08 agosto 2025

fátima maldonado / café roma, janeiro 80

  
A tua cara era
do outro lado, na mesa do café,
escorrida qual um mármore
ao surgir da nascente.
Estavas intacto
e temi arranhar-te
sulcar-te na lisura
cegar-te na raiz.
Alguém há-de depois
fazer que compreendas
a razão dos soluços.
Alguém transformará
tua paisagem
num assolado campo mineral
onde Heathcliff movido
por ciúme
cortará entre dentes
seus tenazes rancores
o que se faz à pargana do trigo
e nos crava na língua
uma farpa movente.
Ao encontrar a pedra
entre o pé e a bota
pensará de certeza na veloz Catarina.
Outra irá decompor
em correntes de chuva,
um lustre suspenso
num olival de névoa,
a tua equilibrada junção maxilar.
A tua boca saberá
a incúria do amor apressado.
A testa há-de sofrer
a distorção do pânico,
a secreta mordida
que nos larga esvaídos,
as mãos tocando a pele
dos nossos próprios dedos.
Mas eu por mim recuso
tanta inocência junta.
 
 
 
fátima maldonado
os presságios
os encontros
editorial presença
1983




 

07 agosto 2025

luiza neto jorge / fractura

  
Despedaça expor esta fractura,
espiar por ela os meus amigos,
fechados vários peitos, várias artérias,
pela máquina morte removidos.
 
Escritas daninhas: pouca me sinto já
para expurgá-las! Em lava aluem,
riscam a lume páginas estremes,
e um braço na tormenta salienta-se das vagas,
 
frutífero implanta-se
no seio do nosso corpo escasso.
Membro em viço, irmão braço vem
por dentro semear-nos!
 
 
 
luiza  neto jorge
a lume
poesia
assírio & alvim
1993



 

06 agosto 2025

maria gabriela llansol / o começo de um livro é precioso

  
 
301
 
Parábola para o homem especulativo (sobre o bojo de um cálice) _____
180° é a soma dos ângulos de um triângulo, exemplo corrente em
Spinoza como sabe. Com esse exemplo, de facto, a distinção entre
O falso e o verdadeiro torna-se evidente. Mas como passar com
Elegância da ideia adequada ao conhecimento intuitivo? Ponha
De parte a geometria deste tampo e repare na geometria desse bojo.
A soma dos ângulos de um triângulo é agora superior. O excesso
Ou resto é proporcional à área do triângulo. Quanto mais ampla
For a esfera maior será o conhecimento intuitivo.
 
 
 
maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003




 

05 agosto 2025

mário cesariny / os bantos e as aves

  
Junto da pobre praia sempre suja
onde é desconhecido o automóvel por dentro
ele repousa da sua longa miséria
ouvindo o pássaro-bicho canta que canta
mirando o rio-pluma desce que desce
o molhado batuque das cinturas
Sobre a areia da cerca canta que canta
ele repousa ignoto na sua mão
que não tem que fazer. Na sua aurora
que não tem que raiar. Na sua cama
vincada há dois mil anos para ele
 
Convém que seja noite porque ele ri
e o seu riso é uma coisa insuportável,
uma feérica praia muito limpa
coberta de pancada e de água escura
À entrada da cerca canta que canta
assomou para ele o noivo estranho
como o seu passo de um dia de descanso
seu riso de água doce pela boca
(na cinta a chibatinha e a lanterna
na mão os dedos com que guarda tudo)
 
“Condicionalismo económico! Condicionalismo económico!”
protesta o pássaro-bicho canta que canta
gorjeia o rio-pluma desce que desce
ao dente sexual do automóvel por dentro
 
No entanto eles entram na cubata
juntos repousam nus do mesmo inferno
seus corpos eriçados de diamante
seus olhos de murmúrio e de paciência
são uma grande selva inconquistável
 
 
mário cesariny
pena capital
assírio & alvim
1999




04 agosto 2025

joão miguel aragão / cantar

 



 

 
Vou pela estrada
que entre escombros estendes,
de olhos na cidade alta,
esse sítio íntimo, ínfimo,
onde és a casa e o relento,
o alicerce e a ruína,
o fim de tudo o que em mim
começa e se abalança
a cantar.
 
 
 
joão miguel aragão
pacto
poética edições
2025




03 agosto 2025

álvaro de campos / realidade

  
Sim, passava aqui frequentemente há vinte anos...
Nada está mudado — ou, pelo menos, não dou por isso —
Nesta localidade da cidade...
 
Há vinte anos!...
O que eu era então! Ora, era outro...
Há vinte anos, e as casas não sabem de nada...
 
Vinte anos inúteis (e sei lá se o foram!
Sei eu o que é útil ou inútil?)...
Vinte anos perdidos (mas o que seria ganhá-los?)
 
Tento reconstruir na minha imaginação
Quem eu era e como era quando por aqui passava
Há vinte anos...
Não me lembro, não me posso lembrar.
O outro que aqui passava então,
Se existisse hoje, talvez se lembrasse...
Há tanta personagem de romance que conheço melhor por dentro
Do que esse eu-mesmo que há vinte anos passava aqui!
 
Sim, o mistério do tempo.
Sim, o não se saber nada,
Sim, o termos todos nascido a bordo.
Sim, sim, tudo isso, ou outra forma de o dizer...
 
Daquela janela do segundo-andar, ainda idêntica a si mesma,
Debruçava-se então uma rapariga mais velha que eu, mais lembradamente de azul.
 
Hoje, se calhar, está o quê?
Podemos imaginar tudo do que nada sabemos.
Estou parado física e moralmente: não quero imaginar nada...
 
Houve um dia em que subi esta rua pensando alegremente no futuro.
Pois Deus dá licença que o que não existe seja fortemente iluminado.
Hoje, descendo esta rua, nem no passado penso alegremente.
Quando muito, nem penso...
Tenho a impressão que as duas figuras se cruzaram na rua, nem então nem agora,
Mas aqui mesmo, sem tempo a perturbar o cruzamento.
Olhámos indiferentemente um para o outro.
E eu o antigo lá subi a rua imaginando um futuro girassol.
E eu o moderno lá desci a rua não imaginando nada.
 
Talvez isto realmente se desse...
Verdadeiramente se desse...
Sim, carnalmente se desse...
 
Sim, talvez...
 
15-12-1932
 
 
 
álvaro de campos
poesias de álvaro de campos
fernando pessoa
ática
1944



02 agosto 2025

antero de quental / despondency

  
 
Deixá-la ir, a ave a quem roubaram
Ninho e filhos e tudo, sem piedade…
Que a leve o ar sem fim da soledade
Onde as asas partidas a levaram…
 
Deixá-la ir, a vela que arrojaram
Os tufões pelo mar, na escuridade,
Quando a noite surgiu da imensidade,
Quando os ventos do Sul se levantaram…
 
Deixá-la ir, a alma lastimosa,
Que perdeu fé e paz e confiança,
À morte queda, à morte silenciosa…
 
Deixá-la ir, a nota desprendida
Dum canto extremo… e a última esperança…
E a vida… e o amor… deixá-la ir, a vida!



antero de quental
maria alzira seixo, os poemas da minha vida
publico
2006




01 agosto 2025

p. feijó / quem me dera poder dizer tudo isto



 

Quem me dera poder dizer tudo isto. Quem me dera poder gritá-lo sem hesitação, sem nenhuma inquietação. Quem me dera poder dizer «vós», «vosso», «vocês», e ter na mão a certeza dos contornos da minha oposição, dos meus adversários. Quem me dera poder fazer tudo isto.
 
Mas à noite, quando as costas se derramam nos lençóis e o corpo se faz horizontal, o primeiro expirar dos olhos sabe de imediato que de novo navego miragens. A minha raiva não quebra nenhuma jaula. O meu grito faz parte do vosso repertório, e o meu azedume, do cardápio. O ressentimento prende-me a uma economia amestrada. Como não há um «nós», não há um «vós». Sou também a minha própria abjecção, sou também o presságio do meu próprio fim. Nunca deixei completamente de vos ver.
 
Mas talvez seja essa a minha, a «nossa», maior arma.
 
Se não posso deixar de vos ser, a razão por que vos sou abjecta e abominável é que vocês também nunca deixaram de me ser a mim. O difícil não é ser demasiado parecida. E aí entra não a minha, mas a vossa imaginação: vocês re-conhecem-se em mim.
 
 
 
p. feijó
episódios de fantasia & violência
orfeu negro
2024
 



 

31 julho 2025

pierre louÿs / ao navio

  

XLVII
 
Belo navio que me trouxeste seguindo de perto as costas da Jónia,
entrego-te às vagas cintilantes. É, com pé ligeiro, que
salto para o areal.
 
Regressas à terra em que a virgem é a amiga das ninfas.
Não te esqueças de agradecer às conselheiras invisíveis
e entrega-lhes, como oferenda, este raminho
que eu própria colhi.
 
Foste pinheiro e, nas montanhas, teus ramos agudos,
teus esquilos e teus pássaros oscilavam ao ritmo
do vasto e inflamado vento sul.
 
Que agora o vento norte seja teu guia e, ao sabor
do mar paciente, te empurre devagar para o cais,
ó nave negra escoltada por golfinhos.
 
 
pierre louÿs
o sexo de ler de bilitis
elegias em mitilene
trad. maria gabriel llansol
relógio d´água
2010




30 julho 2025

maria alberta menéres / duas linhas de cor ao alto

  
 
Duas linhas de cor ao alto
e no meio um pedaço de alguém
A seta é escura      O pássaro
fugiu de noite
Eu encontrei-o quando ele não
estava perdido
e consolei-o de tristeza
quando ele já era triste
 
 
 
maria alberta menéres
os mosquitos de suburna (1967)
poesia completa
porto editora
2020
 



29 julho 2025

manuel de castro / a voz quase silêncio

  
vai-se perdendo a voz quase silêncio
um corpo agora oco     gasto     frio
a morte é uma cor que foi escolhida
para encontrar a direcção do vento
 
o homem que foi um feto      que foi um peixe
que foi o ar     que foi o sangue e o gesto
atravessa o mar com círculos nos braços
possuído no seu próprio destino
na descoberta dos focos submarinos
 
ao nível das estrelas mais brilhantes
e no entanto desde há muito extintas
pode encontrar-se o grande amor final
pesar-se no seu som e qualidade
 
garganta de alcatrão fundente
vai-se perdendo a voz, quase silêncio
 
                 do livro «A estrela rutilante» (1960)
 
 
 
manuel de castro
antologia da novíssima poesia português
m. alberta menéres, e. m. de melo e castro
moraes editora
1971
 


28 julho 2025

nuno guimarães / o quarto

  
[…]
O ar que, dentro dos pulmões, circula
altera-se. É o mesmo das imagens,
denso; as árvores, o ferro, o seu vapor
de enxofre: os dias mortos – de atenção
 
e gasto perceptivo. E onde pôr,
agora, a exacta dimensão? Na mão
cremada, no fogo imensurável?
Medir-se com imagens, breves
 
desvios da matéria? A régua jaz
sobre a madeira, a cama, outras mobílias
inexactas à vista – todo o real
oscila no seu leito. Ou haverá,
 
porém, outro rigor: visível, táctil,
um rasto de paisagem, de sentidos?
então, já póstumo e alheio,
o que descreve, neutro, ainda brilha.
 
 
 
nuno guimarães
rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001
 


27 julho 2025

bernardo soares / a renúncia é a libertação. não querer é poder.

  
A renúncia é a libertação. Não querer é poder.
 
 
Que me pode dar a China que a minha alma me não tenha já dado? E, se a minha alma mo não pode dar, como mo dará a China, se é com a minha alma que verei a China, se a vir? Poderei ir buscar riqueza ao Oriente, mas não riqueza de alma, porque a riqueza de minha alma sou eu, e eu estou onde estou, sem Oriente ou com ele.
 
 
Compreendo que viaje quem é incapaz de sentir. Por isso são tão pobres sempre como livros de experiência os livros de viagens, valendo somente pela imaginação de quem os escreve. E se quem os escreve tem imaginação, tanto nos pode encantar com a descrição minuciosa, fotográfica a estandartes, de paisagens que imaginou, como com a descrição, forçosamente menos minuciosa, das paisagens que supôs ver. Somos todos míopes, excepto para dentro. Só o sonho vê com (o) olhar.
 
 
No fundo, há na nossa experiência da terra duas coisas — o universal e o particular. Descrever o universal é descrever o que é comum a toda a alma humana e a toda a experiência humana — o céu vasto, com o dia e a noite que acontecem dele e nele; o correr dos rios — todos da mesma água sororal e fresca; os mares, montanhas tremulamente extensas, guardando a majestade da altura no segredo da profundeza; os campos, as estações, as casas, as caras, os gestos; o traje e os sorrisos; o amor e as guerras; os deuses, finitos e infinitos; a Noite sem forma, mãe da origem do mundo; o Fado, o monstro intelectual que é tudo... Descrevendo isto, ou qualquer coisa universal como isto, falo com a alma a linguagem primitiva e divina, o idioma adâmico que todos entendem. Mas que linguagem estilhaçada e babélica falaria eu quando descrevesse o Elevador de Santa Justa, a Catedral de Reims, os calções dos zuavos, a maneira como o português se pronuncia em Trás-os-Montes? Estas coisas são acidentes da superfície; podem sentir-se com o andar mas não com o sentir. O que no Elevador de Santa Justa é universal é a mecânica facilitando o mundo. O que na Catedral de Reims é verdade não é a Catedral nem o Reims, mas a majestade religiosa dos edifícios consagrados ao conhecimento da profundeza da alma humana. O que nos calções dos zuavos é eterno é a ficção colorida dos trajes, linguagem humana, criando uma simplicidade social que é em seu modo uma nova nudez. O que nas pronúncias locais é universal é o timbre caseiro das vozes de gente que vive espontânea, a diversidade dos seres juntos, a sucessão multicolor das maneiras, as diferenças dos povos, e a vasta variedade das nações.
 
 
Transeuntes eternos por nós mesmos, não há paisagem senão o que somos. Nada possuímos, porque nem a nós possuímos. Nada temos porque nada somos. Que mãos estenderei para que universo? O universo não é meu: sou eu.
 
s.d.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982