30 dezembro 2024

joan margarit / o rosto do meu pai

 
 
 
Olho-te entre a gente e tu não me vês.
Os músicos de rua
partilham os seus sons num ruidoso concerto.
Vejo na tua cara a queimadura
que o hábito de olhar-te
tinha já apagado.
A tua história distante
perde-se nos becos estreitos e obscuros
dos arredores da Rambla.
Talvez nalgum sítio ainda esteja o fogão
onde dos braços da tua mãe caíste
sobre o óleo a ferver.
Pesam os anos contigo
amontoados como neve num telhado.
Não me viste, e os meus olhos, como lábios,
roçam a tua barba de uns quantos dias
e a velha queimadura que te atravessa
a cara e a vida.
Todos caímos de alguns braços
e a horrorosa cicatriz acaba
por ser um sinal de amor e companhia.
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020




Sem comentários:

Enviar um comentário