31 dezembro 2019

ruy belo / a história de um dia



A abóbada da tarde mais uma vez acaba
o sol de a fechar sobre a minha diária aventura
Viram-no partir pontualmente à mesma hora
quando num pouco de dia a um canto sempre a um canto
já eu tinha conseguido arredondar
uma íntima ampola de som para a palavra definitiva
Ia mesmo soltá-la eu que todo o dia fui para ela quando
ele me deixou e foi abrir outras portas
erguer verticalmente caídas esperanças
e passar novas mãos por tantas faces mortas
Só me resta recolher o meu rebanho de pensamentos
com um vago rumor de guizos
enquanto à beira-mar os camponeses deixam
palavras não aladas cair na água morta
Morro irremediavelmente nesses pensamentos
que ainda agora o sol iluminava
enquanto eu os estendia e os recolhia
e os orientava numa direcção que convinha
e os precipitava sobre o fumo de uma casa
sobre um buraco de luz ou uma coluna de fumo
mais volúveis que um bando de pássaros
Morro mais uma vez criticamente completo
Todos os gestos
carregados com vinte e quatro horas de história
de ventre ferido na aventura do restolho
petrificaram inevitavelmente
na face orientada de uma estátua
aqui ou noutro jardim
Todo o caminho é de regresso
Amanhã serei outro:
lavarei os dentes com toda a solenidade
como antigamente meu pai antes das grandes viagens
enquanto alguém no espelho
se encarregará de olhar pelos meus olhos
Assim sou passado de dia em dia
confiado pelo dia que parte ao dia que chega
não venha o sino que ao longe toca perturbar
as linhas de um rosto que recompus
e pus de pé na atmosfera doméstica
Fechar um postigo pode ser um gesto cheio de significado quando
na arrumada paisagem quotidiana
a expectativa marcada pela funda inspiração
nos revela duas ou três mãos
postas sobre a colina
Amanhã serei outro



ruy belo
todos os poemas I
dedicatória
assírio & alvim
2004





30 dezembro 2019

mário cesariny / visualizações



I

suave
a vela abre
e principia
o dia

ela
que pelo azul
que corta
considera e chama
outras velas irmãs para o claro rio
e enquanto
o cais
é um enorme navio
que se nega
e no entanto cumpre
a mais estranha viagem

ela
que parte
vira
para o que abandona
um olhar de brancura
que é toda a matemática
singela
da manhã que a inspira



mário cesariny
manual de prestidigitação
assírio & alvim
1981







29 dezembro 2019

eugénio de andrade / sobre o linho




     Desse céu de camponeses trouxe o azul, o azul limpo do linho, o azul branco. Aqui o estendo, onde a noite é mais dura (exactamente como outrora na ribeira mulheres antiquíssimas estendiam a roupa pelas pedras da manhã) e nele me deito. Pudesse eu, como elas, agora dormir tranquilo, a tarefa cumprida.


eugénio de andrade
memória doutro rio
poesia
fundação eugénio de andrade
2000













28 dezembro 2019

eugéne guillevic / carnac (fragmentos)



2

ALGUM dia brincaremos,
Por uma hora que seja,
Nada mais que alguns minutos,
Oceano solene,

Sem que tenhas tu esse ar
De outra coisa te ocupar?



guillevic
poesias de guillevic
tradução de david mourão-ferreira
editora ulisseia
1965








27 dezembro 2019

alexandre o'neill / os amantes de novembro



Ruas e ruas dos amantes
Sem um quarto para o amor
Amantes são sempre extravagantes
E ao frio também faz calor

Pobres amantes escorraçados
Dum tempo sem amor nenhum
Coitados tão engalfinhados
Que sendo dois parecem um

De pé imóveis transportados
Como uma estátua erguida num
Jardim votado ao abandono
De amor juncado e de outono.


alexandre o´neill
no reino da dinamarca 1958
poesias completas
assírio & alvim
2000







26 dezembro 2019

albano martins / inocência



Nenhuma rosa
é inocente. Nem mesmo
o seu perfume. Que este
fere
às vezes
como os alfinetes
dos seus espinhos.


albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999












25 dezembro 2019

paul éluard / viver é partilhar



Viver é partilhar  odeio a solidão
A grilheta da morte quer-me reter ainda
Já não beijo ninguém como beijava dantes
O pão era sinal de ser feliz
O bom pão que nos torna mais quente o nosso beijo

Como abrigo possível só há o mundo inteiro
P’ra mim viver é hoje responder aos enigmas
É renegar a dor que é cega de nascença
E sempre em pura perda estrela sem qualquer brilho
Viver perder-se para reencontrar os homens

Que a palidez do rio encubra o do arroio
Que olhos de maravilha vejam tudo em seu lugar
A miséria acabada e os olhares lavados
Uma ordem crescendo do grão à flor à árvore
Andaimes vivos a sustentar o mundo

A criança a renascer em cada homem e rindo.


paul éluard
poemas políticos
trad. carlos grifo
editorial presença
1971






eeva-liisa manner / nada



«No se puede vivir sin amar.»
«Si, se puede», respondi
vestindo-me de negro
para o último baile de máscaras.

A minha boca estava cheia de poeira
como se o choro me secasse a garganta
– no entanto não choro desde há um século.

Não desejo o vosso céu, compañeros,
as luzes infames, os falsos amigos,
as ruas dos beijos,
as mentiras dos espelhos voadores.

Quero quebrar o último selo,
uma lua que não ilumina,
uma noite onde nada reluz.



eeva-liisa manner
trad. egito gonçalves
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990





23 dezembro 2019

wislawa szymborska / amor à primeira vista



Ambos estão convencidos
que os uniu uma paixão súbita.
É bela esta certeza,
mas a incerteza é mais bela ainda.

Julgam que por não se terem encontrado antes,
nada entre eles nunca ainda se passara.
E que diriam as ruas, as escadas, os corredores
onde se podem há muito ter cruzado?

Gostaria de lhes perguntar
se não se lembram –
talvez nas portas giratórias,
um dia, face a face?
algum «desculpe» num grande aperto de gente?
uma voz de que «é engano» ao telefone?
– mas sei o que respondem.
Não, não se lembram.

Muito os admiraria
saber que desde há muito
se divertia com eles o acaso.

Ainda não completamente preparado
para se transformar em destino para eles,
aproximou-os e afastou-os,
barrou-lhes o caminho
e, abafando as gargalhadas,
lá seguiu saltando ao lado deles.

Houve marcas, sinais,
que importa se ilegíveis.

Haverá talvez três anos
ou terça-feira passada,
certa folhinha esvoaçante
de um braço a outro braço.
Algo se perdeu e encontrou?
Quem sabe se já uma bola
nos silvados da infância?

Punhos de porta e campainhas
onde a seu tempo o toque
de uma mão tocou o outro toque.
As malas lado a lado no depósito.
Talvez acaso até um mesmo sonho
que logo o acordar desvaneceu.

Porque cada início
é só continuação,
e o livro das ocorrências
está sempre aberto ao meio.




wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998






22 dezembro 2019

fernando pinto do amaral / sete degraus para a escada de jacob



1.

Saber recomeçar, fugir de novo
outra vez indefeso, vagueando
pelos mesmos lugares, como se neles
houvesse mais que o mundo, uma alegria
imediata, ardendo, ao abandono,
entre casas e ruas vazias. Para quê
voltar a tudo isso? Em cada árvore
ondeia o vento, e o barco dos meus passos
navega sem razão por outros mares.
Há muitos sempres vivo, ainda preso
ao primeiro sabor: o céu de uns olhos
brilhou e vai chamando. Em pouco tempo
Se movem os destinos e eu quis
beber naquela imagem um só fogo,
uma nova ansiedade que deixasse
retida no meu peito a passageira
graça de mais sentidos no deserto
– só assim, afinal, acordaria.
Lava de sonhos, eis que sobe o amor
ou o que vai restar do seu enigma
tão dentro dessa chama-já-promessa:
horas de névoa em doces sobressaltos
rompendo o vão silêncio, desatando
indecifradas músicas? Não sei,
nenhum rosto é igual ao teu rosto, excessivo
gesto da luz, pensando em mim, algures
entre o que vem da noite e o que me abraça
na cega voz da vida, em ti, à espera.



fernando pinto do amaral
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000




21 dezembro 2019

mário-henrique leiria / claridade dada pelo tempo



XI

escuta amor

talvez um dia
em que de mim já nada mais exista
te lembres de dois braços
que te abraçaram convulsivamente
nessa altura
deixa que os lábios te sangrem
deixa que o sangue
te corra pelo peito

e as mãos
essas
abandona-as…


                                   dezembro- 1950



mário-henrique leiria
obras completas
poesia
e-primatur
2018





20 dezembro 2019

e e cummings / avança um pouco



XLVIII

avança um pouco – porquê o medo –
aqui está a vespertina estrela (tens um desejo?)
toca-me
antes de perecermos
(crê que nada do que foi
inventado pode estragar isto ou este instante)
beija-me um pouco:
o ar
escurece e está vivo –
oh vive comigo na rareza de
estas cores;
que só ligeiramente
sempre estão fora de alcance da morte

e em inglês




e. e. cummings
trad. ana hatherly
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990






19 dezembro 2019

herberto helder / há dias...



Há dias em que basta olhar de frente as gárgulas
para vê-las golfar sangue. É quando
a pedra está a prumo, quando a estaca
solar se crava atrás das casas e amadurece
como uma árvore.
Mas também ouvi a água bater directa
nas trevas. Por um abraço do sangue eu estava
condenado
ao extravio mortal. Era um dom que me fundia
à substância primária
do terror.
E à riqueza e energia. E à tremenda
doçura humana. Vejo algerozes escoando a massa
das cúpulas, a forma, supremas rosas de pedra
rotativa.




herberto helder
flash
empira
roma
1987








18 dezembro 2019

leopoldo maría panero / leitura




Eu não falo do sol, mas da lua
que ilumina eternamente este poema
onde um bando de crianças corre perseguido pelos lobos
e o verso entoa um hino ao pus.
Oh, amor impuro! Amor das sílabas e das letras
que destroem o mundo, que o livram
de ser verdadeiro, de estar aí para nada,
como um regato
que não reflecte a minha imagem,
espelho do vampiro
daquele que, de dentro da página
vai chupar o teu sangue, leitor
e convertê-lo em lágrima e em nada:
e fazer-te comungar com o aço.



leopoldo maría panero
a canção do croupier do mississípi e outros poemas
trad. jorge melícias
antígona
2019






17 dezembro 2019

jacques roubaud / o sentido do passado




O sentido do passado nasce
                                    de objectos-já.

Em todos os momentos evidentes
                                            procurei-te

E também em ténues
                          interregnos

Procurei quem?
                 onde
                 estás?

quem?

quem, deixou de fazer sentido

nem o quê    (sem nome, em nenhuma língua)

Eu voltaria, dando alguns passos atrás, ficaria
                                    num lugar
                                    diferente, num sentido precário.

Como se o som, ao atravessar a água,
                                    baixasse uma quarta.



jacques roubaud
alguma coisa negro
trad. josé mário silva
tinta-da-china
2016





16 dezembro 2019

alain morin / 5 de julho…




     Estou a lavar a louça. Arranco um último grito aos pratos afogando-os na espuma. As facas serrilhadas que vou buscar às profundezas da tina todas sujas de queijo ou de manteiga, hei-de esfregá-las até não restarem os mais ínfimos vestígios, para que subsista apenas o futuro da mesa posta, onde elas e os garfos estarão, como uma mecânica de luto, de cada um dos lados do disco gelado onde assenta o miserável coração do mundo. São elas o presente do metal – bem como eventualmente o seu futuro – e a sua dinâmica no estreito espaço onde serão utilizadas determinará a abstracção da refeição.



alain morin
trad. luís miguel nava
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990