20 julho 2020

vítor nogueira / segunda voz


I

Olha à tua volta. O que é que falta aqui?
Está uma belíssima noite, pelos padrões do Alasca,
a cidade inteira enrolada a um canto da névoa
e a sala de uma casa emprestada a transformar-se
num mecanismo adicional de solidão:
retratos e livros misturados nas estantes,
memórias alheias de que não tiras proveito.

Quem foi o tolo que disse que a ausência
Faz crescer o afecto? Guarda a tua raiva,
é um recurso precioso. Não te livras do turno
da noite, dos pensamentos neuróticos da tua cabeça,
uma espécie de monólogo das aulas de teatro. Mas
quem sabe o que o passado te reserva para esta insónia?
Pode ser whisky, ou preferes algo mais frutado?


2

Movimentos maiores e mais livres,
cobertura mínima em caso de catástrofe,
esta música tem o mesmo que este whisky:
a grande surpresa dos ossos.

Viajar assim no tempo é cansativo, com o passado
a balançar de forma horrível. Companheiro,
equilibra-te, é tudo uma questão de aprumo.
Quem faz a segunda voz? Qual de nós

presta atenção aos movimentos da terra?
Aproxima-te do espelho. Tu sabes quem sou,
o que fiz, a que pressão fui sujeito. Além do mais,
é bom ver-te. Não tenho com quem falar.


vitor nogueira
ladrador
averno
2012






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