noites, noiva de outros dias,
perfeita miragem, pele das próprias mãos,
eis que então chegavas e eis que eu te via,
e as horas sorriam, felizes, completas.
 
Teu rosto era a concha dos quatro oceanos,
teu corpo era a praia de areia molhada,
teus olhos erguiam o toldo do céu
e enchiam os mastros de verdes bandeiras.
Tu eras o vento, tu eras a força,
dançavam secretas tuas mãos de aragem...
 
Nasceste presença na tarde de bronze
e agora já nada seria indeciso.
Agora tu eras a essência dos nomes,
os galos cantavam, era bom respirar.
Os prados distantes ficavam tranquilos,
esperando os teus pés, berlindes pequenos.
A chuva e a brisa, a jovem frescura,
guardavam certeza, seguras estavam
– morena lembrança, segundo natal.
 
Nunca mais a noite mordida no escuro,
nunca mais o dia manchado de cuspo,
nunca mais o véu tapando-me tudo,
nunca mais os dedos procurando flores...
A estátua plantada na nudez do largo
devolvia a calma aos olhos fechados
e enchia de sombra as pedras queimadas.
Agora eu sabia que em cada manhã
nasceria o sol atrás dos teus ombros.
 
 
 
pedro tamen
poema para todos os dias (1956)
tábua da matérias
poesia 1956/1991
círculo de leitores
1995
 




19 novembro 2024

ruy belo / regresso

 
 
 
Não não mereço esta hora
eu que todo o dia fui habitado por tantas vozes
que exerci o comércio num mercado de palavras
Não mereço este frio este cheiro tudo isto
tão antigo como os meus olhos
talvez mesmo mais antigo que os meus olhos
 
 
ruy belo
todos os poemas I
tempo
assírio & alvim
2004




18 novembro 2024

carlos de oliveira / porta

 
 
 
A porta que se fecha
inesperadamente na distância
e assusta o romancista
que descreve o seu quarto de criança
(é difícil dizer
se os velhos arquitectos
que punham tanto amor
na construção do quarto
teriam ponderado com rigor
a escala deste som
e o espaço coagulado
ao fundo do corredor)
a porta que se fecha no passado
sobressaltando a escrita e o escritor.
 
 
 
carlos de oliveira
sobre o lado esquerdo
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1982




17 novembro 2024

álvaro de campos / poema de canção sobre a esperança

 
 
 
               I
  
Dá-me lírios, lírios,
E rosas também.
Mas se não tens lírios
Nem rosas a dar-me,
Tem vontade ao menos
De me dar os lírios
E também as rosas.
Basta-me a vontade,
Que tens, se a tiveres,
De me dar os lírios
E as rosas também,
E terei os lírios —
Os melhores lírios —
E as melhores rosas
Sem receber nada.
A não ser a prenda
Da tua vontade
De me dares lírios
E rosas também.
 
 
                II
 
Usas um vestido
Que é uma lembrança
Para o meu coração.
Usou-o outrora
Alguém que me ficou
Lembrada sem vista.
Tudo na vida
Se faz por recordações.
Ama-se por memória.
Certa mulher faz-nos ternura
Por um gesto que lembra a nossa mãe.
Certa rapariga faz-nos alegria
Por falar como a nossa irmã.
Certa criança arranca-nos da desatenção
Porque amámos uma mulher parecida com ela
Quando éramos jovens e não lhe falávamos.
Tudo é assim, mais ou menos,
O coração anda aos trambulhões.
Viver é desencontrar-se consigo mesmo.
No fim de tudo, se tiver sono, dormirei.
Mas gostava de te encontrar e que falássemos.
Estou certo que simpatizaríamos um com o outro.
Mas se não nos encontrarmos, guardarei o momento
Em que pensei que nos poderíamos encontrar.
Guardo tudo,
(Guardo as cartas que me escrevem,
Guardo até as cartas que não me escrevem —
Santo Deus, a gente guarda tudo mesmo que não queira,
E o teu vestido azulinho, meu Deus, se eu te pudesse atrair
Através dele até mim!
Enfim, tudo pode ser...
És tão nova — tão jovem, como diria o Ricardo Reis —
E a minha visão de ti explode literariamente,
E deito-me para trás na praia e rio como um elemental inferior,
Arre, sentir cansa, e a vida é quente quando o sol está alto.
Boa noite na Austrália!
 
17-6-1929
 
 
álvaro de campos
livro de versos,
fernando pessoa
estampa
1993





16 novembro 2024

ricardo reis / uma após uma as ondas apressadas

 
 
 
Uma após uma as ondas apressadas
Enrolam o seu verde movimento
E chiam a alva espuma
No moreno das praias.
Uma após uma as nuvens vagarosas
Rasgam o seu redondo movimento
E o sol aquece o espaço
Do ar entre as nuvens escassas.
Indiferente a mim e eu a ela,
A natureza deste dia calmo
Furta pouco ao meu senso
De se esvair o tempo.
Só uma vaga pena inconsequente
Pára um momento à porta da minha alma
E após fitar-me um pouco
Passa, a sorrir de nada.
 
23-11-1918
 
 
 
fernando pessoa
odes de ricardo reis
ática
1946




15 novembro 2024

zbigniew herbert / o seixo




 

 
o seixo é um ser
perfeito
 
igual a si mesmo
zela pelas suas fronteiras
 
inteiramente cheio
do sentido de ser pedra
 
tem um cheiro que nada lembra
não afugenta não desperta desejo
 
o seu entusiasmo e frieza
são justos e cheios de dignidade
 
sinto grande censura
quando o seguro na mão
e o seu corpo nobre
absorve um falso calor
 
                – Os seixos não se deixam domesticar
                hão-de observar-nos até ao fim
                com um olhar tranquilo e muito claro
 
 
 
zbigniew herbert 
poesia quase toda
tradução de teresa fernandes swiatkiewicz
cavalo de ferro
2024
 



 

14 novembro 2024

josé carlos ary dos santos / nona sinfonia

 
 
É por dentro de um homem que se ouve
o som mais alto que tiver a vida
a glória de cantar que tudo move
a força de viver enraivecida.
 
Num palácio de sons erguem-se as traves
que seguram o tecto da alegria
pedras que são ao mesmo tempo as aves
mais livres que voaram na poesia.
 
Para o alto se voltam as volutas
hieráticas     sagradas     impolutas
dos sons que surgem     rangem e se somem.
 
Mas de baixo é que irrompem absolutas
as humanas palavras resolutas.
Por deus não basta. É mais preciso o Homem.
 
 
 
ary dos santos
sonetos de amor e luta (1997)
ary, obra poética
edições avante!
2017
 



13 novembro 2024

nuno júdice / epigrama

 
 
 
A loucura é a grandeza dos simples:
assim são eles mais do que eles,
colhendo flores brancas e reles.
 
Os doidos, de olhos arregalados,
crescem devagar como as árvores:
só não dão folhas nem frutos.
 
Amo as suas frases sem sentido:
dobram nelas os sinos abstractos
de um campanário sem janelas.
 
Dai-me, ó loucos, a vossa razão
– esses remos de subir o tempo
até à fonte de um deus obsceno e nu.
 
 
 
nuno júdice
50 anos de poesia
antologia pessoal (1972-2022)
dom quixote
2024
 



12 novembro 2024

gastão cruz / outono do amor

 
 
 
                                        A voz e a vida a dor me está tirando
 
                                        Camões

 
 

Outono do amor que folhas moves
na direcção dos corpos separados
e molhas desses prantos     ignorados
de quem da primavera conheceu o
 
movimento das aves
e desses movimentos estas esperas
agora só conhece já e ouve
a própria voz descida com as folhas
 
a voz própria cansada
quando a vida
e a voz lhas está a dor tirando
 
Outono do amor outono de aves
e das vozes caladas e de folhas
molhadas de temor e surdo pranto
 
 
 
gastão cruz
as aves
os poemas (1960-2006)
assírio & alvim
2009




11 novembro 2024

eugénio lisboa / soneto do último ano

 
 
Quando se chega à idade que tenho,
o aniversário que se assinala
pode bem ser o último que venho
a fruir, antes de fechar a mala.
 
Fazer algo pela última vez
é uma experiência estranha:
mesmo que se trate só de talvez,
a coisa é estranha e não se entranha.
 
Beijar ou amar pela última vez,
não permitir dizer «mais uma vez»,
oferecer ao nada um ar cortês
 
é, digam o que disserem Vocês,
seja-se escocês ou mirandês,
fibra de guerreiro cartaginês!
 
25.05.2022
 
 
 
eugénio lisboa
poemas em tempo de guerra suja
guerra & paz
2022




10 novembro 2024

luís quintais / a imagem quase apagada

 
 
 
Dir-me-ás as certezas que não tenho
agora que o Inverno começou
 
e os dias, desamparados, celebram a luz
em perda, o mar que na sombra própria
 
se eclipsa, a noite, tela espessa
onde prometi escrever este poema.
 
A imaginação é meio caminho,
a realidade devora a metade restante.
 
Eu lembro-me de ti, és uma imagem
quase apagada no delicado álbum
 
dos dias felizes, o passado
deste futuro. As árvores – acácias –
 
são sopradas, o vento é imparável,
contradiz o afiado gume cm que retomo
 
a imagem quase apagada.
 
 
 
luís quintais
nocturama
assírio & alvim
2024




09 novembro 2024

nuno guimarães / arte que se desdobra sobre a mesa

 
 
 
Arte que se desdobra sobre a mesa
ao longo da toalha. Rigorosa
nas formas da madeira. No esforço
do linho semeado sobre a mesa.
 
Arte também do trigo que repousa
enérgico no pão sobre a toalha.
Negado à boca fria. E ao palato
sem poder de motor e já sem água.
 
Dobadoira que lavras a secura
do corpo de erosão. Que sem palavras
emigra a sua morte sobre a cama.
 
Dobadoira do pão e da pobreza
articulada à boca como um fruto
aberto e apodrecido sobre a mesa.
 
 
 
nuno guimarães
a carne
entre sílabas e lavas
poesia completa
assírio & alvim
2024
 



08 novembro 2024

josé emílio pacheco / a ilha




 

 
Chegámos à ilha. O Outono
abria caminho pelo ar, e no lago
as folhas encarnadas e amarelas flutuavam
como peixes mortos.
 
Só o crepúsculo me seguiu até à praia.
Águas cor de mar, pedras como ondas.
Por toda a parte
infinitas folhas caídas.
Eu e a ilha éramos
folhas também, e nunca o soubemos.
 
 
 
josé emílio pacheco
islas a la deriva (1973-1975)
a árvore tocada pelo raio
antologia poética
trad. miguel filipe mochila
maldoror
2024
 



 

07 novembro 2024

roger wolfe / noites de página em branco

 
 
 
Tu contra o mundo
e o mundo contra ti.
E nesta guerra só uma coisa
é certa:
vai haver
um morto.
 
 
 
roger wolfe
fazer o trabalho sujo
tradução de luís pedroso
língua morta
2020




 

06 novembro 2024

julio cortázar / instruções-exemplos sobre a maneira de ter medo

 
 
Numa aldeia da Escócia vendem-se livros com uma página em branco, página perdida num lugar qualquer do volume. Se o leitor der com essa página às três da tarde, morre.
 
Na Praça do Quirinal, em Roma, existe um ponto conhecido dos iniciados até ao séc. XIX e do qual, em noites d elua cheia, lentamente se vê mexer estátuas de Dióscuros que lutam com os seus cavalos encabritados.
 
Em Amalfi, ao findar a zona costeira, há um molho que entra pelo mar e pela noite. Ouve-se um cão a ladrar para lá do último candeeiro.
 
Um homem está a pôr pasta na escova dos dentes. De repente vê uma diminuta imagem de mulher deitada de costas, feita de coral ou talvez de miolo de pão colorido.
 
Ao abrir o armário para tirar uma camisa, um velho almanaque cai, que se desfaz, desfolha, que cobre a roupa branca com milhares de sujas borboletas de papel.
 
E um caixeiro-viajante a quem o pulso esquerdo começou a doer, mesmo debaixo do relógio. Ao tirá-lo, o sangue jorrou: a ferida revelava a marca de uns dentes muito finos. O médico acaba de nos examinar, ficamos descansados. A sua voz grave e cordial antecede os medicamentos cuja receita vai escrevendo, sentado à secretária. De vez em quando levanta a cabeça e sorri para nos animar. Não é nada de grave, numa semana já estaremos bons. Felizes recostamo-nos na poltrona, olhamos à volta, distraidamente. De repente, debaixo da secretária, na penumbra, vemos as pernas do médico. Tem as calças pelo joelho e usa meias de mulher.
 
 
 
júlio cortázar
histórias de cronópios e de famas
manual de instruções
tradução de alfacinha da silva
editorial estampa
1973




05 novembro 2024

fiama hasse pais brandão / barcas novas

 




 
                                        En Lixboa, sobre lo mar
                                        barcas novas mandei lavrar.
                                        Ai, mia senhor velida!
 
                                        En Lixboa, sobre lo ler
                                        barcas novas mandei fazer.
                                        Ai, mia senhor velida!
 
                                        Barcas novas mandei lavrar
                                        e no mar as mandei deitar.
                                        Ai, mia senhor velida!
 
                                        Barcas novas mandei fazer
                                        e no mar as mandei meter.
                                        Ai, mia senhor velida!
 
                                                               Joan Zorro

 
 
 
Lisboa tem barcas
agora lavradas de armas
 
Lisboa tem barcas novas
agora lavradas de homens
 
Barcas novas levam guerra
As armas não lavram terra
 
São de guerra as barcas novas
ao mar mandadas com homens
 
Barcas novas são mandadas
sobre o mar
 
Não lavram terra com armas
os homens
 
Nelas mandaram meter
os homens com a sua guerra
 
Ao mar mandaram as barcas
novas lavradas de armas
 
Em Lisboa sobre o mar
armas novas são mandadas
 
 
 
fiama hasse pais brandão
barcas novas (1967)
obra breve, poesia reunida
assírio & alvim
2017



04 novembro 2024

marcos foz / enublado dizes



 

[…]
 
«é sempre numa casa que estamos
sós» lembra-nos de raspão
rosto mal conhecido, desenhado
a linhas de carvão dos que não
se deixam conhecer; e o cultivo
do nosso dia, «modesto ameaçado
ajardinado» é mister dos que
caminham alheios a tudo, hagiografia
minada de gentis corruptelas – suaves
raparigas indomáveis rapazes,
degrau a degrau, entre síncopes e
bailaricos, enverdecido mergulho, actuando
nas formas que tombam para o lado
da noite, sagrada conspiração lusófona,
louvadas sejam as linha do que a mim
se encosta e respira, estafetas do recomeço
apontando a saída de emergência ao
longo do inominável, meus terraços a meia
altura, astrolábios necessários pajens
amantes do acaso, remendos
acrescentos, faúlhas que despertam o ouvido
deste vosso ridículo príncipe das nuvens
coroado a carências e sinais de faroleiro
 
[…]
 
 
 
marcos foz
enublado dizes
edição do autor
2024
 




 

03 novembro 2024

daniel faria / trago os instrumentos do fogo

 
 
 
Trago os instrumentos do fogo
Ponho-os na boca
Ponho-os no coração
 
Trago os instrumentos da respiração
– Uma montanha, uma árvores que lhe dá abrigo –
E suspendo-os nos ramos como pinhas que dão sombra
Um lugar fresco para os deportados de Sião nas margens
 
Trouxe também os instrumentos dos mineiros
Uma luz na cabeça voltada para o pensamento
Um olhar profundo
O modo prisioneiro de virem livremente para fora
 
E trago todos os instrumentos na circulação do sangue e na ocupação
                                                                                                     [permanente
Das mãos
Para o instrumento difícil
Do silêncio
 
 
 
daniel faria
poesia
homens que são como lugares mal situados
quasi
2003
 



02 novembro 2024

paul claudel / cem frases para leques

 
 
 
1
 
Tu
chamas-me Rosa
diz a Rosa
mas se tu soubesses
o meu verdadeiro nome
logo eu
me desfolharia
 
 
paul claudel
cent frases pour éventails (1927)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003
 



01 novembro 2024

edgar lee masters / cassius hueffer

 
 
 
Esculpiram na minha lápide as seguintes palavras:
«Foi gentil a sua vida, e de tal modo se combinaram nele os
     elementos
que poderia a natureza levantar-se e dizer ao mundo
este foi um homem.»
quem me conheceu sorri
ao ler esta retórica vazia.
 
O meu epitáfio devia ter sido:
«Não foi gentil com ele a vida,
e de tal modo se combinaram nele os elementos
que à vida moveu guerra
e nessa guerra foi assassinado.»
Toda a minha vida odiei a calúnia:
e agora que estou morto tenho que suportar um epitáfio
gravado por um asno!
 
 
 
edgar lee masters
spoon river
tradução josé miguel silva
relógio d´água
2003



31 outubro 2024

rui diniz / o moribundo consigo

 
 
 
Quero ainda contemplar a tarde e acreditar
nela. Quero ainda estar vazio de coragem
alguma. Vazio como sempre estive.
Agora que o sol no olhar me arde
desejo crer nele até vê-lo apagado
em mim.
Oh o murmúrio desta certeza que me enche
de ser inteiro como o mistério e claro
como qualquer reflexo do rio. Tudo pára
para ser contemplado por mim.
A minha dor já quase me não pertence.
Já quase me não reconheço falando de mim.
E a minha vida não se torna presente
na minha memória que o tempo esgotou.
Quero ainda contemplar o que não farei
de novo, medir o cansaço dos meus olhos
e do meu verso. Quero deixar que chegue a noite
e a luz que lhe é própria, que chegue
e outra tarde, que eu possa contemplá-la…
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022