05 agosto 2017

ernesto sampaio / poesia da miséria




«Poetas porquê no tempo da miséria?» pergunta Holderlin. Esta «miséria» não deve interpretar-se apenas como atributo da época, mas também como elemento constitutivo da poesia que à época pertence. Tal poesia é «mísera» porque é poesia de si própria, interrogação do seu próprio sentido, e não possessão do mundo. E «mísera» é esta época, assinalada como está por uma dupla negação. O «já não» dos deuses desaparecidos e o «ainda não», do deus vindouro. É uma época negativa pela sua própria essência; por isso, na medida em que se «poematiza» a si própria, a poesia é poesia desta época.

E, no entanto, esta poesia é excessiva. Não podendo acomodar-se em hipotéticas universalidades comunicativas, é obrigada pela sua própria «miséria» a fermentar, revolver, ferir continuamente as hierarquias e articulações do discurso. Talvez deva a inocência à sua prática do excesso, entendendo por «excesso» o que é também perda, desgaste e sobretudo não possuir e não querer possuir. É um dar-se, um não ser avaro de si mesmo, um não «tesaurizar» as palavras.

A linguagem desta poesia, porém, pode tornar-se o mais perigoso dos bens: quando o «excesso» encontra a «medida» e consegue finalmente dizer o negativo da sua época, evocando-lhe toda a insuportável «miséria», pondo o homem em luta com ela e consigo mesmo. «Nós estamos em luta com a linguagem» dirá Wittgenstein; esta linguagem já não é a nossa casa. O deus abandonou-a, ausentou-se, e os novos deuses ainda não existem. Esta ausência produz o excesso. Mas quando a escrita deste excesso alcança uma lei, uma ordem, a medida – a poesia reflecte com medida sobre si própria, conhece o sentido da perda e transforma-se em poesia da época.

A poesia da época é a poesia da perda, a Dichtung que torna «sagrada» a Noite que atravessamos, a palavra que nomeia os deuses e o ser, que evoca a presença dos deuses na sua original, essencial proximidade das coisas. A poesia é, portanto, teoria – não um «ver» comum, mas o ver que dá nome aos deus entre nós». O sentido da perda é este: a poesia da «miséria» não possui «teoria», não conduz à presença dos deuses, à Aletheia grega, termo que os romanos traduziram por Veritas.

Veritas, contudo, já não é Aletheia: e apenas a interior coerência e «harmonia» das nossas formas de conhecimento, da nossa «pura» razão. Esta Veritas – já abandonada pelos deuses, já incapaz de vê-los - «saqueou», com os seus preceitos morais, deveres, conflitos, estética e razão, a teoria grega. Holderlin é o único dos «modernos» a compreender o clássico como tragédia. A nossa «miséria» é exactamente incapacidade, impossibilidade da tragédia. E a nossa poesia é autêntica não simplesmente por não ser clássica, mas por reconhecer na raiz o sentido desta perda. E nisso que consiste a sua Medida.

Teremos chegado, como sugere Holderlin, demasiada tarde à poesia? À poesia que é tragédia e sacrifício que nos reconcilia com o divino, decerto. Mas qual é a poesia da Gottferne, da ausência dos deuses, da «miséria»? Qual é a poesia da vida tornada «sonho»? A poesia do Luto, segundo Hegel; a poesia do adeus ao Dia, à Presença, segundo Holderlin; a poesia que duramente recusa todas as consolações, segundo ambos.

A poesia de Holderlin guarda e defende o sentido da perda, da ausência, contra as forças eu hoje pretendem trair aquela memória, apagar a Aletheia na sua «verdade», proclamar conciliações ou o domínio sobre as coisas e os fenómenos. Em Holderlin, a poesia no tempo da «miséria» é a «louca» utopia antinihilista, um custodiar o «possível» regresso dos deuses. Lukacs apresenta Holderlin como o modelo do «heroísmo poético» que «se desfaz contra a realidade» sem conseguir representar as contradições da sociedade pós-termidoriana e da nascente «prosa» burguesa. Esta «prosa» é o resultado da perda de tudo, e dir-se-ia que escrever, hoje, nesta encruzilhada do «já não» e do «ainda não», não é mais do que preencher com ninharias o abissal espaço vazio criado pela ruptura entre o nome e a coisa.

Holderlin envolveu a sua mensagem numa forma críptica voluntariamente mítica e obscura, indecifrável para os «maus» e para os «brutos» tal como outrora – diz ele – quando das invasões bárbaras, se enterravam os vasos sagrados, confiando-os ao seio da terra-mãe para que um dia, muito mais tarde, outras gerações os exumassem, reanimando com o seu fervor o culto da verdade e da beleza. Do mesmo modo, quando o vento invernal varre a planície, a semente secretamente viva aguarda, na noite profunda da terra, o reaquecimento vindouro, a libertação pela luz o sol primaveril. «Agora – diz Holderlin – é noite, é inverno. Todos os meus pensamentos se voltam para as gerações futuras».

Em cada dia o poeta deve «chamar a divindade desaparecida» e em cada dia «aludir»à divindade «possível», futura, da qual não possui o nome. Este Holderlin é irredutível à sacralidade da cerrada perfeição. Às consoladoras imagens de uma cultura onde todos os artistas e todas as imagens têm o seu lugar destinado, numa recíproca e «construtiva» harmonia, Holderlin opõe o «excesso». É uma voz de vanguarda, em antecipação sobre o seu tempo. «Mas toda a vanguarda – diria Wittgenstein – mais cedo ou mais tarde é alcançada pelo seu tempo.»

[Publicado no Diário de Lisboa, de 11/12/87.]   



  
ernesto sampaio
ideias lebres
fenda
1999





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