21 outubro 2020

wislawa szymborska / platão ou o porquê

 
 
Por obscuros motivos,
em circunstâncias desconhecidas,
o Ser Ideal deixou de ser suficiente a si próprio.
 
Mas poderia durar e durar sem fim,
talhado das trevas, forjado da claridade
nos seus jardins sonolentos sobre o mundo.
 
Por que diabo começou a procurar aventuras
na má companhia da matéria?
 
De que lhe serviram imitadores
falidos, malfadados,
sem perspectivas de eternidade?
 
A Sabedoria coxa
com um espinho cravado no calcanhar?
A Harmonia dilacerada pelas
águas revoltas?
A Beleza
com os seus nada atraentes intestinos?
E o Bem –
para quê a sua sombra
se antes não a tinha?
 
Deve ter havido algum motivo
por mais fútil que pareça,
mas isso não será revelado nem pela Verdade Nua,
ocupada em remexer
no vestuário terreno.
 
E ainda, meu Platão, todos estes poetas horríveis,
aparas varridas pelo vento de debaixo das estátuas,
resíduos do grande Silêncio nas alturas…
 
 
 
 
wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006





 

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